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Seminário Missionário Arquidiocesano
“Redemptoris Mater” de Brasília
Esquemas de Filosofia Zubiriana
Filosofia de Deus
(Apostilas)
Pe. Francisco-Xavier Sotil Baylos
2003
I
INSUFICIÊNCIA DAS VIAS TRADICIONAIS PARA JUSTIFICAR INTELECTIVAMENTE
A EXISTÊNCIA DE DEUS
A. Insuficiência das vias “cósmicas” para justificar intelectivamente a existência de Deus.
1. Em que consistem as vias cósmicas
a. Vias cósmicas para justificar intelectivamente a existência de Deus são aquelas que argumentam a partir da realidade inteira considerada simplesmente como “natureza” ou “cosmos”.
b. Pelo que diz respeito ao homem, estas vias não tomam em consideração a dimensão do homem pela qual ele é essencialmente diferente das outras coisas reais; só tomam em consideração a dimensão cósmica ou natural do homem pela qual ele é uma parte a mais da natureza ou do cosmos, ou seja, uma coisa natural a mais entre as outras.
c. Estas vias cósmicas para justificar intelectivamente a existência de Deus têm muitas variantes; as mais célebres são “as cinco vias” de S. Tomás de Aquino:
= Primeira via
# Consta, e é certo, que algo se move (muda) no mundo e que tudo aquilo que se move (muda) se move (muda) por outro, e este por outro, etc.; com efeito:
+ Nada se move (muda) senão está em potência para ser movido (mudar), e nada move (muda) algo senão está em ato para mover (mudar); mover (mudar), com efeito, é tirar da potência ao ato.
+ Mas, como aquilo que move (muda) passa de estar em potência para mover (mudar) a estar em ato para mover (mudar), e como não é possível que uma coisa esteja ao mesmo tempo em ato e em potência na mesma dimensão, aquilo que move (muda) também é movido (mudado).
# Mas nisto não é possível proceder ao infinito; portanto é necessário concluir que há um “primeiro motor” que não se mova (motor imóvel), o qual todos chamam de Deus.
= Segunda via
# Encontramos nas coisas sensíveis uma ordem de causas eficientes: as coisas sensíveis não têm a sua causa eficiente em si mesmas, mas em outro, ou seja, toda coisa é produzida por outra.
# Mas é impossível proceder ao infinito nas causas eficientes; portanto é necessário pôr uma “primeira causa eficiente”, a qual todos chamam de Deus.
= Terceira via
# Encontramos coisas que tanto podem ser quanto podem não ser: todas aquelas coisas que são geradas e que se corrompem; mas tudo aquilo que pode ser e pode não ser tem que ter em outro a causa pela qual efetivamente é; mas, como não é possível um processo de causas ao infinito, tem que haver algo que necessariamente tem que ser; agora bem, aquilo que é necessário ou tem a causa da sua necessidade em si mesmo ou em outro.
# Mas é impossível proceder ao infinito nos necessários que têm a sua causa em outro; portanto tem-se que pôr um “primeiro necessário” que seja necessário por si mesmo, o qual todos chamam de Deus.
= Quarta via
# Nas coisas há graus: coisas mais ou menos boas, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos belas, etc.; o mais e o menos, porém, dizem-se das coisas segundo se aproximem mais ou menos a algo que é maximamente; existe, portanto, algo que é veríssimo e ótimo e belíssimo e, por conseguinte, maximamente ente.
# Mas aquilo que se diz que é maximamente em algum gênero é causa de todos os que estão naquele gênero; existe, portanto, algo que é causa do ser e da bondade e de qualquer outra perfeição em todas as coisas; este ser o chamamos de Deus.
= Quinta via
# Vemos que os seres que carecem de conhecimento, como os corpos naturais, agem por um fim.
# Mas os seres que não têm conhecimento não tendem a um fim senão dirigidos e ordenados por algum ser inteligente; portanto existe um ser inteligente pelo qual todas as coisas naturais se ordenam a um fim; este ser o chamamos de Deus.
2. O ponto de partida das “cinco vias” é radicalmente insuficiente, porque não é nem manifesto nem firme nem constatável; com efeito, as “cinco vias” não partem de “fatos” cósmicos, como pensa S. Tomás, mas duma das possíveis “interpretações metafísicas” dos fatos cósmicos: a de Aristóteles.
a. Vejamo-lo em cada uma das cinco vias.
= Primeira via
# Parte do presumível fato de que o movimento (mudança) é um estado do ente móvel: o ente móvel passa de estar em potência a estar em ato.
# Agora bem, isto não é um “fato”; isto é a problemática interpretação aristotélica do fato do movimento (mudança) da realidade cósmica, coisa muito diversa.
+ O único “fato” nu e cru é o movimento (mudança) do cosmos: de fato as coisas se movem (mudam).
+ Mas não é um fato que o movimento (mudança) das coisas seja “sem mais” um “estado do ente móvel” nem que consista “formalmente” na passagem da potência ao ato.
= Segunda via
# Parte do presumível fato de que nas coisas cósmicas há uma ordem de causalidade eficiente, ou seja, de que toda coisa é produzida por outra.
# Agora bem, a causalidade eficiente não é nenhum “fato”, mas a interpretação metafísica aristotélica da apreensão primordial do cosmos.
+ Prescindindo das ações humanas, pode-se mostrar um só exemplo de causalidade eficiente “dado” na apreensão primordial do cosmos? Exemplos de sucessões, até regulares, muitos; mas de causalidade eficiente…
+ O ocasionalismo cósmico, que defende que Deus intervém diretamente em todo fato cósmico, é uma outra interpretação metafísica possível das coisas apreendidas primordialmente.
= Terceira via
# Parte do presumível fato de que as coisas que são geradas e que se corrompem não são necessárias, mas só possíveis (=contingentes).
# Agora bem, o necessário e o contingente não são um fato dado na apreensão primordial do cosmos, mas uma interpretação do fato cósmico de que há coisas que são geradas e que se corrompem: na apreensão primordial do cosmos não nos é dada a não necessidade (=contingência) das coisas que são geradas e se corrompem, mas só nos é dado que as coisas são assim e mais nada; o resto são só interpretações, que podem ser muito legítimas, mas só interpretações.
= Quarta via
# Parte do presumível fato de que há umas coisas que têm mais “entidade” que outras, ou seja, de que há “graus” de entidade nas coisas.
# Agora bem, os graus do ser não são um fato, mas uma interpretação muito problemática dos fatos.
+ Se - mais uma vez - prescindimos da realidade humana, é verdade que a apreensão primordial do cosmos nos dá de fato distintos graus de ser no cosmos?
+ Mais ainda: que os graus inferiores se fundamentem nos superiores e, portanto, que os pressuponham, é algo muito problemático; existe também a possibilidade duma evolução que faça brotar o superior desde o inferior...
= Quinta via
# Parte do presumível fato de que na natureza há uma ordem de finalidade.
# Agora bem, isto não é um fato, mas uma teoria.
+ Aparte das ações humanas - mais uma vez -, que pelo menos parcialmente têm uma certa finalidade, pode-se falar de finalidade no cosmos meramente material?
+ Certamente é um fato que no cosmos há uma certa convergência de processos; mas não é um fato que essa convergência consista formalmente numa ordem de finalidade.
b. Em conclusão
= A base da discussão de S. Tomás de Aquino não são os fatos, mas a metafísica de Aristóteles; está tão convencido de que é a metafísica do sentido comum, e, portanto “a” metafísica, que acaba por identificá-la com os fatos dados na apreensão primordial do cosmos.
= Agora bem, essa identificação, além de ilícita, falha por omissão.
# A diferença essencial que há entre as ações humanas e os outros fatos cósmicos não tem nenhuma função na concepção aristotélica do cosmos; e isso é muito grave.
# Daí que diversas vezes, propositalmente, temos feito exceção das ações humanas; a visão do homem como uma coisa natural a mais, sem considerar a peculiar posição do homem no cosmos, é uma visão metafísica mais do que discutível.
# Acontece que a metafísica de Aristóteles nem é a metafísica do sentido comum nem muito menos um dado da apreensão primordial do cosmos...
3. O ponto de chegada das “cinco vias” é radicalmente insuficiente porque não chegam a Deus “enquanto Deus”.
a. As cinco vias de S. Tomás de Aquino chegam a cinco primeiros: o motor imóvel, a primeira causa eficiente, o ente necessário, o primeiro ser, a primeira inteligência; agora bem, esses cinco primeiros identificam-se num mesmo ente?; ter-se-ia que provar; no caso que se provasse, ter-se-ia provado “sem mais” que esse único ente supremo é “formalmente” Deus enquanto Deus?; ter-se-ia que provar.
b. Isto viu-o claramente B. João Duns Escoto; por isso construiu em duas fases a sua via para justificar intelectivamente a existência de Deus:
= Primeiramente, partindo dos entes finitos sensíveis (que também não são “fatos” cósmicos!), acha poder justificar a existência dum ente que é primeiro como eficiente (primum effectivum), como fim (primum finitivum), e como exemplar de entidade (primum perfectivum).
= Em segundo lugar, tenta justificar intelectivamente que esse primeiro ente é infinito e que, portanto, (segundo ele!), é Deus.
c. Pois bem, a identificação do ente infinito com Deus nem esfrega aquilo que se trata de justificar.
= Com efeito, B. João Duns Escoto ter-nos-ia que justificar intelectivamente que, quando nos referimos a Deus, estamos nos referindo “primariamente e formalmente” a um ente infinito.
= Pois bem, isso é injustificável intelectivamente.
# B. João Duns Escoto busca a “essência metafísica”, o conceito metafísico primário do ente divino; acredita achá-lo na infinitude.
# Agora bem, aquilo que entendemos todos por Deus, quando buscamo-lo, não é precisamente a sua essência metafísica, mas algo mais simples e radical que é aquilo que primariamente e formalmente constitui o que é “Deus enquanto Deus”: a realidade pessoal “última” (a quem dar acatamento), que é a fonte “possibilitante” de todas as possibilidades que temos de realizar-nos a nós mesmos (a quem suplicar essas possibilidades) e que é o poder “impelente” radical que nos impele a ter-nos que realizar inexoravelmente a nós mesmos (em quem se amparar e refugiar-se para receber esse poder impelente radical).
# É óbvio, então, que o ente infinito de B. João Duns Escoto não é “formalmente” esse Deus enquanto Deus.
+ Primeiro, porque, inclusive dentro duma idéia metafísica de Deus, não é evidente que a essência metafísica de Deus seja a infinitude da sua entidade.
+ Segundo, porque, no melhor dos casos, a presumível infinitude entitativa competiria a Deus por ser realidade pessoal última, e não ao invés; ou seja, Deus, no melhor dos casos, seria infinito por ser Deus, e não Deus por ser infinito.
+ Terceiro, porque, para que Deus seja Deus enquanto Deus, não basta que seja só a realidade pessoal última; é necessário que seja “unitariamente e formalmente” a realidade pessoal última e possibilitante e impelente, tal como acabamos de descrever; pois bem, é óbvio que a mera infinitude entitativa não é sem mais tudo isso.
B. Insuficiência das vias “antropológicas” para justificar intelectivamente a existência de Deus.
1. Em que consistem as vias antropológicas
a. Vias antropológicas para justificar intelectivamente a existência de Deus são aquelas que argumentam a partir do homem considerado como realidade completamente diferente das demais realidades cósmicas.
b. Estas vias adotam diversas modalidades segundo a dimensão do homem da qual partem na sua argumentação; resumimos brevissimamente três delas.
= S. Agostinho parte da inteligência humana e diz: o homem possui verdades; agora bem, toda verdade que possui o homem apóia-se necessariamente em “A Verdade” (na Verdade Subsistente) que habita nele, ou seja, Deus.
= Kant parte da vontade humana e diz: o homem não só quer coisas, mas, acima de tudo, quer imperativamente e categoricamente o dever pelo dever; pois bem, isso seria impossível se não existisse na realidade o Bem em si, o Bem Ótimo, ou seja, Deus.
= Schleiermacher parte do sentimento humano e diz: o homem tem um sentimento irracional de dependência incondicional do infinito; pois bem, esse sentimento só pode ser devido a uma realidade infinita, ou seja, a Deus.
2. O ponto de partida destas vias antropológicas é radicalmente insuficiente; com efeito, não só não partem de “fatos” antropológicos, como pensam S. Agostinho, Kant e Schleiermacher, mas nem sequer são algo “viável”, porque têm três defeitos radicais.
a. “Parcialidade”.
= Não partem do homem inteiro, mas só de “dimensões parciais” do homem: a inteligência, a vontade e o sentimento; a realidade humana una e única por inteiro não aparece nas vias de S. Agostinho, de Kant, e de Schleiermacher.
= Por acaso o homem precisa e busca Deus como fundamento “só por e para” ser muito inteligente ou querer muito ou sentir-se dum jeito determinado?
b. “Dualismo”.
= S. Agostinho
# Na realidade não parte da inteligência humana, mas do dualismo radical entre “a” verdade e “as” verdades, ou seja, parte de “a” verdade como de algo que habita no interior do homem, contraposta a “as” verdades do homem, as quais, precisamente pela sua pluralidade, seriam só “verossímeis”, no sentido etimológico do termo.
# Pois bem, isso não é um fato, mas a filosofia de Platão e de Plotino!
= Kant
# Na realidade não parte da vontade humana, mas do dualismo radical entre a vontade empírica (o homem quer objetos empíricos) e a vontade inteligível (o homem quer o imperativo categórico moral).
# Pois bem, onde está dito que esse dualismo de vontades no homem seja um fato?
= Schleiermacher
# Na realidade não parte do sentimento humano, mas do dualismo radical entre o sentimento incondicional (que tem como termo algo “não dado”: a infinitude) e o sentimento condicional (que tem como termo algo “dado”: as coisas, os demais homens e a si mesmo).
# Pois bem, onde está dito que esse dualismo de sentimentos no homem seja um fato?
c. “Distinção antitética homem/cosmos”.
= Partem do homem não só não considerado como mera coisa natural, mas concebido formalmente como algo “completamente distinto” de toda coisa natural, ou seja, como em si mesmo e por si mesmo independente de toda realidade cósmica.
= Mas, como acontece que o homem, queira-o ou não, está no cosmos, ao opô-lo radicalmente a este, o que se faz de fato é cortar a realidade humana em dois pedaços: um pedaço mais ou menos integrado no cosmos e outro pedaço que vai contra o cosmos ou, pelo menos, sem ele.
= Trata-se, em definitiva, duma ilícita “segregação” do homem da realidade cósmica, e duma ilegítima “antítese” homem/cosmos, às quais conduz inexoravelmente o dualismo interno do qual partem estas vias antropológicas para justificar intelectivamente a existência de Deus.
3. Precisamente por partir de algo “inviável”, essas vias antropológicas conduzem, no seu ponto de chegada, a um conceito radicalmente insuficiente de Deus.
a. A segregação antitética do homem a respeito do cosmos, feita por estas vias antropológicas, faz que conduzam a um Deus (a verdade subsistente, o bem ótimo e o infinito) que “de seu” não tem referência ao cosmos, mas só ao homem, ou seja, conduzem a um Deus que é formalmente uma realidade segregada do cosmos.
b. É certo que tanto S. Agostinho, quanto Kant e Schleiermacher, num segundo passo, integram Deus e o cosmos; mas precisamente aí está a questão: que “têm que” integrá-los num segundo passo, porque “de seu” não estão integrados.
= Só depois de ter chegado a Deus, S. Agostinho, Kant e Schleiermacher tornam desde Deus ao cosmos (cada um do jeito dele), para integrar o cosmos nesse Deus.
= Isso quer dizer, portanto, que, segundo eles, Deus é “de seu” uma realidade justaposta ao cosmos, e só ulteriormente convergente (seja como for), com Ele.
c. Agora bem, o Deus ao qual todos nos referimos, como temos dito acima, não é só possibilitante e impelente, mas unitariamente último, ou seja, não é só a fonte “possibilitante” de todas as possibilidades que temos de realizar-nos a nós mesmos e o poder “impelente” radical que nos impele inexoravelmente a ter que realizar-nos a nós mesmos, mas também a realidade pessoal “última”.
= As vias cósmicas chegam, no melhor dos casos, a um Deus último, mas não possibilitante e impelente; as vias antropológicas chegam, no melhor dos casos, a um Deus possibilitante e impelente, mas não último; em definitiva, nem umas nem outras chegam a Deus enquanto Deus.
= Por conseguinte, temos que tentar uma nova via para justificar intelectivamente a existência de Deus que tenha unitariamente estas duas características essenciais:
# Tem que partir de um “fato” que abranja constitutivamente o homem e o cosmos.
# Tem que chegar a justificar intelectivamente a existência de Deus enquanto Deus, ou seja, a existência da realidade pessoal “última” (a quem dar acatamento), que é fonte “possibilitante” de todas as possibilidades que temos de realizar-nos a nós mesmos (a quem suplicar essas possibilidades) e que é o poder “impelente” radical que nos impele inexoravelmente a realizar-nos a nós mesmos (em quem se amparar e refugiar-se para receber esse poder impelente radical).
II
UMA VIA
UNITARIAMENTE CÓSMICO-ANTROPOLÓGICA
PARA JUSTIFICAR INTELECTIVAMENTE
A EXISTÊNCIA DE DEUS:
A VIA DA RELIGAÇÃO
DO HOMEM À DEIDADE
A. Em cada um de seus atos, ao longo de todo o decurso de sua vida, o homem inexoravelmente vai realizando a figura concreta da sua realidade vital pessoal, ou seja, a personalidade da sua personeidade.
1. Enquanto modo de realidade, o homem é uma realidade vivente pessoal.
a. O homem é uma realidade “vivente”.
= O homem é esse modo de realidade que chamamos de “vida”: é uma realidade viva, uma realidade vivente.
= Efetivamente, o homem tem os dois momentos próprios e exclusivos de toda realidade vivente: uma certa independência do seu meio e um controle específico sobre este.
= Estes dois momentos são a plasmação daquilo que é o constitutivo de toda realidade vivente e do homem enquanto realidade vivente que ele é: ser um “si mesmo”, um autós, que dizer, ser uma realidade que “autopossui-se”, que se possui a si mesma.
# Toda realidade, também meramente material, como uma nuvem, por exemplo, “tem” um “conteúdo” real e atua, tanto ativa quanto passivamente, em virtude desse “conteúdo” real que “tem”.
# Mas só a realidade vivente, como uma ameba, por exemplo, “possui” o “conteúdo” real que tem e executa ações, tanto ativas quanto passivas, formalmente dirigidas a esse “conteúdo” real que “possui”, ou seja, é “si mesma” (autós) e atua formalmente por si mesma e para si mesma; em outras palavras: “possui-se a si mesma”, “auto-possui-se”.
b. O homem, porém, não é uma mera realidade vivente, mas uma realidade vivente “pessoal”.
= Efetivamente, o homem é uma realidade vivente cujo conteúdo essencial inclui a sua inteligência senciente, o seu sentimento afetante e a sua vontade tendente.
# O homem apreende “impressivamente” (=sente) as coisas, os demais homens e a si mesmo, formalmente como conteúdos “reais”, como “realidade” (=inteligentemente), ou seja, como algo que tem seu conteúdo “de seu”, “em próprio”.
# As coisas, os demais homens e ele mesmo, apreendidos impressivamente pelo homem formalmente como realidades (=inteligidos sencientemente), não só modificam o estado de tom vital que tem o homem em cada instante (=afetam), mas formalmente como realidades modificam esse estado como formalmente real (=sentimentalmente).
# As coisas, os demais homens e ele mesmo, apreendidos impressivamente pelo homem formalmente como realidades (=inteligidos sencientemente), e modificantes formalmente como realidades do estado de tom vital dele como formalmente real (=sentimentalmente afetantes), impelem o homem a ter inexoravelmente que responder com uma ação (=tender) que consiste em querer realizar uma das possibilidades que lhe oferece a realidade (=volentemente).
= É óbvio, portanto, que, em virtude de sua inteligência senciente, de seu sentimento afetante e de sua vontade tendente, o homem é uma realidade vivente que vive formalmente e constitutivamente desde, em e pela realidade enquanto tal, ou seja, que se enfrenta, formalmente como realidade, na sua vida, com as coisas, com os demais homens e consigo mesmo “formalmente” como realidades.
= Daí que o homem seja um modo de realidade vivente que não consiste em mera “vida”, mas em “vida pessoal”: o homem é “pessoa”, é uma “realidade vivente pessoal”.
# Efetivamente, em virtude de sua inteligência senciente, de seu sentimento afetante e de sua vontade tendente, o homem possui o seu conteúdo real “formalmente como realidade” e executa ações, tanto ativas quanto passivas, dirigidas a esse conteúdo real que possui “como formalmente real”.
# Em outras palavras: o homem é “si mesmo formalmente enquanto realidade” e “atua por si mesmo e para se mesmo formalmente enquanto realidade”; quer dizer, “possui-se a si mesmo formalmente enquanto realidade”, “auto-possui-se formalmente enquanto realidade”.
# Nisto, e não em outra coisa, consiste essencialmente o caráter “pessoal” da realidade vivente humana: o homem é “suidade”, é formalmente “sua” própria realidade vivente enquanto realidade, é uma realidade vivente formalmente “sua” enquanto realidade.
2. A realidade vivente pessoal, que é o homem, está constituída por dois momentos essenciais diferentes mas não separados: personeidade e personalidade.
a. “Personeidade” é o caráter constitutivamente pessoal da realidade vivente humana que acabamos de descrever; que o homem é “personeidade” significa exatamente -repetimos- que o homem é “suidade”, que é formalmente “sua” própria realidade vivente enquanto realidade, que é uma realidade vivente formalmente “sua” enquanto realidade.
b. Agora bem, o caráter constitutivamente pessoal da realidade vivente humana, quer dizer, a sua personeidade, não é algo que o homem meramente tem e pronto; o homem tem inexoravelmente que “ir realizando “a figura concreta da sua personeidade”” em cada um dos seus atos vitais pessoais -por triviais que forem- ao longo de todo o seu decurso vital pessoal.
c. Pois bem, essa “figura concreta da sua personeidade” que o homem inexoravelmente vai realizando em cada um dos seus atos vitais pessoais ao longo de todo o seu decurso vital pessoal, é a “personalidade” do homem; o homem, inexoravelmente, em cada um dos seus atos vitais pessoais -por triviais que forem- vai realizando a sua personalidade, que dizer, “vai configurando concretamente”, dum modo ou de outro, a sua personalidade.
= Com efeito, ao executar cada um de seus atos, o homem não faz só uma coisa, mas unitariamente duas.
# Primeiro, em cada ato que executa, o homem, obviamente, realiza o conteúdo concreto desse ato: fala, corre, dorme, come, insulta, etc.
# Segundo, unitariamente, ao realizar o conteúdo concreto de cada um desses atos que executa, o homem está fazendo algo muito mais grave: vai configurando a sua personalidade.
+ Seria um gravíssimo erro, com efeito, pensar que os atos do homem consistem meramente em pôr fora de si, por assim dizer, uma série de conteúdos reais, por exemplo, palavra dita, trajeto recorrido, dormição dormida, alimentos comidos, insultos proferidos, etc.
+ Os atos do homem não consistem meramente nisso; o alcance decisivo dos atos do homem está em que, neles, o homem, inexoravelmente, vai configurando definitoriamente (não definitivamente, enquanto tiver vida) a sua própria realidade vital-pessoal, quer dizer, vai realizando a sua personalidade.
= Precisamente em virtude deste segundo momento, os atos do homem são constitutivamente vitais e pessoais.
# São vitais, porque, ao realizar o conteúdo concreto de cada ato seu, o homem o realiza dirigido formalmente ao “conteúdo” real que ele “possui”; ou seja, em seus atos, o homem está sendo “si mesmo” (autós) e está atuando por si mesmo e para si mesmo; em outras palavras: “está possuindo-se a si mesmo”, está “auto-possuindo-se”, quer dizer, está vivendo, está atuando vitalmente.
# São pessoais, porque, ao realizar o conteúdo concreto de cada ato seu, o homem não está sendo meramente “si mesmo” e atuando meramente “por si mesmo e para si mesmo”, mas, fundamentalmente, está sendo ““seu” próprio” si mesmo, quer dizer, ““sua” própria” realidade enquanto tal, e está atuando por e para ““seu” próprio” si mesmo, quer dizer, por e para ““sua” própria” realidade enquanto tal; em outras palavras: está possuindo-se como ““seu” próprio” si mesmo, como realidade formalmente “sua”, está auto-possuindo-se como si mesmo formalmente “seu”, como realidade formalmente “sua”, quer dizer, está vivendo “pessoalmente”, está atuando vital-“pessoalmente”.
= Por isso, e não por outra coisa, o decurso vital do homem é formalmente “vida pessoal”, quer dizer, porque o homem, na execução de cada um de seus atos, autopossui-se configurando progressivamente a figura concreta da sua realidade vital-pessoal, ou seja, a personalidade de sua personeidade.
d. Três considerações essenciais para entender bem o que estamos dizendo.
= A personalidade da qual estamos falando é a figura concreta da realidade vital-pessoal do homem que ele vai configurando em cada um de seus atos ao longo de sua vida.
# A personalidade da qual estamos falando não é questão de psicologia experimental ou de antropologia empírica, porque não consiste nos caracteres psíquicos que “emergem” do conteúdo real de cada homem, como, por exemplo, ser lerdo, agudo, explosivo, introvertido, medroso, inseguro, afetivo, etc.
# A personalidade da qual estamos falando é questão de metafísica, porque consiste na figura concreta da sua personeidade metafísica que o homem inexoravelmente vai configurando em cada um de seus atos ao longo de sua vida, não só com esses caracteres psíquicos, mas com a totalidade da sua realidade psico-corpórea.
= A personalidade da qual estamos falando é a figura concreta da sua realidade vital-pessoal “inteira” que o homem vai configurando em cada um de seus atos ao longo de sua vida
# Poder-se-ia pensar, com efeito, que em alguns dos seus atos vitais pessoais, o homem configura traços espirituais dele, em outros, traços morais dele, em outros, traços psicológicos dele, em outros traços corpóreos dele, etc.
# Pois bem, esse pensamento é perfeitamente quimérico.
+ O homem, com efeito, é uma prodigiosa “unidade sistemática” de notas diferentes (inclusive essencialmente diferentes) mas inseparáveis umas de outras, que abrange desde as suas notas bioquímicas mais materiais até as suas notas espirituais mais sublimes.
+ Esta “unidade sistemática” essencial da realidade humana, e consequentemente de cada um de seus atos, é algo que jamais há que perder de vista para não cair em erros de funestas consequências.
+ Por conseguinte, em todos e cada um dos atos do homem, intervém “todas e cada uma” das notas que constituem a unidade sistemática da sua realidade, ainda que não intervenham sempre ativamente nem da mesma maneira (o contrario também é perfeitamente quimérico).
- Como vai-se pretender, por exemplo, que a inteligência dum homem intervenha ativamente no seu ato de respiração como o faz no seu ato de pensar qual movimento tem que fazer a continuação num jogo de xadrez?
- Isso quer dizer que a inteligência não intervém em absoluto no ato humano de respiração? É claro que intervém: em ação passiva; a prova é que uma anomalia respiratória grave lesiona gravemente a capacidade intelectiva do homem e não só o seu cérebro.
- A unidade sistemática da realidade humana pode ser comparada à unidade duma orquestra sinfónica que executa um concerto; acaso vai-se dizer que quando o metal faz silêncio é que não intervém?; é claro que intervém: passivamente; não esqueçamos que os silêncios são parte integrante essencial da música tanto quanto as notas.
+ Assim pois, que o homem em cada um de seus atos vai realizando a sua personalidade, quer dizer, a figura concreta da sua personeidade, consiste em que realiza a figura concreta da sua realidade vital-pessoal “inteira”, desde as suas notas bio-químicas até as suas notas espirituais.
- Assim, por exemplo, quando um homem faz exercício físico, em determinadas condições que agora não vamos detalhar, não só se está configurando anatomo-fisiologicamente como uma realidade atlética, mas, unitariamente, se está configurando espiritualmente como uma realidade adoradora do corpo, moralmente como uma realidade exibicionista, etc.
- A mesma coisa: quando um homem mergulha em profunda oração, também em determinadas circunstâncias que agora não vamos detalhar, não só se está configurando espiritualmente como uma realidade que acata, suplica e se refugia na divindade, mas, unitariamente, se está configurando anatomo-fisiologicamente como uma realidade relaxada, distendida, etc.
= A unidade essencial personeidade-personalidade que constitui a concreta realidade vivente pessoal de cada homem faz que cada homem seja pessoalmente sempre “ele mesmo” mas nunca “o mesmo”.
# Em virtude de sua personeidade, cada homem é pessoalmente sempre “ele mesmo”, porque a personeidade é algo que simplesmente se é, e que se é “mesmamente”; cada homem é sempre a mesma personeidade, quer dizer, é sempre “sua” mesma própria realidade vivente enquanto realidade.
# Mas, em virtude de sua personalidade, cada homem jamais é pessoalmente “o mesmo”, porque a personalidade não é algo que simplesmente se é, mas algo que inexoravelmente cada homem vai realizando, modelando, fazendo, configurando (o verbo não importa agora) em cada um de seus atos vitais pessoais -por triviais que forem- ao longo de todo o seu decurso vital pessoal, desde o momento da sua concepção até a sua morte; inicialmente só acional-passivamente, depois acional ativo-passivamente.
B. Em virtude de ser realidade vital pessoal, o homem está instaurado no cosmos e no mundo como uma realidade “relativamente absoluta”.
1. Em virtude de ser realidade vital pessoal, o homem está instaurado no cosmos e no mundo como uma realidade “absoluta”.
a. Efetivamente, o homem, como acabamos de descrever, é uma realidade formalmente sua (personeidade) e é ele mesmo quem configura concretamente (personalidade) essa sua realidade formalmente sua, em cada um dos seus atos ao longo de todo o decurso da sua vida pessoal.
b. Agora bem, o homem, como toda realidade, está instaurado no cosmos, quer dizer, na unidade respectiva de todo o real, e no mundo, quer dizer, na unidade respectiva de todo o real formalmente enquanto real; em outras palavras: o homem é um momento do cosmos e do mundo.
c. O homem, porém, não é um “mero” momento do cosmos e do mundo, quer dizer, não é, como diriam os clássicos, uma mera res naturalis (coisa natural) a mais, como o é uma pedra (aqui esta um dos erros das vias cósmicas para justificar intelectivamente a existência de Deus, como temos dito), senão que o homem é um momento do cosmos e do mundo mas, de certa maneira, “solto-de” o cosmos e o mundo, quer dizer, é uma realidade instaurada no cosmos e no mundo como realidade “ab-soluta” frente a toda outra e qualquer realidade do cosmos e do mundo.
d. E em virtude do que? Precisamente em virtude de ser o homem uma realidade vital pessoal, quer dizer, em virtude de ser o homem uma realidade formalmente “sua” (personeidade) e de ser ele mesmo quem configura concretamente (personalidade) essa sua realidade formalmente sua, em cada um dos seus atos ao longo de todo o decurso da sua vida pessoal.
2. Mas não nos façamos ilusões…; em virtude de ser realidade vital pessoal, “frente” ao real e “fundado” no real, o homem está instaurado no cosmos e no mundo como uma realidade só “relativamente” absoluta.
a. O homem é realidade vital pessoal, quer dizer, é realidade vital formalmente “sua”, não em si mesmo e por si mesmo, ou seja, não de modo absolutamente absoluto (aqui está um dos erros das vias antropológicas para justificar intelectivamente a existência de Deus, como temos dito), mas formalmente “frente” a toda e qualquer outra realidade, ou seja, de modo só relativamente absoluto, de modo relativo a toda e qualquer outra realidade.
= O homem é certamente uma realidade absoluta, quer dizer, uma realidade “soluta”, uma realidade “solta”.
= Mas o homem é uma realidade absoluta, quer dizer, uma realidade “soluta”, uma realidade “solta”, sendo constitutivamente realidade “soluta-“ab””, “solta-“de”” toda outra e qualquer realidade.
= Isso quer dizer que o homem não é uma realidade absolutamente absoluta, ou seja, soluta ou solta em si mesma e por si mesma, mas uma realidade relativamente absoluta, ou seja, soluta ou solta constitutivamente “de” (=relativamente-a) toda outra e qualquer realidade, portanto, “frente-a” toda outra e qualquer realidade.
= Dito de outro modo ainda: o homem não é “em si mesmo e por si mesmo” um momento absoluto do cosmos e do mundo (não é absolutamente absoluto), senão que é “relativamente ao cosmos e ao mundo” um momento absoluto do cosmos e do mundo (é relativamente absoluto).
b. Mais ainda: o caráter vital pessoal constitutivo (personeidade) do homem não é algo absolutamente absoluto, mas relativamente absoluto, porque emerge constitutivamente do real conteúdo concreto do homem.
= O caráter vital pessoal constitutivo da realidade humana não é algo que repousa sobre si mesmo, quer dizer, não é algo absolutamente absoluto; isso é perfeitamente quimérico.
= Com efeito, o caráter vital pessoal constitutivo da realidade humana é justamente isso: caracter constitutivo “da realidade humana”, quer dizer, repousa em, emerge de, o real conteúdo concreto do homem; em outras palavras, a personeidade do homem é o “modo” de realidade que emerge da “forma” de realidade em que o homem consiste, quer dizer, do real conteúdo concreto do homem.
= Por isso temos salientado acima que aquilo que abre a realidade humana a ser realidade vital pessoal é justamente um momento do seu real conteúdo essencial: a sua inteligência senciente, o seu sentimento afetante e a sua vontade tendente, porque são as estruturas do seu real conteúdo essencial que abrem o homem às coisas, aos demais homens e a si mesmo formalmente enquanto realidades.
c.Tem mais: o homem realiza a figura concreta (personalidade) da sua realidade vital pessoal (personeidade), em cada um de seus atos, não de modo absolutamente absoluto, mas de modo relativamente absoluto, quer dizer, “com” o real, ou seja, com a realidade das coisas, dos demais homens e de ele mesmo, em definitiva: fundado constitutivamente no real.
= O homem não realiza a figura concreta (personalidade) da sua realidade vital pessoal (personeidade), em cada um de seus atos, desde o nada, desde zero, por assim dizer (isso é quimérico), mas “com” a sua realidade concreta, que é aquela que é, “com” a realidade concreta dos demais homens que o rodeiam, digamos assim, que também é aquela que é, e “com” a realidade concreta das coisas do seu meio, que também é aquela que é.
= Neste aspecto, é claro que o homem realiza sim a sua personalidade em cada um de seus atos, mas fundado constitutivamente no real, quer dizer, é claro que o homem é sim realidade absoluta, mas não absolutamente, senão relativamente, ou seja, constitutivamente fundado no real com o que realiza a sua personalidade.
3. Justamente nesta problemática unidade de absolutidade e de relatividade em que consiste a realidade vital pessoal do homem radica o caráter de “inquietude” constitutivo da sua real vida pessoal.
a. O homem pode estar inquieto na sua vida pessoal (e o está), por muitas coisas; mas, sob todas essas inquietudes vitais pessoais dele, palpita “a” inquietude radical da vida pessoal do homem: a “problematicidade do absoluto”, quer dizer, a problematicidade constitutiva do caráter absoluto da sua realidade vital pessoal.
b. Essa problematicidade constitutiva do caráter absoluto da realidade vital pessoal do homem e essa consequente inquietude constitutiva da sua real vida pessoal consiste em que o homem, que é realidade absoluta em virtude do conteúdo da sua própria realidade, vê-se abocado, em virtude desse mesmo conteúdo da sua própria realidade, portanto queira ou não queira, a “ter que sê-lo relativamente” em três dimensões.
= Primeira, o homem vê-se abocado, queira ou não queira, a ter que ser absoluto frente a toda e qualquer realidade, portanto, inclusive frente à sua própria realidade.
= Segunda, o homem vê-se abocado, queira ou não queira, a ter que ser absoluto tendo que realizar a figura concreta da sua realidade absoluta fundado constitutivamente no real, ou seja, realizando-a “com” a realidade das coisas, dos demais homens e de si mesmo.
= Terceira, o homem vê-se abocado, queira ou não queira, a ter que ser absoluto tendo que realizar a figura concreta da sua realidade absoluta em todos e cada um dos atos vitais pessoais do seu decurso vital pessoal inteiro.
c. Daí que, em virtude dessa problematicidade constitutiva do caráter absoluto da sua realidade vital pessoal e dessa consequente inquietude constitutiva da sua real vida pessoal, o homem padece radicalmente a “fadiga” de ter que ser relativamente absoluto.
C. Em cada um dos seus atos, ao longo de todo o decurso da sua vida, o homem inexoravelmente vai realizando a sua personalidade religado constitutivamente ao poder do real como último, possibilitante e impelente, quer dizer, à “deidade”.
1. O homem configura concretamente a sua personalidade, em cada um dos atos de sua vida pessoal, fundado constitutivamente no real “enquanto real”.
a. Temos dito, e é óbvio, que o homem configura concretamente a sua personalidade, em cada um dos atos da sua vida pessoal, “com” a realidade das coisas, dos demais homens e de si mesmo.
b. Está claro, que este “com” não é um momento “relacional consecutivo” à realidade vital pessoal que o homem configura concretamente, mas um momento “respectivo constitutivo” dela; quer dizer, o homem configura concretamente a sua personalidade, “constitutivamente fundado em” a realidade das coisas, dos demais homens e de si mesmo.
c. Isto quer dizer que o homem configura concretamente a sua personalidade em cada um dos seus atos com o “conteúdo” real das coisas, dos demais homens e de si mesmo; isto é óbvio; mas aquilo que quer dizer, radicalmente, é que o homem configura concretamente a sua personalidade em cada um dos seus atos com o conteúdo “real” enquanto tal das coisas, dos demais homens e de si mesmo.
= O “conteúdo” real das coisas, dos demais homens e de si mesmo com o que o homem configura concretamente a sua personalidade, poderá ser este, esse, aquele ou aquele outro.
= Mas com aquilo que o homem configura concretamente a sua personalidade é sempre a realidade enquanto tal, seja esta, essa, aquela ou aquela outra.
2. O homem configura concretamente a sua personalidade, em cada um dos atos da sua vida pessoal, fundado constitutivamente no real enquanto real “como último, possibilitante e impelente”.
a. Ao afirmar que o homem configura concretamente a sua personalidade “com” a realidade (das coisas, dos demais homens e de si mesmo) estamos expressando nesse “com” a unidade de três momentos dele: “em”, “desde” e “por”.
= Em cada um dos seus atos, o homem configura concretamente a sua personalidade “em” a realidade em que está.
= Em cada um dos seus atos, o homem configura concretamente a sua personalidade “desde” a realidade em que está.
= Em cada um dos seus atos, o homem configura concretamente a sua personalidade “por” a realidade em que está.
b. Em virtude disto, a realidade enquanto tal, fundado constitutivamente na qual o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal, tem caráter de ser “última”, “possibilitante” e “impelente”, quer dizer, de ser o fundamento “último”, “possibilitante” e “impelente”, fundado constitutivamente no qual, o homem configura concretamente a sua personalidade em cada um de seus atos.
= A realidade enquanto tal é aquilo “em” o qual o homem se funda “ultimamente” para realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos; a realidade enquanto tal é assim o fundamento “último” do homem na configuração concreta da sua personalidade.
= A realidade enquanto tal é aquilo “desde” o qual o homem está fundantemente “possibilitado” a realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos; a realidade enquanto tal é assim o fundamento “possibilitante” do homem na configuração concreta da sua personalidade.
# Todo ato vital pessoal do homem, no qual inexoravelmente realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal, é constitutivamente a realização, por parte do homem, dumas “possibilidades” que lhe oferece a realidade enquanto tal das coisas, dos demais homens e de si mesmo, em ordem precisamente a configurar concretamente a sua personalidade.
# Daí que a realidade enquanto tal seja a fonte fundamental de todas as “possibilidades” que o homem tem de realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos.
= A realidade enquanto tal é aquilo “por” o que o homem está fundantemente “impelido” a realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos; a realidade enquanto tal é assim o fundamento “impelente” do homem na configuração concreta da sua personalidade.
# Já dissemos antes que o homem, queira ou não queira, está inexoravelmente impelido a ter que realizar em cada ato dele a figura concreta da sua realidade vital pessoal, justamente em virtude do conteúdo essencial da sua própria realidade.
# Agora completamos o que já dissemos: a realidade enquanto tal, não só de si mesmo, mas também dos demais homens e das coisas, impele inexoravelmente o homem, queira ou não queira, a ter que realizar em cada ato dele a figura concreta da sua realidade vital pessoal.
# Em virtude disto, o ter que realizar em cada ato dele a figura concreta da sua realidade vital pessoal, não é só uma “possibilidade” que lhe oferece a realidade enquanto tal das coisas, dos demais homens e de si mesmo, mas uma “impelencia” forçosa e inexorável que lhe vem precisamente da realidade enquanto tal das coisas, dos demais homens e de si mesmo.
3. O homem configura concretamente a sua personalidade, em cada um dos atos de sua vida pessoal, constitutivamente “religado” ao “poder” último, possibilitante e impelente “do real”, quer dizer, à “deidade”.
a. Em virtude de ser o fundamento último, possibilitante e impelente da configuração concreta da personalidade do homem em cada um dos seus atos, a realidade enquanto tal das coisas, dos demais homens e de si mesmo, tem caráter de dominância, de domínio, de “poder” sobre o homem justamente na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos.
= Esta dominância, este domínio, este “poder” da realidade sobre o homem, não é de caráter “causal” (algo sempre problemático e discutível) mas de caráter “fundamental”: o real enquanto tal tem “poder” sobre o homem justa e precisamente enquanto que é o “fundamento” último, possibilitante e impelente da realização pessoal dele.
= O real não é causa do homem, mas estritamente “poder” sobre o homem: o real, enquanto fundamento último, possibilitante e impelente da realização da figura concreta da realidade vital pessoal dele, é dominante sobre o homem, domina o homem, tem poderio sobre o homem, é poderoso para o homem.
b. Assim pois, o real enquanto tal, como fundamento último, possibilitante e impelente da realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem, em cada um dos seus atos, é “poder” sobre o homem, é “o poder do real”, quer dizer, o real como poder; é aquilo que chamaremos com todo rigor de “deidade”.
= Chamamos de “deidade” a realidade enquanto poder último, possibilitante e impelente da realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem, em cada um dos seus atos, por dois motivos: porque o homem desde sempre, do modo que for, tem apreendido o poder da realidade como deidade, e porque o poder da realidade é a via que conduz à divindade, a Deus.
# O termo “deidade”, ainda que a mais de um pensador secularista pareça-lhe tendencioso (problema dele!), qualifica com perfeita adequação não uma teoria ou um invento subjetivo do homem, mas o fato inconcusso do caráter de domínio, de poder, que tem a realidade mesma enquanto fundamento último, possibilitante e impelente da realização concreta da vida pessoal do homem.
# Neste aspecto, a história das religiões é a progressiva apreensão humana das diversas e complexas dimensões da deidade, quer dizer, do poder do real, da realidade como poder: as diversas religiões monoteístas, panteístas e politeístas têm ido atribuindo as diversas dimensões da complexa estrutura da deidade a um Deus único, à divina ordem cosmo-moral do mundo ou a vários deuses, respectivamente.
+ A deidade é um poder “transcendente”: abrange todas as coisas e as transcende.
- O homem tem expressado a transcendência do poder do real dum modo elementar mas estrito: mediante a ideia do alto, do “altíssimo”, porque tem ido inteligindo o poder do real como algo transcendente, elevando os olhos para o céu (não exclusivamente para a abóbada celeste, como nos uranismos dos quais fala Pettazzoni, mas amplamente a tudo aquilo que ela contém: astros [especialmente o Sol, que não só esquenta e dá vida, mas que o vê tudo], trovão, raio, etc.).
- O homem tem expressado também a transcendência do poder do real mediante a idéia de “grandiosidade”, que é atribuída frequentemente, especialmente nas religiões politeístas, aos meteoros, ao trovão, ao raio, etc.
- Finalmente, o homem tem expressado também a transcendência do poder do real mediante a ideia da “identidade com ele mesmo”; quase todos os cultos ao Sol apontam ao fato de que o Sol parece sempre idêntico a si mesmo.
+ A deidade é um poder “vivificante” que preside e regula cronologicamente os ciclos vitais: é um poder vivente que intervém ativamente na vida do homem; no seio das coisas, é o tempo vivo que vai regulando o curso métrico do tempo (khrónos) no qual vão configurando-se todas as coisas; por isso as religiões politeístas (especialmente nas culturas matriarcais) divinizam a Lua, que rege e regula os ciclos das estações, os ciclos fisiológicos, os ciclos da fertilidade, etc.; o poder do real apresenta-se em certo modo como algo cíclico que vai flutuando sobre todos os acontecimentos que constituem o nascimento e a morte das coisas; daí arrancou também a ideia do eterno retorno, do caráter cíclico do tempo.
+ A deidade é um poder “fontanal” das coisas, especialmente dos viventes, que as constitui mediante separação de formas a partir duma indiferenciação inicial de todas elas: nas águas, estão todas as coisas como fundidas; progressivamente, vão brotando delas com a sua forma própria; finalmente, por dissolução nas águas, todas as formas das coisas ficam abolidas; daí que as religiões politeístas tenham divinizado as águas; a idéia das águas vivas, dos rios sagrados e do oceano mesmo como divindade, emerge da apreensão do poder do real como fundidor e separador das formas das coisas.
+ A deidade é um poder “germinador” das coisas: as formas das coisas não só se separam umas das outras, mas se geram umas das outras; daí que as religiões antigas pensaram na divindade da Terra Mãe; nela, por germinação, vão nascendo as coisas umas das outras.
+ A deidade é um poder de “organização” das coisas, especialmente dos viventes: o universo não se apresenta como uma mera soma de coisas, mas como um organismo; os seres vivos não nascem de qualquer maneira, mas adscritos a uns pais, a uma determinada genealogia; esta dimensão do poder do real tem sido plasmada religiosamente, sobretudo, na divinização das árvores, às quais atribui-se a idéia de genealogia.
+ A deidade é o poder do “sucesso”: o poder do real tem o poder de garantir o sucesso no futuro; daí, por exemplo, as divindades agrárias nas culturas agrícolas, que sofrem sempre a incerteza das colheitas.
+ A deidade é o poder da “intimidade pessoal” que vincula os homens em famílias, tribos e nações: o poder do real afeta o homem na sua dimensão pessoal, é o mais nosso de nós mesmos, o mais íntimo de cada um.
- Nas civilizações antigas, o mais íntimo de cada um está unido aos demais por vínculos familiares de sangue: assim aparecem os deuses familiares, as divindades das relações de família; daí também os nomes teóforos familiares nas antigas religiões, por exemplo, nas semitas: 'Abiyah (“Deus, meu pai”), 'Ammiel (“Deus, meu tio”), 'Ajiyah (“Deus, meu irmão”), etc.
- Além disso, o mais íntimo de cada um está unido aos demais por vínculos tribais de sangue: assim aparecem os epônimos das diversas tribos e clãs: em Israel, Yahweh é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, ou seja, um Deus de caráter tribal privado (não se trata dum totemismo, coisa que os semitas nunca têm tido, nem dum sentimentalismo, mas da expressão dum vínculo tribal transcendente); na Fenícia, os ba'al também têm, mais ou menos, esse mesmo caráter.
- Finalmente, o mais íntimo de cada um está unido aos demais por vínculos de soberania nacional: assim aparecem divindades com caráter de rei (no mundo fenício e cananeu, Ba'al é 'Elimelek, [“meu Deus, rei”]; no AT, Yahweh é “Rei de Israel”); outras vezes, a divindade aparece como juiz soberano dos contratos (assim o Deus hindu Varuna que o vê tudo, que tudo o sabe e que, portanto, é o guardião de todos os contratos); a divindade aparece inclusive como soberano cósmico (assim 'Elohim do AT ou o Ba'al Shamen [“Senhor do Céu”], ao que invocavam os judeus de Elefantina).
- Contrariamente ao que diz E. Dhorme, historiador da religião de Israel, tudo isto não é só um mero sentimento de familiaridade do homem com Deus, mas algo perfeitamente estruturado segundo o esquema social desde o qual o homem descobre a estrutura do poder do real; a passagem da família à tribo, ao clã e à nação é, em certo modo, um descobrimento progressivo da riqueza do poder do real.
+ A deidade é um poder que “se cerne sobre a vida e sobre a morte”: o poder do real é um poder que domina os fatos cruciais da existência de toda coisa real, especialmente dos viventes, e, sobretudo, o seu nascimento e a sua morte; daí que, no nascimento, submetido às vicissitudes da concepção, tenha-se invocado divindades como Istar, na Babilónia, Astarté, na Fenícia, ou Venus, na Grécia e no mundo romano; no extremo oposto, estão as múltiplas divindades da morte.
+ A deidade é o poder que “dirige e defende a vida social”: o poder do real não só constitui a coletividade humana (como temos dito), mas a dirige e defende tanto na guerra quanto na paz; daí os deuses guerreiros (Indra, na religião védica; em Israel, Yahweh como Shabaot [“Deus dos exércitos”] e como Deus da guerra) e os deuses da paz (Jahweh caracterizado pela firmeza e pela fidelidade do seu pacto).
+ A deidade é o poder do “destino”: os gregos o chamaram de Moîra; os babilónios, de Nabû.
+ A deidade é o poder que “rege a justeza e a estrutura física e moral do cosmos”: o poder do real rege a unidade tanto física quanto moral do cosmos no qual entram também os homens: essa unidade físico-moral do cosmos os gregos chamaram-na de Díke, e os Vedas, de Rta; estas expressões significam “justeza” e não só justiça, porque abrangem tanto a justiça moral quanto o ajustamento cósmico.
+ A deidade é um poder “sagrado e sacralizante”: o poder do real é um poder que tudo o faz; precisamente por isso a divindade é sagrada e sacralizante, e por isso a realidade inteira (e especialmente o homem) está destinada a ela e se entrega a ela; daí que, em algumas religiões, o sacrifício, fazer o sagrado (sacrum facere), tenha sido personificado como a entidade suprema (assim, por exemplo, a identidade de atman com brahman na especulação brahmânica).
+ A deidade é um poder “moral”: no mundo greco-romano, em época tardia, o poder do real absorveu também as virtudes morais; daí que aparecessem as divindades da Fidelidade, da Fortaleza, da Oportunidade, etc.
+ A deidade é um poder que “tudo enche e que abrange todos os tempos”: por isso, em algumas religiões, o poder do real adquire caráter de espaço, não no sentido do espaço físico, mas de atmosfera que tudo o enche (o cristianismo mesmo fala da imensidade de Deus; os iranianos falam de Deus como Zwasa, que é justamente a atmosfera; encontramos ressonâncias desta dimensão do poder do real nada menos que no próprio Newton, quem chamava o espaço de “sensório divino”...).
+ A deidade é um poder perdurante: o poder do real perdura sempre em perfeita perenidade, é tempo indefinido (assim, no Irã, Zrvan akarana; na Grécia, o àpeiros khrónos; em Israel, El olam, Deus para sempre, eterno).
= A deidade não é nada separado, fora, aparte ou por cima da realidade, mas a realidade mesma enquanto domínio, enquanto poder último, possibilitante e impelente da realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem, em cada um dos seus atos.
c. Que o homem, em cada ato, configura concretamente a sua personalidade fundado constitutivamente no real enquanto tal, como poder fundamental último, possibilitante e impelente, ou seja, como deidade, consiste exatamente em que o homem, constitutivamente, está “fisicamente religado” ao poder do real, à deidade na sua realização vital pessoal.
= Certamente, a deidade, o poder do real, não é uma espécie de “força física” que atua sobre o homem ao modo da gravidade ou do electromagnetismo; seria grotesco.
= Porém, por tudo o que temos dito, é mais certo ainda que a deidade, o real enquanto poder, é rigorosamente um “poder físico” sobre o homem, quer dizer, que o real é “fisicamente” (e não intencionalmente, psicologicamente, subjetivamente, moralmente, ou coisas semelhantes) poderoso, dominante, sobre o homem; e isto, ao menos, por dois motivos:
# Primeiro, porque é um ato rigorosamente físico cada um dos atos nos quais o homem unitariamente realiza uma determinada ação e a figura concreta da sua realidade vital pessoal, fundado constitutivamente na deidade, no poder do real.
# Segundo, e sobretudo, porque a deidade, quer dizer, a realidade enquanto tal das coisas, dos demais homens e de si mesmo, em cujo poder se funda constitutivamente o homem para realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal, é rigorosamente física.
= Por conseguinte, o homem, constitutivamente, está fisicamente religado à deidade, ao poder do real na sua realização vital pessoal.
# Certamente o homem está fisicamente “ligado” ao poder do “conteúdo” real das coisas, dos demais homens e de si mesmo, na configuração concreta da sua personalidade, em cada um dos seus atos; isso o vê qualquer um.
# Mas -e isto é o fundamental da questão- unitariamente e radicalmente o homem está fisicamente “re-ligado” à deidade, ao poder do conteúdo “real” das coisas, dos demais homens e de si mesmo, na configuração concreta da sua personalidade, em cada um dos seus atos; quer dizer, o homem, constitutivamente, está “fisicamente “religado”” à deidade, ao poder do real na sua realização vital pessoal; isto é aquilo que era preciso ver.
= Nisto consiste a religação do homem à deidade, ao poder do real: a realidade é o poder fundamental último, possibilitante e impelente, religado constitutivamente e fisicamente ao qual, o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos, ao longo de todo o decurso de sua vida pessoal; em outras palavras: o homem se realiza concretamente como pessoa só religado à deidade, de tal modo que a sua constitutiva religação à deidade constitui nada menos que a “fundamentalidade” da realidade vital pessoal do homem.
# A religação do homem à deidade não é um mero vínculo a mais dele, nem muito menos uma espécie de sentimento de dependência do real, mas é, nada menos, que a sua versão constitutiva e formal à “fundamentalidade” de toda a sua vida pessoal.
# Além disso, o homem não está religado à deidade neste ou naquele aspecto dele, mas em todas e cada uma das dimensões da sua realidade vital pessoal, porque, como antes dissemos, em cada um dos seus atos, por trivial que for, o homem configura concretamente todos e cada um dos momentos da sua realidade vital pessoal, desde os bioquímicos aos espirituais.
# Portanto, a religação do homem à deidade é, nada menos, que a “raiz” mesma, o mais radicalmente fundamental, da realidade vital pessoal do homem; daí que a religação do homem à deidade não é nem algo meramente cósmico nem algo meramente antropológico (só que um pouco mais “completo”), mas algo unitariamente e radicalmente “antropológico-cósmico”.
+ A religação do homem à deidade seria algo meramente antropológico se consistisse numa “relação” do homem com a realidade das coisas, dos demais homens e de si mesmo, e, portanto, algo “consecutivo” às necessidades, à indigência, ou a algo semelhante, da realidade vital pessoal do homem.
+ Mas isso não é assim; a religação do homem à deidade é a estrutura “respectiva” homem-realidade na qual acontece nada menos que a fundamentalidade da realização concreta da realidade vital pessoal do homem, e, portanto, é algo “constitutivo” da mesma.
+ Alem disso, a religação do homem à deidade é a sua religação à realidade enquanto poderosa, ao poder da realidade seja das coisas, seja dos demais homens, seja do homem mesmo, portanto, de toda e qualquer realidade, seja cósmica seja humana, incluída, obviamente, a própria realidade vital pessoal do homem mesmo; por conseguinte, também por este lado, a religação do homem à deidade não é algo antropológico antiteticamente distinto do cósmico, mas o acontecer mesmo de toda realidade no homem e do homem em toda realidade.
D. A deidade, o poder do real, religado fundamentalmente ao qual, o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos, ao longo de todo o decurso de sua vida pessoal, se funda na realidade absolutamente absoluta que é Deus.
1. A deidade, o poder do real, religado fundamentalmente ao qual, o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos, ao longo de todo o decurso da sua vida pessoal, é radicalmente o poder da realidade simpliciter.
a. Quando distinguimos entre o poder do “conteúdo” real do real e o poder do conteúdo “real” do real, não estamos riçando o riço da sutileza conceptual, mas estamos “tocando” nada menos que o enigma constitutivo do real e, consequentemente, do poder do real; vejamo-lo.
b. O enigma constitutivo do real
= “Realidade” não é algo separado, fora, aparte ou por cima das coisas reais (não é algo assim como uma espécie de pélago em que bóiam as coisas ou de envoltório extrínseco de todas elas), mas é sempre e só um momento físico de cada uma das coisas reais, quer dizer, o momento físico de cada coisa real em virtude do qual essa coisa é “real”, ou seja, tem “de seu”, “em próprio” todas as notas do seu conteúdo concreto.
= “Realidade” é um momento físico das coisas irredutível ao momento físico do conteúdo delas.
# A “realidade” do conteúdo concreto de cada coisa (no sentido amplíssimo do termo “coisa”, ou seja, como simples sinónimo de “algo”), quer dizer, o momento de cada coisa em virtude do qual essa coisa é “real”, ou seja, tem “de seu”, “em próprio” todas as notas do seu conteúdo concreto, é um momento “físico” de cada coisa real mas essencialmente “irredutível” ao conteúdo concreto dessa coisa real.
# Por exemplo, o conteúdo concreto duma “pedra” é um sistema complicadíssimo de notas tais como: sua composição físico-química, densidade, dureza, massa, temperatura, humidade, forma, etc.
# Agora bem, a “realidade” desse conteúdo concreto duma “pedra” não é uma nota a mais desse sistema complicadíssimo de notas que constitui esse conteúdo concreto duma “pedra”; de fato, nenhum geólogo enquanto geólogo encontrará jamais no conteúdo concreto duma “pedra” uma nota física chamada de “realidade”; seria grotesco.
# Quer dizer, então, que a “realidade” do conteúdo concreto duma “pedra” não é um momento “físico” dessa pedra, mas puramente e simplesmente um sutil conceito forjado por mentes febris?
# Absolutamente não! Ainda que a “realidade” do conteúdo concreto duma “pedra” não seja uma nota física a mais desse sistema complicadíssimo de notas que constitui o conteúdo concreto dessa “pedra”, é o momento “físico” do conteúdo concreto dessa pedra, precisamente em virtude do qual essa pedra é pedra “real”, ou seja, tem “de seu”, “em próprio” todas e cada uma das notas do sistema de notas que constitui o conteúdo concreto dessa pedra.
# A prova está nada menos em que, como temos dito acima, justamente esse momento físico de “realidade” das coisas e de si mesmo é o que constitui fisicamente o sentir humano em inteligência senciente, ao afecto humano em sentimento afetante e a tendência humana em vontade tendente, distanciando assim “essencialmente” o homem dos meros viventes, porque o abre a ser “vivente-pessoal” e a ter que configurar concretamente a sua vida pessoal.
+ Se assim não fosse, o homem não passaria de ser o mais complicado dos meros animais, quer dizer, diferente só “gradualmente” do resto dos meros animais.
+ Pois bem, obviamente, isso não é assim; ainda que mais de um despistado teime em considerar o homem simplesmente como o mais perfeito dos meros animais ou teime em viver como um perfeito mero animal, esse tal será sempre um “animal pessoal” que brinca (porque metafisicamente não pode fazer outra coisa) a considerarse o mais perfeito dos meros animais ou a viver como um perfeito mero animal.
# O que acontece é que, enquanto o momento físico do conteúdo concreto das coisas pertence ao âmbito do óbvio e do ultra-óbvio delas, o momento físico da realidade das coisas pertence ao âmbito do “diáfano” delas, quer dizer, do mais que óbvio delas.
+ Quando apreendemos as coisas, topamos com um momento físico do seu conteúdo concreto, que constitui o âmbito do “óbvio” das coisas, quer dizer, o momento físico do seu conteúdo concreto que nos sai ao encontro sem mais (do latim ob-viare, “sair ao encontro”); por exemplo, se apreendemos uma pedra, topamos sem mais com a sua cor, com a sua forma, com o seu brilho, com o seu peso, com a sua temperatura, etc.
+ O outro momento físico do conteúdo concreto das coisas não pertence ao âmbito do óbvio, mas ao âmbito do “ultra-óbvio” delas; com efeito, para encontrar esse outro momento físico do conteúdo concreto das coisas (por exemplo, os eléctrons, nêutrons e prótons da pedra, a velocidade de suas moléculas, etc.), temos que ir “além” (ultra) do óbvio delas e busca-lo arduamente mediante a ciência ou outras atividades nossas.
+ Há, porém, um momento físico das coisas que não é nem óbvio nem ultra-óbvio, mas mais do que óbvio, óbvio demais, tão óbvio que carece dessa mínima opacidade necessária para que topemos com ele ou para que o encontremos mediante a ciência ou outras atividades; é o âmbito do “diáfano” das coisas, do mais profundo e radical delas: o momento físico de “realidade” do conteúdo concreto das coisas.
# Assim pois, “realidade” é um momento físico das coisas distinto do conteúdo concreto delas: é o momento físico de cada coisa em virtude do qual cada coisa é “real”.
= Agora bem, o momento físico de realidade de cada coisa real, apesar de não ser nada fora dela, “excede” do conteúdo concreto de cada coisa real, é “mais” do que concretamente é cada coisa real; em virtude disso, o momento físico de realidade de cada coisa real é “realidade simpliciter”.
# Dito negativamente: o momento físico de realidade das coisas reais não se esgota naquilo que é concretamente cada uma das coisas reais, nem sequer naquilo que é concretamente a totalidade das coisas reais; o momento físico de realidade duma pedra, de uma árvore, etc. (e assim até enumerar a totalidade das coisas reais), não se esgota naquilo que é concretamente esta pedra, esta árvore, etc. (e assim até enumerar a totalidade das coisas reais).
# Dito positivamente: cada coisa real concreta enquanto “realidade”, e inclusive a totalidade das coisas reais enquanto “realidade”, excede, ou seja, é “mais” do que concretamente é cada coisa real, e inclusive do que é concretamente a totalidade das coisas reais.
# Isto quer dizer, negativamente, que o momento de realidade não se identifica-com nem se reduz-a o conteúdo concreto de cada coisa real ou da totalidade das coisas reais; positivamente, quer dizer que o momento físico de realidade de cada coisa real ou da totalidade das coisas reais, sem ser nada fora delas, é, porém, nelas, “realidade simpliciter”, quer dizer, a pura e simples “realidade” do real, “a” realidade enquanto tal do real.
c. Em virtude disso, o poder do real, ao qual está religado fundamentalmente o homem na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos, ao longo de todo o decurso da sua vida pessoal, é radicalmente o poder da realidade simpliciter.
= Podemos dizer que cada coisa real, de alguma maneira, “veicula”, ou seja, leva fisicamente, no seu momento de realidade, a realidade simpliciter e o seu poder ao qual está religado constitutivamente e fisicamente o homem na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um de seus atos, ao longo de todo o decurso da sua vida pessoal.
= Por conseguinte, o poder físico do real, apesar de não ser um poder que está separado, fora, aparte ou por cima do poder das coisas reais concretas, é, porém, nelas, o poder físico da “realidade simpliciter”, quer dizer, da pura e simples “realidade” do real, de “a” realidade enquanto tal do real.
2. A realidade simpliciter e o seu poder, ao qual está religado fundamentalmente o homem na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um de seus atos, ao longo de todo o decurso da sua vida pessoal, está fundado em Deus, quer dizer, numa realidade absolutamente absoluta, diferente, mas não separada, das coisas reais e do seu poder, que está formalmente nelas constituindo-as como reais e como poderosas.
a. O enigma da realidade e a consequente problematicidade da religação do homem ao poder do real.
= Voltemos a considerar o enigma da realidade.
# Em que consiste esse enigma do momento físico de “realidade” de cada coisa real, que, dum lado, é o momento em virtude do qual cada coisa concreta é “realmente” aquilo que é na sua concreção, e que, de outro lado, é um momento que é “mais” daquilo que cada coisa real é realmente em concreto?
+ Cada um destes dois aspectos do momento físico de “realidade” de cada coisa real, tomado por si mesmo, é algo inegável e não tem nada de enigmático: inegavelmente, cada coisa real é “realmente” aquilo que concretamente é; inegavelmente, ser realidade é “mais” que ser esta pedra, esta árvore, etc.
+ O enigma está em que, também inegavelmente, trata-se de dois aspectos dum único e mesmo momento físico, quer dizer, do momento físico de “realidade” de cada coisa real.
# Poder-se-ia pensar que o enigma da realidade provem da torpeza e da falta de precisão e rigor das nossas ideias acerca da realidade; sem dúvida, há bastante disso, mas é falso que haja só isso; porque o enigma da realidade radica formalmente na estrutura constitutivamente ambivalente do momento físico de “realidade” de cada coisa real.
+ O momento físico de “realidade” de cada coisa real, imerso, dum lado, na coisa real, faz que cada coisa real seja “sua” irredutível realidade, e unitariamente, expandido, de outro lado, desde cada coisa real, faz que cada coisa real, enquanto real, seja “mais” daquilo que realmente é, quer dizer, que seja presença de “a” realidade nela.
+ Em outras palavras: cada coisa real, enquanto real, é essa enigmática e imbricada ambivalência que consiste em ser “esta” realidade concreta e presença de “a” realidade simpliciter.
= Em virtude do enigma constitutivo da realidade, a religação do homem ao poder do real é constitutivamente problemática.
# O caráter enigmático da realidade não é algo alheio ao poder do real; tudo pelo contrário: o poder do real é constitutivamente enigmático porque é o poder duma realidade que é constitutivamente enigmática.
# Em virtude disso, precisamente porque a realidade e o poder do real são constitutivamente enigmáticos, o homem está fisicamente religado em forma problemática ao poder do real na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos.
b. O homem tem a vivência concreta do caráter enigmático do real e do poder do real e, consequentemente, da problematicidade da sua religação ao poder do real, na “inquietude radical” que experimenta ao realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, da qual temos falado antes.
= A inquietude radical da vida pessoal do homem não consiste em na agitação que experimenta, por grande que for, ao sentir-se tantas vezes como que arrastado pelo turbilhão das vicissitudes da vida.
= A inquietude radical da vida pessoal do homem consiste em algo muito mais grave e profundo: em que, até no menor dos seus atos, ao ter que configurar a sua realidade vital pessoal de modo relativamente absoluto, apoiado no poder do real como último, possibilitante e impelente, sente expressamente ou surdamente este duplo interrogante: O que vai ser de mim? O que vou fazer de mim?
# A minha religação constitutiva à deidade, ao poder da realidade de mim mesmo, dos demais homens e das coisas, me leva “forçosamente” a ter que realizar a figura concreta da minha realidade vital pessoal em todos e cada um dos meus atos.
# Isso significa que a minha religação constitutiva à deidade, ao poder da realidade de mim mesmo, dos demais homens e das coisas, me leva “fisicamente” (e não só intelectivamente, etc.) a ter que realizar a figura concreta da minha realidade vital pessoal em todos e cada um dos meus atos, e que me leva “problematicamente” a ter que fazê-lo, porque na minha religação à deidade experimento a problematicidade da minha realidade vital pessoal.
c. Pois bem, a sua religação constitutivamente problemática ao poder último, possibilitante e impelente duma realidade que é constitutivamente enigmática, vivida concretamente na inquietude radical da sua vida, lança inexoravelmente o homem em busca dum fundamento que resolva essa problematicidade da sua religação ao poder dessa enigmática realidade na realização concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos.
= Não é que o homem busque o fundamento que resolva a problematicidade da sua religação ao poder da enigmática realidade em virtude duma espécie de curiosidade intelectual ou de impulso sentimental ou de capricho volitivo.
= É que o homem é lançado inexoravelmente a buscar o fundamento que resolva a problematicidade da sua religação ao poder da enigmática realidade, precisamente em virtude de que a realidade e o seu poder enigmáticos ao que está problematicamente religado, ao serem inteligidos sencientemente pelo homem como “realidade em para”, o “lançam fisicamente” a buscar intelectivamente o fundamento que resolva a problematicidade da sua religação ao poder da enigmática realidade.
d. Lançado inexoravelmente o homem em busca dum fundamento que resolva essa problematicidade da sua religação ao poder dessa enigmática realidade na realização concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, vai-se perfilando problematicamente no homem a idéia de Deus.
= Vivendo pessoalmente, quer dizer, auto-possuindo a sua própria realidade em todas as suas dimensões, o homem faz o seu próprio si mesmo movendo-se religadamente na deidade, no poder do real.
= Daí que, religado fundamentalmente à deidade na realização concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, o homem experimenta problematicamente o poder do real como o seu fundamento último, possibilitante e impelente; o seu mover-se religadamente na deidade, no poder do real na realização concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, é um mover-se problematicamente, porque o poder do real é constitutivamente enigmático.
= Nesta experiência, que é experiência vital pessoal e, portanto, unitariamente individual, social e histórica, inexoravelmente vai-se esboçando no homem o perfil duma idéia de Deus, quer dizer, do fundamento da deidade, do poder do real, seja para afirmar a realidade de Deus, seja para negá-la, seja, inclusive, para ignorá-la, porque não sabe bem ainda se a deidade, o poder do real, força-lhe ou não a chegar a uma realidade divina como fundamento último, possibilitante e impelente dele.
# Não se trata duma idéia de Deus meramente nominal arbitrariamente escolhida ou de uma vaguidade verbal mais ou menos solene.
# Trata-se da idéia de Deus que problematicamente vai ganhando no homem um perfil cada vez mais preciso justamente na experiência da fundamentalidade religante da deidade, do poder do real, na realização concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos: Deus enquanto Deus, quer dizer, o fundamento último, possibilitante e impelente da deidade, do poder do real.
= Por conseguinte, não é que o problema de Deus seja um dos problemas que o homem tem, ou que seja o mais transcendental dos problemas que o homem tem; é que o homem é constitutivamente “problema de Deus”.
# Com efeito, o problema de Deus não concerne radicalmente ao homem enquanto “forma” de realidade, ou seja, ao conteúdo real do homem, quer dizer, àquilo que usualmente costuma ser chamado de “natureza” do homem, mas ao homem enquanto “modo” de realidade, ou seja, à “pessoa” que é o homem, quer dizer, à realidade vital pessoal do homem que ele realiza concretamente em cada um dos seus atos.
# Daí que o problema de Deus não é um problema meramente intelectivo ou sentimental ou volitivo que o homem tem, ou um dos problemas que lhe coloca uma das suas funções vitais entre outras; o problema de Deus é nada menos que o problema da fundamentalidade da realização vital pessoal do homem, quer dizer, o problema do fundamento radical da deidade, do poder do real, ao qual o homem está constitutivamente religado na realização concreta da sua realidade vital pessoal em todos e cada um dos seus atos.
# Religado fundamentalmente à deidade, ao poder do real, na sua realização vital pessoal, o homem, em todos e cada um dos seus atos, está unitariamente configurando concretamente a sua realidade vital pessoal e tomando posição, do modo que for (a maioria das vezes ignorando-o), frente ao fundamento (Deus) do fundamento (deidade) da sua realização vital pessoal.
+ O homem vive problematicamente a sua realidade vital pessoal, quer dizer, experimenta a inquietude radical da realização concreta da sua realidade vital pessoal: O que vai ser de mim? O que vou fazer de mim?
+ Pois bem, na vivência problemática, na experiência da inquietude radical da sua realização vital pessoal, o homem experimenta unitariamente (saiba-o explicitamente ou não) o problema de Deus: Em que se funda, ultimamente, possibilitantemente e impelentemente, a deidade, o poder da realidade das coisas, dos demais homens e de mim mesmo, que me religa fundamentalmente na realização concreta da minha realidade vital pessoal em todos e cada um dos meus atos?
# Por conseguinte, a vida pessoal do homem é constitutivamente o desdobramento no homem do problema de Deus: a inexorável e constitutiva realização concreta da realidade vital pessoal do homem é fundamentalmente problema de Deus; em definitiva, a pessoa humana é constitutivamente problema de Deus.
e. Lançados inexoravelmente em busca do fundamento que resolva a problematicidade da nossa religação à deidade, ao poder da enigmática realidade na realização da figura concreta da nossa realidade vital pessoal em cada um dos nossos atos, encontramos intelectivamente a Deus, quer dizer, à realidade absolutamente absoluta, diferente, mas não separada, das coisas reais e do seu poder, que está formalmente nelas constituindo-as como reais e como poderosas.
= A deidade, o poder das coisas reais ao que estamos constitutivamente religados na configuração concreta da nossa realidade vital pessoal é o poder do conteúdo concreto de realidade que possuem essas coisas reais.
= Porém, esse poder do conteúdo concreto de realidade das coisas reais não repousa sobre si mesmo, mas se funda no poder da realidade enquanto tal do conteúdo concreto das coisas reais, quer dizer, no poder da realidade simpliciter.
# Com efeito, realidade é “mais” que toda e qualquer coisa real concreta, porque ser real é “mais” que ser realmente em concreto isto, isso, aquilo, etc.
# A mesma coisa: o poder do real é “mais” que o poder de toda e qualquer coisa real concreta, porque o poder do real é “mais” que o poder real concreto disto, disso, daquilo, etc.
= Agora bem, a realidade simpliciter e o poder dela não se fundam nas coisas reais concretas e no poder delas, porque todas as coisas são reais e poderosas, mas nenhuma delas nem a totalidade delas é a realidade simpliciter nem o poder dela; a realidade simpliciter e o poder dela também não se fundam em si mesmos, porque não são nada separado, fora, aparte ou por cima das coisas reais; em que se fundam, então?
= Filosoficamente não há outra resposta: a realidade simpliciter e o poder dela, quer dizer, a deidade à qual estamos constitutivamente religados na realização relativamente absoluta da figura concreta da nossa realidade vital pessoal em cada um dos nossos atos, se funda numa realidade absolutamente absoluta, quer dizer, em Deus: só porque a realidade absolutamente absoluta, que é Deus, existe e a funda, existe a realidade simpliciter e o poder dela, quer dizer, a deidade à qual estamos constitutivamente religados na realização relativamente absoluta da figura concreta da nossa realidade vital pessoal em cada um dos nossos atos.
# Deus está presente nas coisas reais constituindo-as formalmente como reais.
+ Deus não está presente nas coisas reais primariamente como a causa o está no seu efeito; Deus está presente primariamente nas coisas constituindo-as formalmente como reais.
+ Que Deus seja causa eficiente das coisas é, em todo caso, uma interpretação ulterior a partir de algo primário: da presença formal de Deus nas coisas.
# Esta presença formal de Deus nas coisas reais consiste em que a realidade enquanto tal de cada coisa está constituída fundadamente “em” Deus.
+ Deus, a realidade absolutamente absoluta, não é uma realidade que está aí “ademais” das coisas reais e como oculta por trás delas; Deus é uma realidade que está nas coisas reais mesmas de modo formal fundante.
+ Portanto, Deus é absolutamente diferente mas não separado de cada uma das coisas reais e da totalidade delas, já que está presente formalmente em cada uma das coisas reais e na totalidade delas constituindo-as formalmente como reais.
# Em virtude disso, toda coisa real é realidade intrinsecamente ambivalente fundada formalmente em Deus.
+ Por um lado, cada coisa real é a sua irredutível realidade concreta; por outro lado, cada coisa real, enquanto pura e simples realidade, é realidade simpliciter.
+ Pois bem, sem Deus “em” cada coisa real, quer dizer, sem a realidade absolutamente absoluta que está formalmente constituindo cada coisa como real, esta não seria puramente e simplesmente real, nem seria a sua irredutível realidade concreta.
+ A ambivalência da realidade e do seu poder consiste radicalmente na unidade deste duplo momento de cada coisa real: não é Deus e está formalmente constituída em Deus.
- Por isso cada coisa real é “sua” realidade e é “momento da realidade simpliciter”.
- Por isso cada coisa real é realmente poderosa e é momento do poder do real enquanto tal: é deidade.
# Assim pois, a realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem, em cada um dos seus atos, se funda radicalmente em Deus, que está presente formalmente em cada uma das coisas constituindo-as como reais e como poder do real, como deidade à qual o homem está fisicamente religado na configuração concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos.
+ O homem, em cada um dos seus atos, por trivial que for, realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal fundado ultimamente, possibilitantemente e impelentemente na deidade, no poder da realidade das coisas, dos demais homens e de si mesmo.
+ Mas isso só é possível em virtude de que as coisas, os demais homens e o homem mesmo são constitutivamente “reais” em Deus; com efeito, sem Deus como momento formalmente constitutivo da realidade enquanto tal das coisas, dos demais homens e do homem mesmo, careceriam da condição primária e radical para ser deidade, para ser poder último, possibilitante e impelente da realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem, porque simplesmente não seriam “realidade”.
+ Em outras palavras: a realidade vital pessoal do homem se funda em Deus que está presente de modo formalmente constituinte naquilo que as coisas, os demais homens e o homem mesmo têm de reais.
+ Tanto é assim, que as coisas, os demais homens e a sua própria humanidade, ao darem ao homem a realidade como poder, como deidade ao fundamentar ultimamente, possibilitantemente e impelentemente a realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal, em cada um dos seus atos, estão dando-lhe nessa realidade e nesse poder do real, nessa deidade, Deus mesmo.
f. Assim temos justificado intelectivamente a existência da realidade de Deus, fundamentando-a não num raciocínio especulativo mas na intelecção da marcha efetiva da nossa física religação à deidade, ao poder do real na configuração concreta da nossa realidade vital pessoal em cada um dos atos do nosso decurso vital.
= Obviamente, esta justificação intelectiva da existência da realidade de Deus não é uma “prova” ao estilo duma demonstração matemática.
= É que não pode ser de outro modo; uma correta justificação intelectiva da existência de Deus é, e será sempre, ressonância viva da marcha efectiva da realização concreta da vida pessoal do homem fisicamente religado ao poder do real, à deidade.
# Justificar intelectivamente a existência da realidade de Deus jamais será questão de montar raciocínios especulativos, mas de explanar intelectivamente, em discussão viva e às apalpadelas, a fundamentalidade da nossa experiência física de religação à deidade, ao poder do real, na realização concreta da nossa vida pessoal.
+ É uma explanação “intelectiva”, e, portanto, envolve necessariamente um momento de rigorosa fundamentação intelectiva.
+ Mas é a explanação duma experiência, duma provação física da realidade da fundamentalidade da nossa religação à deidade, ao poder do real, na configuração da nossa realidade vital pessoal, e, portanto, terá sempre essa ressonância viva de “problema”, própria do caráter da nossa vida pessoal.
# Daí que Deus não seja primária e radicalmente causa primeira, motor imóvel, etc. (a um Deus assim ninguém jamais dirigiu uma oração; a célebre exclamação “Tu causa causarum miserere mei!” Ó tu, causa das causas, tende compaixão de mim!] carece formalmente de sentido teologal).
# Deus é primariamente e radicalmente aquele a quem o homem acata porque é o fundamento “último” da sua realização pessoal, aquele a quem o homem suplica porque é o fundamento “possibilitante” de todas as possibilidades que tem de realização pessoal, e aquele em quem o homem se refugia, porque é o fundamento “impelente” que força-lhe à sua realização pessoal.
= De tudo o que temos dito se desprendem duas consequências importantes.
# Esta justificação intelectiva da existência da realidade de Deus só resulta completa no desenvolvimento inteiro deste curso, que mostra o caráter inconcusso da experienciação física da realidade de Deus por parte do homem.
# Esta justificação intelectiva da existência da realidade de Deus não é nem uma via cósmica nem uma via antropológica, mas unitariamente, e por elevação, “a via da realidade” a cujo poder estamos fisicamente religados na realização concreta da nossa realidade vital pessoal em cada um dos nossos atos.
III
DEUS EM SI MESMO
A. Deus é essencialmente “realidade absolutamente absoluta”.
1. A filosofia e a teologia clássicas entendem por “essência metafísica de Deus” o conceito primário e radical com o qual concebemos a Deus; pois bem, se ainda se quer falar de essência metafísica de Deus, há que dizer duas coisas:
a. A essência metafísica de Deus não é ““ser” supremo”, mas, em todo caso, ““realidade” suprema”.
= A identificação da realidade com o ser é uma grave conseqüência da aceitação da filosofia grega que realizou a ilegítima “entificação da realidade”.
= Ser é sempre e só algo formalmente ulterior à realidade.
# Antes de serem entes, e precisamente para poderem sê-lo, as coisas começam por terem realidade; dito de outro modo: as coisas têm “realidade” (têm “de seu”, “em próprio” todas as suas notas) e ulteriormente “são” (têm atualidade no mundo, quer dizer, estão no mundo, ou seja, na unidade de todas as coisas reais enquanto reais, como explicaremos melhor depois).
# Talvez, um exemplo nos pode ajudar a entender isto.
+ No nascimento duma criança, se diz indistintamente: nasceu uma criança, uma criança foi dada à luz, uma criança veio ao mundo; pois bem, a expressão “nasceu uma criança” acena propriamente à realidade nova, chamada de criança, que teve origem; no entanto, as expressões “uma criança foi dada à luz” e “uma criança veio ao mundo” acenam propriamente ao ser dessa realidade nova, chamada de criança, que teve origem.
+ Agora bem, é obvio que nascer, ter origem (a constituição duma “realidade” nova) é formalmente anterior (não temporalmente anterior!) a ser dado à luz, a vir ao mundo (a começar a “ser”, quer dizer, a começar a estar no mundo, essa realidade nova).
= Pois bem, a ilegítima entificação da realidade é gravissimamente ilegítima quando concerne à realidade de Deus, quando é entificação da realidade divina, porque o ser é algo que concerne só às realidades mundanais; portanto, Deus não é ser nem sequer orlado com o atributo da infinitude: Deus não é ipsum esse subsistens (o ser subsistente, o ente supremo, etc.).
= Nós, seguindo a estrada aberta por Mário Vitorino (Deus não é ente [ón], mas anterior a todo ente [pro-ón]), Johann Eckhart (o ser não se encontra formalmente em Deus; nada daquilo que há em Deus tem razão de ente), etc., afirmamos que a essência metafísica de Deus não é ““ser” supremo”, mas, em todo caso ““realidade” suprema”.
= Ainda que Deus formalmente não “é”, não podemos evitar ter que empregar continuamente (como temos feito e faremos inúmeras vezes neste curso) a expressão “Deus “é” isso”, “Deus “é” aquilo”; isto não contradiz o que acabamos de dizer; isto é algo inevitável em virtude da língua que usamos, contaminada, como muitas outras, pela filosofia ocidental que identifica ser e realidade.
b. A essência metafísica de Deus é “realidade absolutamente absoluta”, como vamos explicar em seguida.
2. Que Deus é realidade absolutamente absoluta significa que é “de seu” (realidade) plenário (absoluto) em si mesmo e por si mesmo (absolutamente).
a. No capítulo anterior, temos dito que o homem é uma realidade relativamente absoluta, porque não é absoluto em si mesmo e por si mesmo, mas “frente” a toda e qualquer outra realidade, quer dizer, de modo relativo a toda e qualquer outra realidade.
b. Pois bem, Deus é realidade absolutamente absoluta, quer dizer, é absoluto “em si mesmo e por si mesmo”, ou seja, não frente a nenhuma realidade, nem sequer frente à sua própria realidade, frente a si mesmo, porque em Deus é inconcebível nenhum “frente-a”; Deus, a Realidade Absoluta, repousa absolutamente por si mesmo em si mesmo, e não frente a si mesmo.
3. Dizer que Deus é absoluto “em si mesmo e por si mesmo” não é outro modo de expressar a clássica identidade em Deus de essência e existência.
a. Alguns filósofos e teólogos clássicos concebem Deus como aquele a cuja essência pertence o existir; segundo eles, a essência metafísica de Deus seria a identidade da sua essência e da sua existência.
b. Pois bem, isto não é exato, ao menos por dois motivos:
= Primeiro, não é exata a concepção clássica da essência de Deus como identidade nele de essência e existência, porque não só a essência de Deus é abismalmente distinta da essência das coisas reais, mas também a sua existência.
# Não basta conceber, como fazem alguns filósofos e teólogos clássicos, que em Deus a existência pertence à sua essência, quer dizer, que Deus é existente por essência; haveria que acrescentar a recíproca, ou seja, que em Deus a essência pertence à sua existência, quer dizer, que a existência de Deus é a sua pura essencialidade.
# Dito de outro modo: Deus é abismalmente distinto das coisas reais não só pela sua essência, quer dizer, porque àquilo em que Deus consiste lhe pertence o existir, mas também pela sua existência, quer dizer, porque ao existir de Deus lhe pertence existencialmente a sua essência, ou seja, aquilo em que Deus consiste.
# É que, em Deus, não só aquilo que chamamos de essência, mas também aquilo que chamamos de existência, é algo completamente distinto daquilo que chamamos de essência e existência tratando-se das coisas reais.
= Segundo, e sobretudo, também não é exata a concepção clássica da essência de Deus como identidade nele de essência e existência, porque essa não é a essência metafísica de Deus, mas “realidade absolutamente absoluta”.
# Deus é realidade absolutamente absoluta, quer dizer, absoluto “de seu”, algo que, por elevação, está além não só da diferença de essência e existência (como dizem alguns filósofos e teólogos clássicos), mas também da identidade nele de essência e existência.
# Dito de outro modo: Deus não é essencialmente realidade absolutamente absoluta porque nele sejam formalmente idênticas a sua essência e a sua existência; ao contrário: em Deus são formalmente idênticas a sua essência e a sua existência porque Deus é realidade absolutamente absoluta, porque é plenário “de seu” em si mesmo e por si mesmo.
B. Deus, realidade absolutamente absoluta, é eo ipso “absolutamente uno e único”.
1. A unidade e a unicidade de Deus vistas desde o mundo, do qual é fundamento.
a. Aristóteles concebeu o seu theós, a sua substância suprema, como motor imóvel do cosmos; ao assumir a astronomia de Eudoxo, que contava 47 ou 55 esferas celestes independentes, admitiu distintos motores imóveis, distintos theós, um para cada cosmos.
b. O fato de não ter distinguido entre cosmos e mundo, constitui uma grave falha de Aristóteles neste problema...; vejamos essa distinção.
= Cosmos é a unidade de todo o real; costumamos chamá-lo também de “universo” porque pensamos que há um só cosmos; mas não é metafisicamente impossível que aquilo que há em realidade não seja universo (um só cosmos) mas “pluriverso” (vários kosmoi cosmicamente incomunicados entre si).
= Mundo é a unidade de todo o real “formalmente enquanto real”; aqui sim que é metafisicamente impossível que haja vários mundos; poder haver um ou vários cosmos; não importa; sempre constituirão metafisicamente um mundo uno e único; num hipotético pluriverso, teríamos vários kosmoi cosmicamente incomunicados entre si, mas perfeitamente comunicados entre si mundanalmente, quer dizer, formando uma mesma e única unidade de todo o real “formalmente enquanto realidade”.
c. Pois bem, Deus é, primariamente e radicalmente, como temos dito no capítulo anterior, fundamento de todo o real “formalmente enquanto real”, que dizer, do mundo; em virtude disso, visto desde o mundo, do qual é fundamento, Deus é uno e único.
d. Mas esta unicidade de Deus, como fundamento único de um mundo único, não é aquilo que nos interessa agora, porque ser fundamento do mundo não concerne àquilo que é Deus “em si mesmo”, que é aquilo que estamos vendo neste capítulo; aquilo que interessa agora é o que segue.
2. Deus é “essencialmente” uno e único.
a. Deus é essencialmente uno e único, quer dizer, a unicidade pertence à essência de Deus, porque a realidade absolutamente absoluta é “absolutamente” una e única.
b. Dito de outro modo: não é que Deus seja único porque não há outros; é que não pode haver outros Deus “em absoluto”, quer dizer, não pode haver outros deuses porque Deus é “em si mesmo e por si mesmo”, ou seja, absolutamente, uno e único.
c. Daí que a unidade e unicidade de Deus não tem caráter “numérico” (não é questão do um, dois, três, etc., da matemática...; nunca há que perder de vista isto na concepção teológica do Deus uno e trino do cristianismo...); para dizer isto de algum modo, diremos que a unidade e a unicidade de Deus têm caráter “trans-numérico” (sempre no sentido de que Deus é uno e único “absolutamente”).
d. Em definitiva: todo e qualquer “politeísmo” (por muito religiosamente fecundo que for) é “metafisicamente impossível”, porque o caráter de unidade e unicidade pertence à essência mesma de Deus enquanto Deus.
C. Deus, a Realidade Absoluta, é eo ipso “suidade dinâmica vital absoluta”.
1. Deus não é uma espécie de ““vaporoso” absoluto”, porque, para começar, não é “o” absoluto, mas “a realidade” absolutamente absoluta e, portanto, “absolutamente concreta”.
a. Que Deus é “absolutamente concreto” significa que Deus é absoluta “real concreção primária” e não algo assim como “realidade concretizada” ou “realidade concreta contraposta à realidade abstrata”.
b. Em outras palavras: não é que a concreção de Deus (em seguida veremos em que consiste) constitua a realidade de Deus (coisa que acontece com as coisas reais: o conteúdo concreto delas constitui a suficiência constitucional ou sustantividade da realidade delas); é que o caráter absolutamente absoluto da realidade de Deus (““de seu” pleno em si mesmo e por si mesmo), justamente enquanto absoluta, “comporta”, “faz “brotar”” (linguagem antropomórfica inevitável!) a concreção absoluta da realidade de Deus.
2. A absoluta concreção de Deus, da realidade absolutamente absoluta, consiste em “suidade dinâmica vital absoluta”.
a. Deus é “suidade absoluta”.
= Com efeito, dizer que Deus é a realidade absolutamente absoluta é puramente e simplesmente dizer que Deus é a realidade absolutamente “sua”, “a sua própria” realidade absoluta, “de seu” absolutamente “seu”, “o seu próprio pleno “de seu” em si mesmo e por si mesmo”.
= Assim pois, Deus é “suidade absoluta”, é absolutamente “pessoal”, é a “personeidade absolutamente absoluta”.
b. Deus é “suidade dinâmica absoluta”.
= Toda coisa real, puramente, simplesmente e precisamente por ser real, é dinâmica, tem caráter de dinamicidade, ou seja, de “dar de si”.
# Dito de outro modo: toda coisa real é real sendo a plenitude daquilo que é; pois bem, a plenitude daquilo que é cada coisa real é justamente o seu momento formal e constitutivo de dinamicidade, de “dar de si”; se é real, se é “de seu” sempre e só “dando de si “de seu””.
# Em outras palavras: a dinamicidade não é um momento “consecutivo” à realidade das coisas reais (como o são, em definitiva, as suas operações concretas), mas é um momento “constitutivo” da realidade das coisas reais; o seu “dar de si” é um momento da constituição formal mesma da realidade das coisas reais (as operações concretas das coisas reais são conseqüentes ao primário e originário “dar de si” constitutivo da sua realidade).
# Daí que sejam muito significativas expressões castelhanas como estas: “la cosa da mucho de sí”; “el tema da bastante de sí”; “éste da poco de sí”; “aquél dio todo de sí”, etc.
= Pois bem, Deus, realidade absolutamente absoluta, é suidade dinâmica absoluta, é absoluto “dar de si” a si mesmo a sua própria realidade absoluta, é “dar de si” em si mesmo e por si mesmo a si mesmo o seu próprio “de seu” plenário.
# A dinamicidade de Deus, o “dar de si” de Deus em si mesmo por si mesmo a si mesmo, precisamente por ser um dar de si “absoluto”, nem é nem pode ser “transitivo” em modo algum, quer dizer, Deus não “se faz outro” nem “se faz a si mesmo”.
# O “dar de si absoluto de Deus é puramente e simplesmente um dar-se a si mesmo aquilo que é como realidade absolutamente sua; (acerca disto terá “algo” a dizer a teologia cristã das chamadas “processões” trinitárias...!).
c. Deus é “suidade dinâmica vital absoluta” (vida dinâmica pessoal absoluta).
= Ao contrário do que costumam dizer a filosofia e a teologia clássicas, achamos que Deus não é pessoa porque é vivente, mas que é vivente porque é pessoa, aliás, porque é pessoa dinâmica absoluta; em outras palavras: a vida de Deus se funda na personeidade dinâmica absoluta dele, na sua suidade dinâmica absoluta, e não ao invés.
# Porque é a suidade dinâmica absoluta, quer dizer, porque se dá a si mesmo a sua própria plena realidade, Deus se auto-possui absolutamente a si mesmo, autopossui absolutamente a sua própria realidade: é vida dinâmica pessoal absoluta.
# Em outras palavras: Deus vive, quer dizer, se autopossui, em suidade absoluta; ao ser absolutamente e dinamicamente pessoal, Deus é absolutamente vida dinâmica pessoal, vida dinâmica pessoal absoluta.
# Dito de outro modo: Deus é o vivente absoluto, quer dizer, Deus se autopossui absolutamente porque é a realidade absolutamente sua dando-se a si mesmo a sua plena realidade absoluta.
= Dizer que Deus é vida dinâmica pessoal absoluta, não quer dizer, como já temos advertido, que Deus “se faça” a si mesmo como realidade, ou seja, que a vida divina seja um “devir” (nem sequer dentro dele mesmo); quer dizer puramente e simplesmente que o único que “acontece” na vida dinâmica pessoal de Deus é o plenário estar presente (=“atualidade”) a ele mesmo a sua própria realidade absoluta: a autopossessão de Deus é auto-atualidade absoluta da sua própria plena realidade.
3. A concreção da vida dinâmica pessoal de Deus consiste em inteligência absoluta, sentimento absoluto e vontade absoluta.
a. Deus vive pessoalmente em inteligência absoluta de si mesmo, em sentimento absoluto de si mesmo e em vontade absoluta de si mesmo.
= Como acabamos de dizer, a vida pessoal de Deus, a sua própria autopossessão absoluta, é a auto-atualidade absoluta da sua própria plena realidade; esta auto-atualidade é, antes de tudo, auto-atualidade “apreensora” da sua própria plena realidade, quer dizer, “inteligência” absoluta de si mesmo; em virtude disso, a vida pessoal de Deus é, antes de tudo, vida pessoal na “inteligência” absoluta de si mesmo, na sua própria “verdade absoluta”.
= A vida pessoal de Deus, a auto-atualidade absoluta da sua própria plena realidade é, também, auto-atualidade “fruinte” da sua própria plena realidade, quer dizer, “sentimento” absoluto de si mesmo; em virtude disso, a vida pessoal de Deus é, também, vida pessoal no “sentimento” absoluto de si mesmo, na sua própria “beleza absoluta”.
= A vida pessoal de Deus, a auto-atualidade absoluta da sua própria plena realidade é, finalmente, auto-atualidade “complacente” da sua própria plena realidade, quer dizer, “vontade” absoluta de si mesmo; em virtude disso, a vida pessoal de Deus é, também, vida pessoal na “vontade” absoluta de si mesmo, na sua própria “bondade absoluta”.
b. Assim pois, a vida pessoal de Deus é vida pessoal absoluta em inteligência, sentimento e vontade, quer dizer, em auto-atualidade apreensora-fruente-complacente da verdade-beleza-bondade da sua própria plenária realidade.
= Deus não “tem” inteligência, sentimento e vontade; Deus “é” inteligência, sentimento e vontade, porque é suidade dinâmica vital absoluta; inteligência, sentimento e vontade são, em Deus, três momentos (?) da sua vida pessoal, da autopossessão da sua própria realidade absolutamente absoluta; a concreção da realidade absolutamente absoluta, que é Deus, é a sua suidade dinâmica vital absoluta; e a concreção da sua vida dinâmica pessoal absoluta é inteligência, sentimento e vontade.
# Em nós homens, a suidade vital, a vida pessoal, é o nosso modo de realidade formalmente consecutivo à nossa forma de realidade, quer dizer, à índole peculiar do conteúdo da nossa realidade, que inclui essencialmente a nossa inteligência, sentimento e vontade.
+ Somos pessoas, somos viventes pessoais “porque” somos inteligentes, sentimentantes e volentes.
+ Dito de outro modo, inteligência, sentimento e vontade são simples factum do nosso conteúdo de realidade, da nossa forma de realidade; só e precisamente em virtude desse factum somos necessariamente pessoas, quer dizer, temos necessariamente esse modo de realidade que consiste em vida pessoal, e só e precisamente em virtude de ser pessoas estamos instaurados no cosmos e no mundo como realidades relativamente absolutas.
# Pois bem, em Deus é exatamente o contrário: Deus é essencialmente a realidade absolutamente absoluta; eo ipso Deus é suidade dinâmica vital absoluta; eo ipso a vida pessoal dinâmica de Deus é autopossessão da sua própria plena realidade absoluta em inteligência, sentimento e vontade.
+ Em Deus, a suidade e a vida não são formalmente consecutivas à sua realidade; ao contrário: em Deus, a sua realidade é princípio formal da sua suidade, a sua suidade é princípio formal da sua vida, e a sua vida é princípio formal da sua inteligência, do seu sentimento e da sua vontade; daí que, em Deus, inteligência, sentimento e vontade são momentos intrinsecamente necessários da sua realidade divina pessoal vital.
+ Inteligência, sentimento e vontade são, em Deus, o seu modo de ser viventemente a sua própria realidade absoluta, o seu modo de viver aquilo que é como realidade pessoal absoluta.
= A filosofia e a teologia clássicas fundamentam estes caracteres divinos na direção inversa à que acabamos de expor: ao considerar que a “analogia” primária e radical do homem com Deus está na sua inteligência e na sua vontade, partem da inteligência e da vontade de Deus, e afirmam que, em virtude delas, Deus é de modo supereminente vivente e pessoal; achamos que a ordem de fundamentação é justamente a inversa.
# A analogia homem-Deus é primariamente e radicalmente “analogia do absoluto”, quer dizer, recai primariamente e radicalmente sobre o caráter de “absoluto”: o homem é realidade “relativamente” absoluta; Deus é realidade “absolutamente” absoluta.
# Em virtude disso, o primariamente e radicalmente analógico não é que haja um vago parecido formal da nossa inteligência, e de nosso sentimento!, e de nossa vontade com a inteligência, sentimento e vontade de Deus, mas que esse “parecido” se funda no caráter “analógico” do absoluto nosso e de Deus.
# Por conseguinte, enquanto no homem a sua realidade vital inteligente, sentimentante e volente é a razão formal da sua suidade, da sua personeidade, em Deus a suidade dinâmica absoluta da sua realidade é a razão formal da sua vida e de que a sua vida seja vida em inteligência, em sentimento e em vontade.
= Ao falar de Deus é inevitável a linguagem antropomórfica; mas é preciso evitar ao máximo conceber antropomorficamente os caracteres de Deus.
# Quando dizemos que Deus é absoluto, único, pessoal, dinâmico, vivo, inteligente, sentimentante, volente, etc., há que evitar o grave erro de considerar estes caracteres no seu sentido antropomórfico, porque Deus não é em absoluto uma espécie de homem gigantesco, uma espécie de imenso espírito humano ou alma humana, depurado de todas as limitações humanas; isso é monstruosamente absurdo; não podemos conhecer como é a realidade de Deus em si mesma olhando-nos a nós mesmos.
# Os caracteres divinos há que considerá-los no estrito sentido em que temos chegado a concebê-los, quer dizer, a partir da realidade absolutamente absoluta que é Deus e não a partir da realidade do homem; por exemplo:
+ Quando dizemos que Deus é “pessoal”, o único que dizemos é que Deus é realidade absolutamente “sua”.
+ Quando dizemos que Deus é “vivente”, entendemos que Deus é a realidade que “se possui plenariamente a si mesma”.
+ Quando dizemos que Deus vive pessoalmente em inteligência, sentimento e vontade, queremos dizer que Deus é “absoluta atualidade a si mesmo da sua própria realidade”, etc.
# Que estes caracteres divinos se encontrem também “de alguma maneira” no homem, é inegável; mas tenhamos em conta o seguinte.
+ Não temos chegado aos caracteres divinos desde o homem, mas desde o que é a realidade absolutamente absoluta.
+ Se o homem possui “de alguma maneira” esses caracteres que são em Deus absolutamente absolutos, é precisamente porque a realidade do homem é relativamente “absoluta”.
IV
DEUS ENQUANTO FUNDAMENTO DA REALIDADE
E DA REALIZAÇÃO DO HOMEM
A. Deus enquanto fundamento da realidade
1. Como já temos dito no capítulo II, Deus é a realidade “fundante”, a realitas fundamentalis da realidade das coisas reais.
a. Mas, antes de tudo, há que esclarecer o seguinte: ser fundamentalidade da realidade das coisas reais não é um caráter constitutivo de Deus, mas um caráter “consecutivo” (absolutamente livre!) dele.
= Com efeito, Deus é real em si mesmo e por si mesmo (=realidade absolutamente absoluta) e não por ser fundamento da realidade das coisas reais.
= Quer dizer, a realidade das coisas reais está constitutivamente fundada em Deus; mas Deus é Deus independentemente de ser fundante da realidade das coisas reais.
= Em outras palavras: ser fundamentalidade da realidade das coisas reais não pertence à essência de Deus (não é ratio essendi Dei), mas, ao máximo, é a via mediante a qual nós, por nós mesmos, podemos conhecer efetivamente Deus (é ratio cognoscendi Dei).
b. Ser fundamentalidade da realidade das coisas reais não é um caráter de Deus primariamente e formalmente enquanto inteligente e volente, mas enquanto Deus, quer dizer, enquanto realidade absolutamente absoluta que, na sua absoluta concreção, é suidade dinâmica vital e que, na absoluta concreção desta sua vida dinâmica pessoal, é vida dinâmica pessoal em inteligência, sentimento e vontade.
= Costuma se pensar, com efeito, que Deus é fundamento da realidade das coisas reais primariamente e formalmente em virtude da sua inteligência e da sua vontade enquanto tais; pois bem, isso não é assim; para que assim fosse, seria necessário que Deus fosse uma espécie de gigantesco espírito humano subjacente às coisas, como pensam todos os animismos, desde os primitivos aos contemporâneos; pois bem, isso, além de ser um antropomorfismo animista monstruosamente absurdo, é um impossível metafísico.
# Com efeito, o homem, ele sim, está aberto desde si mesmo à realidade em virtude da sua inteligência, do seu sentimento e da sua vontade; por isso a realidade vital pessoal do homem é relativamente absoluta, como já temos visto.
# Deus, pelo contrário, é realidade absolutamente absoluta, quer dizer, é realidade plena em si mesmo e por si mesmo; eo ipso, para fundar a realidade das coisas reais, não precisa em modo algum de abrir-se desde si mesmo à realidade em virtude da sua inteligência, do seu sentimento e da sua vontade, senão que a funda diretamente (por assim dizer) desde si mesmo e em si mesmo, sendo puramente e simplesmente aquilo que é: realidade absolutamente absoluta.
= Isso não quer dizer que a fundamentalidade de Deus a respeito da realidade das coisas reais não seja de caráter inteligente, sentimentante e volente; só faltaria!; certamente que o é, mas o é porque tudo aquilo que é Deus, também o seu carácter consecutivo livre de fundamentar a realidade das coisas reais, o é na sua absoluta concreção, quer dizer, na sua suidade dinâmica pessoal, na sua vida dinâmica pessoal, que é vida dinâmica pessoal em inteligência, sentimento e vontade.
= Dito de outro modo: a fundamentalidade de Deus a respeito da realidade das coisas reais é de caráter inteligente, sentimentante e volente, não porque Deus seja fundante da realidade das coisas reais formalmente enquanto inteligente, sentimentante e volente, mas porque a inteligência, sentimento e vontade de Deus são absolutos, quer dizer, porque são a absoluta concreção da sua vida dinâmica pessoal que, por sua vez, é a absoluta concreção da realidade absolutamente absoluta em que Deus consiste e desde a qual funda diretamente a realidade das coisas reais.
c. O fundamentar de Deus a realidade das coisas reais é formalmente um momento (consecutivo livre) do “dar de si” absoluto de Deus, quer dizer, da dinamicidade absoluta da sua vida pessoal absoluta.
= Que Deus funda ou fundamenta a realidade das coisas reais consiste formalmente em que Deus “dá de si” realidade, quer dizer, que “dá de si” a realidade das coisas reais.
= Em outras palavras: Deus está fundamentando a realidade das coisas reais na sua absoluta “dinamicidade” vital pessoal, no seu absoluto “dar de si” vivente pessoal.
= Em princípio fica aberta e em suspenso a questão sobre qual seja mais precisamente a índole deste “dar de si” a realidade das coisas reais, por parte de Deus.
2. A fundamentalidade de Deus a respeito da realidade das coisas reais consiste na presença “transcendente, intramundana e fontanal” de Deus nas coisas reais.
a. Deus está presente “transcendentemente “em”” as coisas reais.
= Como já temos dito, a presença de Deus nas coisas reais é de caráter “formal”, quer dizer, Deus está presente nas coisas reais como “formalidade” fundante delas, ou seja, fundando-as “formalmente” como reais, fundando “formalmente” a realidade delas.
# Isto quer dizer que a presença de Deus nas coisas reais não é algo derivado do presumível caráter de “feitor” (fazedor) das coisas reais; ao invés: a presença fundante de Deus nas coisas reais poderá ter caráter “feitor” das coisas reais, mas em qualquer caso tê-lo-á por ser já presença fundante de caráter “formal” de Deus nas coisas reais.
# Pensar o contrário é - mais uma vez - conceber antropomorficamente a fundamentalidade de Deus a respeito da realidade das coisas reais.
= Precisamente por ser de caráter formal, a presença de Deus nas coisas reais é de caráter “intrínseco”; quer dizer, a presença de Deus não só não é algo extrínseco às coisas reais, senão que é o mais radicalmente “intrínseco” de todas elas.
# Com efeito, a presença de Deus funda formalmente nada menos que o caráter de realidade das coisas reais.
# Dito de outro modo: as coisas reais só são reais sendo-o fundadamente em Deus.
= A presença formal e intrínseca de Deus nas coisas reais é, mais precisamente, presença “transcendente” de Deus “em” as coisas reais.
# Que Deus esteja presente nas coisas reais como intrínseca formalidade fundante da realidade das coisas reais significa unitariamente que entre Deus e as coisas reais há “distinção” real essencial (isto é, que Deus e as coisas reais não se identificam), e que entre Deus e as coisas reais não há “separação” nem física nem metafísica (não confundamos distinção com separação!).
# Pois bem, este caráter da presença de Deus nas coisas reais, em virtude do qual Deus não está separado das coisas reais, senão que está intrinsecamente nelas fundando-as formalmente como reais e, portanto, como realmente e essencialmente distintas dele, é justamente o que chamamos com todo rigor e precisão de “transcendência”, de presença “transcendente” de Deus “em” a realidade das coisas reais.
# A transcendência de Deus é justamente o seu estar presente nas coisas reais “de “modo” tal” que Deus não está separado das coisas reais (as coisas reais, com efeito, não têm realidade alguma senão incluindo [por assim dizer] fundamentalmente na sua realidade a realidade fundante de Deus), mas que é absolutamente distinto das coisas reais (a realidade das coisas reais, com efeito, não se identifica com Deus).
# Em virtude disso, é radicalmente falsa a concepção da transcendência de Deus como o estar de Deus além ou aparte ou fora ou por cima das coisas reais, porque a transcendência de Deus não é “separação” de Deus das coisas reais, mas “presença em distinção” de Deus “em” as coisas reais; em outras palavras: Deus não é “transcendente “a”” às coisas reais, mas “transcendente “em””, as coisas reais.
+ Cada coisa real, na sua realidade, quer dizer, naquilo que é ela em si mesma e por si mesma como real (não fora, nem aparte, nem por cima, nem além da sua realidade), tem um fundo intrínseco e formal transcendente: Deus, que está transcendendo-a nela, dentro dela, não fora dela, etc.
+ Daí que cada coisa real, sem sair-nos dela, mas submergindo-nos no mais profundo dela, nos leva ao próprio fundo transcendente dela: a Deus; estar na plena realidade duma coisa real é eo ipso estar no Deus transcendentemente presente nela; vai-se a Deus, neste sentido, penetrando até o mais profundo das coisas reais, porque cada coisa real, nela mesma, me faz transcender-me em Deus, me dá o fundo transcendente dela que é Deus.
# Por conseguinte, ficam eliminados, por metafisicamente impossíveis, dois erros graves e funestos: o panteísmo e o agnosticismo; a transcendência de Deus não é nem identidade (como pensa o panteísmo) nem separação (como pensa o agnosticismo), mas “presença”.
+ O panteísmo, em todas as suas formas, pensa que a presença formal de Deus nas coisas reais faz delas momentos constitutivos da realidade dele; pois bem, isto é metafisicamente impossível.
- É metafisicamente impossível porque é metafisicamente impossível que Deus deixe de ser Deus, quer dizer, que deixe de ser realidade “absolutamente” absoluta; com efeito, se Deus incluísse constitutivamente, do modo que for, coisas reais relativas, - inclusive relativamente absolutas, como os homens - indistintas da sua realidade, eo ipso teria deixado de ser realidade “absolutamente” absoluta, teria deixado de ser Deus.
- E isso não é assim; Deus está formalmente “em” as coisas reais fundando justamente que as coisas reais sejam “em Deus realidades distintas dele”; as coisas reais são distintas de Deus precisamente e formalmente porque Deus está presente “em” elas “transcendentemente”; em outras palavras: este “em” da presença de Deus “em” as coisas reais é de caráter “alterificante”, ou seja, é um “em” que funda precisamente e formalmente as coisas reais como “realmente “outras” que Deus”.
+ O agnosticismo, em todas as suas formas, pensa que, por ser radicalmente distinto das coisas reais, Deus está separado delas e, em virtude disso, é o grande ausente, o grande afastado, o grande estrangeiro, o grande estranho ao mundo; isto também é metafisicamente impossível.
- É metafisicamente impossível porque é metafisicamente impossível que as coisas reais tenham realidade se Deus está separado delas, já que Deus é o fundamento formal da realidade das coisas reais.
- A transcendência de Deus é transcendência de Deus “em” as coisas reais, não além, fora, aparte ou por cima das coisas reais; que Deus não se identifica com as coisas reais não consiste em que Deus esteja afastado, apartado ou ausente delas (se fosse assim, as coisas reais não teriam realidade), mas consiste precisamente e formalmente em que Deus “está presente em” as coisas reais de tal modo que só são reais “incluindo” fundamentalmente na realidade delas, como fundamento da sua realidade, a realidade que é absolutamente distinta delas: a realidade absolutamente absoluta, ou seja, Deus.
b. Deus está presente “intramundanamente” nas coisas reais.
= Em virtude da constitutiva respectividade da realidade das coisas reais - nas quais Deus está presente transcendentemente -, as coisas reais constituem essa unidade respectiva que chamamos de “mundo”, quer dizer, a unidade de todas as coisas reais “formalmente enquanto reais”; portanto, a presença transcendente de Deus nas coisas reais é formalmente presença transcendente de Deus “no mundo”.
= À unidade e unicidade do mundo corresponde não só a unidade e unicidade de Deus, como já temos dito, mas também a “intramundanidade” transcendente de Deus.
# Deus está presente no mundo não só porque está presente em cada uma das coisas reais, mas precisamente e formalmente porque cada uma das coisas reais nas quais Deus está presente é constitutivamente mundanal, é mundo.
# A fundamentalidade de Deus a respeito da realidade das coisas reais é presença transcendente “intramundanal” de Deus; Deus está transcendentemente presente “no mundo”; o mundo leva formalmente em si a Deus como a sua realidade fundamental!
= Em virtude do seu caráter transcendente, a “intramundanidade” de Deus não é identidade de Deus com o mundo nem é separação de Deus do mundo.
# Não é separação, quer dizer, Deus não é o “outro” mundo, Deus não é extramundano, mas intramundano, ainda que absolutamente.
# Não é identidade, quer dizer, sem ser outro mundo, Deus é “outro que o mundo” em que está presente como a realidade fundamental dele; a absoluta alteridade de Deus é justamente o fundamento formal do mundo e de que o mundo não seja Deus.
c. Deus está presente “fontanalmente” nas coisas reais.
= A presença transcendente intramundana de Deus nas coisas reais não é só formal e intrínseca, mas “constituinte”, quer dizer, constitui fundantemente a realidade das coisas reais, as coisas formalmente como realidade.
= Deus, que é em si mesmo e por si mesmo “absoluto “dar de si””, como realidade fundamental dá de si realidade às coisas constituindo-as como reais.
= Isso significa que a presença transcendente intramundana de Deus nas coisas reais é “fontanal”, quer dizer, é a “fonte” constituinte da realidade das coisas reais; a presença de Deus nas coisas reais é a presença nelas da realitas fontanalis, da fontanalidade da realidade de Deus “dando de si” constituintemente que as coisas sejam realidade, quer dizer, que “de seu” sejam aquilo que são e que atuem “desde, em e por” o que “de seu” são.
B. Deus enquanto fundamento da realização do homem
1. Enquanto fundamento da realização do homem constitutivamente religado à deidade, ao poder do real, Deus é a realidade fundamental “última, possibilitante e impelente”.
a. Lembremos que a deidade é a realidade enquanto dominante, enquanto poder (o poder do real) último, possibilitante e impelente, religado constitutivamente ao qual o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos ao longo de todo o decurso da sua vida.
b. Pois bem, Deus, a realidade fundamental da deidade, é, unitariamente e por elevação, a realidade fundamental última, possibilitante e impelente da realização da vida pessoal do homem.
= Deus é a realidade fundamental “última” da realização da vida pessoal do homem.
# Como acabamos de ver, Deus é a realidade fundamental da realidade; agora bem, a realidade enquanto poder (a deidade) é aquilo ao qual ultimamente está religado o homem na realização da sua realidade vital pessoal, como vimos; por conseguinte, Deus é a realidade fundamental “última” da realização da vida pessoal do homem, quer dizer, a realidade que fundamenta “ultimamente” a deidade (a realidade enquanto poder, o poder do real) religado ultimamente à qual o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um de seus atos.
# Enquanto realidade fundamental “última” da realização da vida pessoal do homem, Deus é aquele a quem o homem acata, adora, presta homenagem, etc., ao realizar concretamente a sua vida pessoal.
# Atenção, dizer que Deus é a realidade fundamental última não significa que seja a realidade “causal última”, quer dizer, a “última causa” real, porque fundamento não significa “causalidade” nem muito menos causalidade reduzida às causas da metafísica clássica (eficiente, final, exemplar, formal, etc.); o conceito de causa é mais do que problemático como o prova a história da filosofia ocidental; que Deus é a realidade fundamental “última” significa puramente e simplesmente o que acabamos de dizer: que Deus é a realidade que fundamenta “ultimamente” a deidade (a realidade enquanto poder, o poder do real) religado ultimamente à qual o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um de seus atos, e que, portanto, Deus é a realidade fundamental “última” da realização da vida pessoal do homem.
# Isto não prejulga, nem remotamente, a índole concreta dessa fundamentalidade última de Deus; por exemplo, essa fundamentalidade última de Deus não inclui formalmente que Deus seja causa eficiente ou fazedor ou, muito menos, criador da realidade; de fato, por exemplo, o Deus de muitas religiões não tem este caráter de ser causa eficiente ou fazedor ou criador das coisas, mas tem o caráter de ser a realidade fundamental última; o Deus judeu-cristão sim é criador; pois bem, neste ponto compartimos o pensamento de B. J. Duns Escoto (em contra de Sto. Tomás de Aquino): que Deus seja criador das coisas é uma verdade de fé e não de razão.
= Deus é a realidade fundamental “possibilitante” da realização da vida pessoal do homem.
# Como temos dito, o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, religado também “possibilitantemente” à realidade enquanto poder (à deidade), porque o homem inexoravelmente configura a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos sempre e só realizando (apropriando-se de) alguma das possibilidades que lhe oferece a realidade (a realidade das coisas, dos demais homens e dele mesmo); agora bem, dado que Deus é a realidade fundamental da realidade, Deus é a realidade que fundamenta que a realidade seja possibilitante da realização pessoal do homem, ou seja, Deus é a realidade fundamental “possibilitante” da realização da vida pessoal do homem, quer dizer, a realidade que funda “possibilitantemente” todas as possibilidades que tem o homem de realizar a sua vida pessoal em cada um dos atos da sua vida.
# Enquanto realidade fundamental “possibilitante” da realização da vida pessoal do homem, Deus é aquele a quem o homem suplica, implora, pede, etc., as possibilidades de realizar concretamente a sua vida pessoal.
# Portanto, Deus não é uma possibilidade a mais (nem sequer a mais sublime) que tem o homem de realizar a sua vida pessoal; Deus é a possibilidade de todas possibilidades da realização vital pessoal do homem, a possibilidade absoluta, a realidade possibilitante absoluta da realização da vida pessoal do homem; Deus é o doador de todas as possibilidades que tem o homem de configurar concretamente a sua realidade vital pessoal em cada um dos atos da sua vida.
# Também este caráter fundamental possibilitante de Deus fica aberto a ulteriores determinações; primariamente e formalmente não significa onipotência, nem providência, nem misericórdia, etc.; achamos, mais uma vez, que tudo isso são verdades de fé, não de razão; o único que primariamente e formalmente compete a Deus, neste sentido, é ser a possibilidade absoluta do homem, quer dizer, ser o fundamento de todas as possibilidades que tem o homem de realizar a sua vida pessoal; saiba-o ou não, o homem só pode configurar concretamente a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos fundado possibilitantemente em Deus!
= Deus é a realidade fundamental “impelente” da realização da vida pessoal do homem.
# Como temos dito, o homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, religado também “impelentemente” à realidade enquanto poder (à deidade), porque o homem forçosamente tem que configurar a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, queira ou não queira, saiba ou não saiba, porque inexoravelmente a realidade (das coisas, dos demais homens e dele mesmo) o impele a ter que fazê-lo dum modo ou de outro; agora bem, dado que Deus é a realidade fundamental da realidade, Deus é a realidade que fundamenta que a realidade seja impelente da realização pessoal do homem, ou seja, Deus é a realidade fundamental “impelente” da realização da vida pessoal do homem, quer dizer, a realidade que funda “impelentemente” que o homem tenha que realizar a sua vida pessoal em cada um dos atos da sua vida.
# Enquanto realidade fundamental “impelente” da realização da vida pessoal do homem, Deus é aquele em quem o homem se refugia, se ampara, se apoia, etc., para realizar concretamente a sua vida pessoal.
# Portanto, Deus é a realidade fundamental “impelente” da realização da vida pessoal do homem, a realidade que fundamenta o caráter impelente da realidade como poder (deidade) que religa o homem na configuração da sua realidade vital pessoal, a realidade fundamental da impelença da realização da vida pessoal do homem em cada um dos atos da sua vida.
# Também este caráter fundamental impelente de Deus fica aberto a ulteriores determinações; primariamente e formalmente não significa “força” (Deus não é primariamente e formalmente o primeiro “motor” de realização da vida pessoal do homem), nem “obrigação” (Deus não é primariamente e formalmente o primeiro que “impõe deveres” ao homem); neste sentido, Deus é primariamente e formalmente aquele que fundamenta que o homem seja impelido, forçado inexoravelmente a ter que realizar a sua vida pessoal em cada um dos seus atos; Deus, realidade absolutamente absoluta, fundamenta impelentemente que o homem tenha forçosamente que configurar concretamente, em cada um dos seus atos e religado constitutivamente ao poder do real (à deidade), a sua realidade relativamente absoluta que faz dele um “pequeno deus”, ou seja, um “relativo deus”!
c. Esta concepção de Deus como realidade fundamental “última, possibilitante e impelente” da realização da vida pessoal do homem - à qual temos chegado filosoficamente pela via da religação do homem à deidade, ao poder do real, na configuração da sua realidade vital pessoal em todos os seus atos - coincide com aquilo que é Deus na história inteira das religiões, quer dizer, com aquilo que o homem religioso entende por Deus enquanto Deus; frisamos isto porque, vendo que o Deus ao que chegam muitas vias filosóficas não é o Deus das religiões (por exemplo, o theós de Aristóteles), são muitos os que assumem a célebre distinção de Pascal entre “o Deus dos filósofos” e “o Deus das religiões”, e afirmam que há um abismo entre ambos “Deus; pois bem, a isto há que responder duas coisas:
= Os defensores desse presumível abismo entre o Deus dos filósofos e o Deus das religiões a primeira coisa que teriam que fazer é dizer-nos em que consiste o Deus das religiões (coisa que Pascal, por exemplo, nunca fez) e em que consiste o Deus dos filósofos; se isto não for feito, o presumível abismo entre o Deus dos filósofos e o Deus das religiões não é mais do que uma ingente vaguidade que cai no vácuo; não será que os defensores desse presumível abismo identificam “a” filosofia com “determinadas” filosofias?; é!!!
= Nós afirmamos energicamente que não há nenhum abismo entre o Deus da filosofia e o Deus da religião, mas que o Deus das religiões é identicamente o Deus ao que se chega filosoficamente, sempre que a filosofia não se acantoe irremediavelmente nos conceitos da filosofia grega...!
2. A função fundamental de Deus na vida pessoal do homem
a. A experiência que faz o homem de configurar em cada um dos seus atos a sua realidade vital pessoal, constitutivamente religado à deidade, ao poder do real, é “experiência humana de Deus”!
= O poder do real, religado constitutivamente ao qual o homem configura a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, está fundado em Deus presente formalmente e constituintemente na realidade das coisas e dos homens; isto significa que o poder do real envolve intrinsecamente e formalmente, como momento fundante dele, o poder da realidade absolutamente absoluta, isto é, o poder Deus, aliás, Deus como poder.
= Certamente, o poder do real não é o poder de Deus, assim como as coisas e os homens reais não são Deus; mas o poder do real “veicula” o poder de Deus, veicula Deus como poder, e, nesse sentido, as coisas e os homens reais são “sede” (no significado de assento) do poder de Deus, de Deus como poder; em definitiva, enquanto fundado em Deus, o poder do real é “veículo” e “sede” de Deus, quer dizer, “manifestação” de Deus!
= Neste sentido de ser manifestação (veículo e sede) de Deus, é precisamente e rigorosamente “deidade” o poder do real (da realidade das coisas, dos homens e de si mesmo), religado constitutivamente ao qual o homem realiza concretamente a sua vida pessoal em cada um dos seus atos.
# A realidade das coisas e dos homens e o poder dela não são Deus nem meros “efeitos” de Deus, mas são formalmente “deidade”, que não é um espécie de vaporoso caráter pseudodivino das coisas e dos homens, mas o caráter da realidade das coisas e dos homens que, enquanto religantemente poderosa, enquanto poder religante do homem, “manifesta” o poder de Deus, Deus como poder.
# Os gregos diziam que a natureza (physis) é divina (theíon) porque, segundo eles, é imortal e inesgotável, quer dizer, sempre jovem; algo semelhante dizem todos os panteístas; isso é inaceitável; mas, dizendo isso, gregos e panteístas esfregam algo essencial que deve ter um lugar supereminente na filosofia: a realidade das coisas e dos homens não é divina (não é Deus), mas tem algo disso: é formalmente “deidade”, ou seja, “manifestação (veículo e sede) de Deus”!
= Por conseguinte, na experiência pessoal da sua religação constitutiva à deidade (ao poder da realidade das coisas dos demais homens e de si mesmo) na configuração da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, o homem está fazendo experiência pessoal (está provando fisicamente a realidade) do poder de Deus, de Deus como poder!
= E esta experiência pessoal do poder de Deus, de Deus como poder, que faz o homem em cada um dos seus atos, tem forçosamente as três dimensões da pessoa humana: é experiência individual, social e histórica; por exemplo, neste sentido, a história humana é a magna experiência histórica, tida pela humanidade, da deidade, isto é, da realidade das coisas e dos homens como manifestação (veículo e sede) do poder de Deus, de Deus como poder; em definitiva, a história humana é a magna experiência histórica de Deus, tida pela humanidade!; obviamente, esta experiência histórica da humanidade tem ido adotando formas concretas ao longo da história: são as formas experienciais da história das religiões.
b. Deus é “o fundamento da plenitude, em tensão teologal, da vida pessoal do homem”.
= Deus é o ““fundamento” da vida pessoal do homem”.
# Temos dito de mil maneiras que Deus é a realidade fundamental “última, possibilitante e impelente” da realização da vida pessoal do homem; isso quer dizer que o homem, inexoravelmente (queira ou não, saiba ou não), realiza a sua vida pessoal em cada um dos seus atos fundado “ultimamente, possibilitantemente e impelentemente” no poder de Deus, em Deus como poder; dito de outro modo: o homem realiza a sua vida pessoal em cada um dos seus atos “religado fundamentalmente” a Deus; em outras palavras: Deus é o ““fundamento” (último, possibilitante e impelente) da vida pessoal do homem”.
# Daí que Deus não seja uma “realidade-objeto”, mas a “realidade-fundamento” da vida pessoal do homem, coisa abismalmente diferente.
+ Deus não é uma “realidade-objeto” a mais, nem sequer a realidade-objeto mais importante e excelsa, da vida pessoal do homem; uma realidade-objeto é uma realidade que simplesmente está “frente-a” ao homem; se Deus fosse uma realidade-objeto (ou até uma realidade-objeção), o máximo que poderia fazer o homem é “estar dirigido e dirigir-se” a Deus.
+ Isto não é assim; o homem não está simplesmente dirigido a Deus como se fosse uma realidade-objeto, quer dizer, como se fosse uma realidade que está frente a ele; o homem está constitutivamente “religado” a Deus enquanto “realidade-fundamento” que é da vida pessoal dele; Deus está transcendentemente presente na realidade do homem como a realidade-fundamento dele, quer dizer, como o fundamento “último, possibilitante e impelente” da realização da vida pessoal dele.
+ Daí que a relação do homem com Deus não seja formalmente uma consideração teorética do homem acerca de Deus, mas uma “intimidade vital” do homem com Ele; dito de outro modo: a presença de Deus no homem não é simplesmente uma presença real dele no homem, mas a presença real no homem da fundamentalidade religante da realização concreta da vida pessoal dele em cada um dos seus atos.
= Deus é o “fundamento da “plenitude” da vida pessoal do homem”.
# Dado que Deus é o fundamento da vida pessoal do homem, quer dizer, o fundamento da realização concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, é claro que a função de Deus na vida pessoal do homem concerne dum modo radical e total à realidade pessoal vital “inteira”.
# Por conseguinte, Deus não é um recurso que o homem precisa para cumprir com a sua vida ou para remendar eventualmente alguns dos seus rasgões; pelo contrário, Deus é o fundamento da “plenitude” da vida pessoal do homem em toda a integridade dela; dito de outro modo: o homem só pode realizar-se plenamente e integralmente como tal fundado religantemente em Deus!
# Aqui, em princípio, não estamos falando do Deus do Cristianismo, mas apenas de Deus enquanto Deus; agora bem, sabemos que o Deus do Cristianismo se apresenta como a “revelação definitiva de Deus enquanto Deus”; por isso – não podia ser de outro modo – o Deus do Cristianismo não é um Deus “tapa-buraco”, ou seja, um Deus que ajuda o homem nos seus momentos de indigência, e nem sequer é um Deus que só salva o homem do pecado e da morte, mas é um Deus que leva o homem à maior das plenitudes imagináveis: à “divinização”!
# Tem mais: Deus, enquanto fundamento que é da “plenitude” da vida pessoal do homem, não está em função duma presumível “outra vida” do homem num “outro mundo” (tudo isso é questão de fé, não de razão), mas em função da plenitude da vida pessoal do homem “nesta vida” e “neste mundo”!
# Por isso, se se quer falar de “volta do homem a Deus” (trataremos no ateísmo mais adiante), não é necessário ser profeta para dizer que o homem voltará a Deus não para fugir deste mundo e desta vida, dos demais e de si mesmo, mas justamente para o contrário: para poder realizar a plenitude da sua realidade vital pessoal nesta vida e neste mundo, para poder ser plenamente aquilo que inexoravelmente jamais poderá deixar de ter que ser: plena realidade relativamente absoluta!
# Assim pois, Deus é o fundamento da “plenitude” da vida pessoal do homem na tríplice forma dela: Deus é o fundamento da execução das ações do homem, o traçado fundamental da vida pessoal do homem e o fundamento da sua liberdade.
+ O homem é “agente” das suas ações, quer dizer, é aquele que executa cada um dos seus atos; pois bem, Deus é aquele que fundamenta que seja precisamente o homem o agente, o executor, de cada um dos seus atos nos quais inexoravelmente configura a sua realidade vital pessoal.
+ O homem é “ator” das suas ações, quer dizer, a vida pessoal do homem é, em certa medida, a vida que caiu-lhe em sorte (por assim dizer), porque o homem não realiza a sua vida pessoal desde zero (por assim dizer), mas no perfil duma contextura já parcialmente traçado, segundo o contexto histórico, o marco social e o modo peculiar de individualidade que lhe foram dados, de tal modo que, neste sentido, podemos dizer que, em certa medida, o homem é a grande personagem da sua própria vida; pois bem, Deus é o “traçado” fundamental da vida pessoal (individual, social e histórica) do homem.
+ O homem é “autor” das suas ações, quer dizer, optando por umas ações em vez de outras, adota (ad-opta) nelas uma determinada configuração da sua realidade vital pessoal em vez de outras, sendo assim autor da sua vida pessoal; pois bem, Deus é aquele que faz que o homem se faça livremente a si mesmo, que seja livremente a realidade vital pessoal que ele quer ser.
= Deus é “o fundamento da plenitude, “em tensão teologal”, da vida pessoal do homem”.
# A alguém pode parecer que a descrição que estamos tentando fazer da presença constituinte de Deus no homem, em função da plenitude da sua vida pessoal, esvai a distinção entre Deus e o homem; não é assim; aliás, seria um erro grave querer, por esse motivo, tratar de voltar a traçar “fronteiras” entre Deus e o homem, como se aqui estivesse o homem e ali, enfrente e fora dele, estivesse Deus; distinção não é “fronterização”, quer dizer, “distinção” entre Deus e o homem não consiste em traçar uma “cerca” que circunscreve dois terrenos justapostos e enfrentados: o terreno de Deus e o terreno do homem.
# Isto não é assim para nada; pelo contrário, Deus é aquele que faz que o homem não seja Deus, fazendo justamente que este “não-ser-Deus” seja precisamente o modo em que o homem “é “em” Deus”; é que a estrutura metafísica da distinção entre Deus e o homem é uma implicação de caráter muito especial: é uma “tensão teologal”, que significa unitariamente estas duas coisas:
+ Deus “faz que o homem faça” a sua realidade vital pessoal: não é que Deus faça a realidade vital pessoal do homem; a realidade vital pessoal do homem a faz o homem; mas Deus é quem “faz que o homem faça” a sua realidade vital pessoal.
+ Todo ato da vida do homem é formalmente uma “tomada de posição a respeito de Deus”: com efeito, todo ato do homem, por minúsculo, modesto e intranscendente que for no seu conteúdo, configura a realidade vital pessoal do homem em Deus (seja a favor seja em contra dele), porque Deus é aquele que faz que seja o homem mesmo a fazer a sua realidade vital pessoal; dito de outro modo: todo ato do homem tem a transcendência de fazer que o homem esteja constituindo-se vertido a Deus convergentemente (con-versão!) ou divergentemente (a-versão!)!
c. Em definitiva: o homem está “implantado” em Deus, metafisicamente “imerso” nele, na configuração da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos da sua vida.
= O homem pode dar nomes distintos ao que nós chamamos de Deus e de função fundamental de Deus na vida do homem; o homem pode até ignorar Deus e a função fundamental de Deus na sua vida; mas, por muito que queira voltar as costas ou encolher os ombros, jamais poderá anular a estrutura constitutivamente teologal da configuração da sua vida pessoal em cada um dos seus atos.
= Aquilo que sim pode fazer o homem é distanciar-se de Deus e da função fundamental dele na sua vida pessoal, submergindo-se na escuridão, porque não suporta facilmente a estrutura constitutivamente teologal da sua vida pessoal; tantas vezes o homem se vê invadido por uma interna e radical “distensão teologal”, por uma espécie de “fadiga teologal”, e gostaria descansar, desentender-se, ainda que episodicamente, da necessidade de estar sempre tendo que tomar posição em Deus; desse modo geralmente passa a reduzir Deus à categoria duma simples realidade-objeto à qual se dirige de vez em quando, e acaba por acreditar que “vive sem Deus”; filosoficamente, só a revivescência da sua religação constitutiva a Deus pode injetar novo vigor na anemia teologal do homem e fazer que ele chegue a redescobrir a presença de Deus no seu seio fundamentando a realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos!
V
O ACESSO DO HOMEM A DEUS
A. A acessibilidade de Deus ao homem
1. Deus é acessível ao homem?
a. Não poucos filósofos, já desde a antiguidade, negam que Deus seja acessível ao homem; o Theós de Aristóteles, por exemplo, vive pensando e querendo só a sua própria realidade; não conhece o cosmos nem o homem, e não age neles.
b. Daí que a filosofia clássica insista em que Deus é acessível ao homem porque Deus “está” nas coisas criadas; segundo S. Tomás de Aquino, por exemplo, Deus está nas coisas criadas de modo tríplice:
= Por “potência”: todas as coisas estão nas mãos de Deus; Deus tem potência sobre todas elas.
= Por “presença”: todas as coisas estão presentes à inteligência de Deus.
= Por “essência”: todas as coisas são uma participação da entidade do ser de Deus.
c. Pois bem, tudo quanto temos dito no capítulo anterior mostra claramente que Deus é acessível ao homem; vamos agora explicitar em três passos as características principais da acessibilidade de Deus ao homem.
2. Deus é acessível ao homem nas coisas reais.
a. Como temos visto no capítulo anterior, Deus, fundamento da realidade das coisas reais, está presente nelas transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente.
= Em virtude da sua presença “transcendente” nas coisas reais, Deus está nelas como absolutamente distinto delas, mas sem estar separado delas.
= Em virtude da sua presença “intramundana” nas coisas reais, Deus está no mundo das coisas reais como outro que o mundo, mas sem ser outro mundo.
= Em virtude da sua presença “fontanal” nas coisas reais, Deus está nelas como fonte que dá de si a realidade delas.
b. Daí que Deus seja acessível ao homem nas coisas reais.
= Com efeito, as coisas reais, dando ao homem o fundo transcendente, intramundano e fontanal delas, estão dando-lhe Deus; aliás, Deus, dando ao homem as coisas reais, nas quais está presente transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente, está dando-se ao homem!
= Por isso, jamais (nem no acesso mais sublime a Deus dos maiores místicos) o homem acede a Deus sem as coisas reais ou fora delas; sempre o homem acede a Deus nas coisas reais.
3. Deus é acessível ao homem na tensão teologal interpessoal da realização da sua vida pessoal.
a. O modo da presença transcendente, intramundana e fontanal de Deus nas coisas reais, é diverso segundo o modo de realidade delas.
= Nas realidades meramente materiais (não vivas), Deus está presente constituindo-as como meramente reais, ou seja, fundando puramente e simplesmente que tenham realidade; a presença de Deus nas realidades meramente materiais é meramente presença “realizante”.
= Nas realidades materiais vivas, Deus está presente constituindo-as como realidades viventes, ou seja, fundando que auto-possuam a realidade delas, que sejam “si mesmas”; a presença realizante de Deus nas realidades materiais vivas é “simesmante” (vitalizante).
= Nas realidades vivas pessoais (os homens), Deus está presente constituindo-as como realidades viventes pessoais, ou seja, fundando que auto-possuam a “sua própria” realidade, que sejam suidades, que sejam pessoas; a presença realizante e simesmante de Deus nas realidades viventes pessoais (nos homens) é “suificante” (personalizante).
b. Em virtude da presença suificante (personalizante) de Deus no homem, Deus é acessível ao homem na tensão teologal interpessoal da realização da sua vida pessoal.
= No capítulo anterior vimos que Deus é o fundamento da plenitude, “em tensão teologal”, da vida pessoal do homem, quer dizer, que Deus é aquele que faz que o homem faça a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos e que a faça (queira ou não, saiba ou não) tomando posição a respeito de Deus em cada um dos atos dele.
= Agora temos que acrescentar que essa tensão teologal, constitutiva da realização da vida pessoal do homem, é de caráter “interpessoal”: é “tensão teologal interpessoal”; o motivo é simples: a tensão teologal do homem é tensão entre pessoas, quer dizer, entre a pessoa relativamente absoluta do homem e a pessoa absolutamente absoluta de Deus; daí que afirmemos que Deus é acessível ao homem na tensão teologal interpessoal da realização da sua vida pessoal.
= Mas aqui é preciso evitar ao máximo o antropomorfismo.
# Deus é pessoa de modo absolutamente absoluto e não como o homem, que é pessoa de modo relativamente absoluto; por isso Deus não é uma espécie de supergigantesco espírito humano que subjaz em toda coisa e em todo homem, nem é uma espécie de superexepcional “Tu”, de modo que a tensão teologal interpessoal do homem é uma relação de “eu” (o homem) a “Tu” (Deus).
# Que o homem se dirija a Deus chamando-o de “Tu” é inevitável; o homem, com efeito, não tem outro modo de designar uma realidade pessoal distinta da dele; mas fique claro que Deus transcende todo e qualquer “tu”; a possibilidade mesma de que o homem se dirija a Deus como um “Tu” se funda em algo prévio: no caráter “transcendente” da tensão teologal interpessoal do homem; dito de outro modo: dentro dos limites indicados, a possível “Tuidade” de Deus é apenas a expressão humana da transcendência da tensão teologal interpessoal do homem.
= Assim pois, a presença transcendente, intramundana e fontanal de Deus em toda realidade, adquire na realidade pessoal do homem o caráter de tensão teologal interpessoal, quer dizer, a tensão entre dois absolutos pessoais: a realidade pessoal relativamente absoluta do homem que realiza concretamente a sua vida pessoal em tensão com respeito a Deus, realidade pessoal absolutamente absoluta, que funda tanto que o homem seja realidade pessoal relativamente absoluta quanto que possa e tenha que configurá-la em cada um dos atos da sua vida.
= Em virtude da presença de Deus no homem na tensão teologal interpessoal da realização da sua vida pessoal, Deus não só é acessível ao homem no homem mesmo, mas é acessível ao homem no homem mesmo formalmente como pessoa; só nas pessoas humanas e pelas pessoas humanas Deus é acessível formalmente enquanto pessoa, enquanto suidade absolutamente absoluta.
4. Deus é acessível ao homem porque está presente e se manifesta nele dando-lhe notícia dele e a sua nua presença.
a. Temos dito no capítulo anterior, que o poder do real (da realidade das coisas, dos homens e de si mesmo), religado constitutivamente ao qual o homem realiza concretamente a sua vida pessoal em cada um dos seus atos, é precisamente e rigorosamente deidade porque é “manifestação” (veículo e sede) do poder de Deus, de Deus como poder; é claro, portanto, que Deus é acessível ao homem, no homem mesmo, porque, na deidade do homem, quer dizer, no poder da realidade vital pessoal do homem, Deus “se manifesta pessoalmente” a ele como poder pessoal absolutamente absoluto.
b. Pois bem, esta manifestação pessoal de Deus ao homem, no homem mesmo, consiste, sobretudo, em notícia e em nua presença de Deus no homem; é preciso explicar isto.
= Uma realidade se manifesta ao homem sempre e só estando-lhe presente, antes de tudo, na sua inteligência senciente; mas há diversos modos de estar presente uma realidade na inteligência senciente do homem e, portanto, há também diversos modos de manifestar-se uma realidade ao homem.
= Geralmente (e erroneamente) pensamos que uma realidade se nos manifesta só quando nos está presente na vista, isto é, quando está presente diante dos nossos olhos; isso não é assim; a vidência é só “um” dos dez modos da nossa intelecção senciente das realidades, que correspondem aos dez modos de estar-nos presentes as realidades nos nossos dez sentidos intelectivos: vidência (visão), auscultação (audição), rastejo (olfato) fruição (gosto), tenteio (tato), tensão-dinâmica (cinestesia), temperação (frio-calor), afeiçoamento (dor-prazer), orientação (sensibilidade labiríntica e vestibular), penetração-íntima (cenestesia).
= Pois bem, aqui nos interessa falar só de dois modos de estar presente e de manifestar-se uma realidade na intelecção senciente humana: o modo de estar presente e de manifestar-se uma realidade na audição (intelecção senciente auscultadora) e no tato (intelecção senciente em tenteio).
# Na intelecção senciente auscultadora, o som está imediatamente presente na audição do homem, mas não a realidade sonora enquanto tal; no entanto, o som inteligido sencientemente (o som ouvido como real) nos “remete” à realidade sonora; esta “remissão” não é algo extrínseco ao som, mas pertence constitutivamente a ele; é constitutivo do som “remeter” à realidade sonora; pois bem, esta “remissão” do som à realidade sonora, é, mais precisamente, “remissão notificante”: o som não nos dá imediatamente a realidade sonora, mas nos dá imediatamente “notícia” da realidade sonora; assim pois, no som inteligido sencientemente na audição, a realidade sonora está presente e se manifesta dando-nos “notícia” imediata dela.
# Na intelecção senciente tátil, uma realidade está imediatamente presente e se manifesta no tato (contato-pressão) do homem na “nua presença” dela; tateando, em tenteio, apalpando, às apalpadelas, o homem apreende a presença e a manifestação imediata das realidades na “nua presença” delas.
= Dizíamos, então, que a manifestação pessoal de Deus ao homem, no homem mesmo, consiste, sobretudo, em notícia e em nua presença de Deus no homem; o que queremos dizer com isto?
# Obviamente, não queremos dizer que Deus emite sons audíveis dentro do homem ou que Deus é um corpo tateável que está no interior do homem; seria grotesco e absurdo!
# Mas acontece que a inteligência senciente do homem não se esgota no modo primário e radical dela (a apreensão impressiva da realidade), ao qual acabamos de referir; pelo contrário, o modo primário e radical da inteligência senciente se desdobra em dois modos ulteriores: logos senciente e razão senciente; pois bem, tanto o logos quanto a razão sencientes, precisamente enquanto constitutivamente sencientes, envolvem estruturalmente os dez modos da intelecção senciente primária e radical (a apreensão impressiva da realidade) dos quais acabamos de falar; daí, por exemplo, que falemos com toda justeza de “saber”, de “sabedoria”, termos que vêm etimologicamente de “sabor”; daí, por exemplo, que sejam muito mais do que meras metáforas expressões como estas: “acabo de “ver” a solução do problema”, “aqui estamos “tocando” o fundo da questão”, “este assunto “cheira” mal”, etc.
# Por conseguinte, podemos dizer com exatidão (e não só metaforicamente) que Deus, enquanto fundamento da realidade das coisas e do homem e, sobretudo, enquanto fundamento da realização do homem em tensão teologal interpessoal, está presente e se manifesta pessoalmente no homem dando-lhe “notícia” dele, para ser “ouvida”, e oferecendo-lhe a sua “nua presença”, para ser “tateada”; por isso, a busca humana de Deus, que está presente e se manifesta pessoalmente no homem sobretudo “áudio-tatilmente”, será preferentemente “auscultação” e “tenteio às apalpadelas”; o homem pode ignorar que esta espécie de “impulsos áudio-táteis” do seu interior mais profundo são de Deus presente e manifestado nele como “notícia” e como “nua presença”; mas essa é outra questão…
# Assim pois, não é filosoficamente estranho, por exemplo, que, no judaísmo e no cristianismo, o povo de Deus, seja “o povo do ouvido”, que o primeiro mandamento divino seja: “Escuta!” (Shemá), e que Deus mesmo se manifeste como “palavra” e como “aquele que bate na porta do mais profundo do homem”, etc.
B. O acesso do homem a Deus
1. O acesso do homem a Deus é a entrega pessoal do homem a Deus.
a. O que temos dito até aqui deixa claro que todo homem, saiba ou não, queira ou não, está já acedendo a Deus em cada um dos seus atos, porque neles configura concretamente a sua realidade pessoal em tensão teologal interpessoal; dito de outro modo: a acessibilidade de Deus ao homem, no homem mesmo, é já o acesso “incoado” do homem a Deus em cada um dos seus atos, ou seja, é a incoação, o começo, o princípio, do acesso do homem a Deus.
b. Mas agora não é essa a questão; o que agora nos perguntamos é: há um ato primário e radical do homem no qual acede não só incoadamente mas plenariamente a Deus?; se há resposta for afirmativa, em que consiste esse ato?
c. Depois de tudo quanto temos dito, a resposta não pode ser outra: há efetivamente um ato primário e radical do homem no qual acede plenariamente a Deus: o ato em que o homem “se entrega pessoalmente” a Deus; o acesso do homem a Deus é a “entrega pessoal” do homem a Deus; vejamos.
= Deus é o fundamento da realidade e da realização do homem, quer dizer, Deus é aquele que faz que o homem seja realidade vital pessoal e que o homem possa e tenha que realizar concretamente essa sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos constitutivamente religado à deidade, ao poder da realidade (das coisas, dos demais homens e dele mesmo) e, portanto, fundamentado ultimamente, possibilitantemente e impelentemente em Deus; daí que Deus seja acessível ao homem nessa sua tensão teologal interpessoal na qual realiza a sua vida pessoal e na qual Deus lhe está presente e se manifesta pessoalmente ao homem, dando-lhe notícia dele e dando-lhe a sua nua presença.
= Pois bem, em que consiste radicalmente tudo isso?; consiste em que Deus “se doa pessoalmente” ao homem na realidade dele e na realização da vida pessoal dele!; a acessibilidade de Deus ao homem, no homem mesmo, o acesso incoado do homem a Deus, é a “doação pessoal” de Deus ao homem!
= Em virtude disso, o acesso plenário do homem a Deus, o ato primário e radical no qual o homem acede plenariamente a Deus, só pode ser um: a “entrega pessoal” do homem a Deus!
2. Em que consiste a entrega pessoal do homem a Deus
a. Antes de tudo, há que salientar que a entrega pessoal do homem a Deus se fundamenta na prévia doação pessoal de Deus ao homem.
= Deus se doa pessoalmente a cada homem, nos termos que temos explicado; à doação pessoal de Deus ao homem, este responde entregando-se pessoalmente a Deus.
= É certo que nem todo homem se entrega pessoalmente a Deus nos termos que vamos explicar; para isso é preciso que o homem intelija, seja como for, que Deus existe, e que, apoiado na intelecção da realidade de Deus leve a termo a sua entrega pessoal a Deus; mas também é certo que nenhum homem poderia entregar-se pessoalmente a Deus se Deus, previamente, não se tivesse doado pessoalmente a ele; mais ainda: o homem só pode entregar-se pessoalmente a Deus no seio da prévia doação pessoal de Deus a ele, e veiculado por ela.
= Parafraseando a famosa frase de S. Agostinho, podemos afirmar que, com toda certeza, Deus tem que dizer ao homem: “Não te entregarias pessoalmente a mim, se, antes, eu não me tivesse doado pessoalmente a ti!”.
b. Entregar-se pessoalmente a Deus não é “abandonar-se” a Deus, mas ir a Deus aceitando ativamente ser levado por ele.
= Há que apagar a idéia, nefasta por muitos conceitos, de que entregar-se pessoalmente a Deus seja “abandonar-se” a Deus no sentido passivo de fugir de si mesmo, de deixar que Deus faça as coisas por ele mesmo, sem nenhuma intervenção nossa; isto seria um gigantesco ato de comodismo ou de desespero.
= Entregar-se pessoalmente a Deus é ir a Deus aceitando ativamente ser levado por ele; à doação pessoal de Deus ao homem, este responde indo a Deus, não deixando passivamente que seja Deus quem o leve, mas aceitando dum modo ativo ser levado a Deus por ele; dito de outro modo: aceitando ativamente ser levado por Deus a ele, o homem não vai à deriva da correnteza divina, por assim dizer, mas vai vogando para Deus, que se doa pessoalmente a ele na realização da sua vida pessoal.
c. A entrega pessoal do homem a Deus tem três dimensões: acatamento, súplica e refúgio.
= Entregar-se pessoalmente a Deus é, antes de tudo, ir a Deus como realidade absolutamente “última”; nesta dimensão, a entrega pessoal a Deus é “acatamento” de Deus.
# Acatar não significa primariamente obedecer; a obediência é algo derivado do acatamento; o primário do acatamento é o reconhecimento por parte do homem da relatividade da sua pessoa frente à pessoa absolutamente absoluta que é Deus; neste sentido, acatar é uma espécie “desaparecer” perante Deus; tudo isso é o que expressa o verbo grego latreúo, “adorar”; adorar (ad-orar) é acatar a plenitude insondável da realidade absolutamente última que é Deus; podemos dizer que a adoração pessoal do homem a Deus é a essência do acatamento humano de Deus.
# Obviamente, o acatamento envolve toda uma série de momentos morais que não é necessário lembrar agora; o que aqui nos interessa frisar é que o princípio radical de todos esses momentos morais é o acatamento no sentido que temos dito: a Deus, doador último da realidade e da realização do homem, este corresponde acatando o seu doador: ao ir à realidade (das coisas, dos demais homens e dele mesmo) para, apoiado religantemente ao poder dela, configurar a sua vida pessoal em todos os seus atos, o homem se inclina e acata pessoalmente Deus presente transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente na realidade (das coisas, dos demais homens e dele mesmo).
= Entregar-se pessoalmente a Deus é, em segundo lugar, ir a Deus como realidade “possibilitante” suprema; nesta dimensão, a entrega pessoal a Deus é “súplica” a Deus.
# O homem não só acata Deus em ad-oração pessoal, mas, de pessoa a Pessoa, suplica a Deus, doador supremo de todas as possibilidades, as possibilidades da configuração concreta e plenária da sua vida pessoal; eis a essência da “oração”; orar não é simplesmente recitar uma fórmula, mas entregar-se suplicantemente a Deus; também a ad-oração pode ser chamada de oração, mas é preferível reservar este termo para os atos de súplica orante.
# O homem suplica a Deus na realidade das coisas, dos demais homens e dele mesmo, com a qual configura a sua vida pessoal; não deixa de lado a realidade para ir suplicantemente a Deus; pelo contrário, na realidade mesma das coisas, dos demais homens e dele mesmo, com toda a riqueza e as dificuldades dela, o homem se entrega em súplica a Deus para que funde na realidade as possibilidades favoráveis à sua realização vital pessoal; a oração só é possível em virtude da presença transcendente, intramundana e fontanal de Deus na realidade das coisas, dos demais homens e do homem mesmo que se entrega pessoalmente a Deus.
= Entregar-se pessoalmente a Deus é, finalmente, ir a Deus como realidade “impelente” suprema; nesta dimensão, a entrega pessoal a Deus é “refúgio” em Deus.
# O homem se entrega pessoalmente a Deus como “fortaleza” da realização da sua vida pessoal; não se trata da fortaleza que certamente o homem pede a Deus para fazer o que tem que fazer, mas da fortaleza, do apoio firme e forte em que Deus mesmo consiste.
# Dito de outro modo: o homem se entrega pessoalmente a Deus como refúgio, como fortaleza, não simplesmente para agir, mas, agindo, configurar de modo concretamente plenário a sua realidade vital pessoal; obviamente, deste refúgio pessoal em Deus deriva inexoravelmente a ajuda de Deus para agir; mas isto é algo derivado; o primário é a entrega pessoal do homem a Deus como refúgio da sua realização vital pessoal.
# Este é o sentido radical, por exemplo, de tantos epítetos bíblicos de Deus: refúgio, fortaleza, amparo, abrigo, escudo, rochedo, baluarte, cidadela, tenda, apoio, defesa, proteção, socorro, auxílio, ajuda, asilo, etc.
d. A entrega pessoal do homem a Deus é “comunhão pessoal” do homem com Deus.
= Poder-se-ia pensar que a unidade da doação pessoal de Deus e da entrega pessoal do homem é a resultante da ação de Deus e da reação do homem, ou seja, que consistiria numa simples unidade de “correlação” entre duas realidades; mas isto é absurdo, porque não se trata da unidade entre duas realidades quaisquer, mas entre duas realidades sumamente precisas: a pessoa de Deus e a pessoa do homem; por conseguinte, a unidade da doação pessoal de Deus e da entrega pessoal do homem é uma unidade interpessoal.
= Nessa unidade doação-entrega interpessoais, Deus é aquele que tem a iniciativa pessoal; e o homem é aquele que assume pessoalmente a iniciativa de Deus; daí que a unidade da doação pessoal de Deus e da entrega pessoal do homem seja mais do que uma simples união pessoal: é “comunhão pessoal” entre Deus e o homem!; o homem se entrega pessoalmente a Deus assumindo a pessoa de Deus como fundamento doador último, possibilitante e impelente da realização da sua vida pessoal; não perder nunca isto de vista é essencial para a reta intelecção de tudo aquilo que diz respeito à dimensão teologal do homem.
= Duas observações essenciais a respeito da comunhão pessoal do homem com Deus:
# Ao entrar em comunhão pessoal com Deus, entregando-se pessoalmente a Ele, o homem está entrando em comunhão pessoal e se está entregando pessoalmente ao mais radical de si mesmo.
+ Ao entregar-se pessoalmente a Deus, entrando assim em comunhão pessoal com Ele, o homem não está se entregando pessoalmente e entrando em comunhão com uma realidade pessoal extrínseca e alheia a ele; tudo pelo contrário: o homem está se entregando pessoalmente e entrando em comunhão pessoal com a realidade pessoal de Deus, que certamente é distinto do homem, mas não alheio a ele, porque Deus é aquele que está transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente presente “em” a realidade pessoal do homem.
+ Mais ainda, dado que Deus está transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente presente “em” a realidade pessoal do homem, nada menos que fundamentando a realidade e a realização da vida pessoal do homem em cada um dos seus atos, ao entregar-se pessoalmente a Deus, ao entrar em comunhão pessoal com Ele, o homem está se entregando pessoalmente e está entrando em comunhão pessoal com o mais radical da sua própria realidade vital pessoal!
+ Dito abertamente: a pessoa do homem inclui Deus, digamos assim, no mais radical da sua realidade e da sua realização, porque Deus tem querido livremente ser o fundamento da realidade e da realização do homem estando presente nele transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente; se, por um instante, Deus deixasse de fundamentar a realidade e a realização do homem, este, ipso facto, se esvairia no nada!; daí que o homem, entrando em comunhão pessoal com Deus e entregando-se pessoalmente a Ele, está entrando em comunhão pessoal e entregando-se pessoalmente ao mais radical da sua realidade mesma; a entrega pessoal do homem a Deus e a sua comunhão com Ele é o mais oposto à alienação do homem (em contra daquilo que vai dizendo por aí mais de um despistado…).
+ Assim pois, podemos dizer que o homem realiza “toda” a sua realidade pessoal, mas não a realiza “totalmente”, porque a realiza fundado em Deus, fundamento último, possibilitante e impelente da sua realização vital pessoal; isto não quer dizer que, no realizar o homem a sua vida pessoal, a moção fundamental de Deus seja uma segunda moção acrescentada à moção do homem; tudo pelo contrário: a moção do homem, na realização da sua vida pessoal, é, na sua dimensão fundamental, moção de Deus.
+ Por conseguinte, quando o homem, por exemplo, suplica auxílio a Deus, não está suplicando que alguém (Deus), que está fora, acuda; o que está pedindo o homem é que alguém (Deus), que está nele como o mais radical dele mesmo, intensifique, por assim dizer, a sua função fundamental; com efeito, suplicar a Deus é suplicar ao nosso próprio fundo transcendente, que é Deus!
# A comunhão pessoal do homem com Deus e as diversas expressões dela, não são sentimentalismos pueris; são nada menos que a “estrutura metafísica teologal” da realidade e da realização vital pessoal do homem!
+ O ajudar, consolar, escutar, etc., por parte de Deus ao homem, não são simples fenômenos psíquicos, mas os modos metafísicos como Deus vai fundamentando a realidade e a realização vital pessoal do homem!; por isso o homem, configurando concretamente a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, está tendo experiência de Deus, porque está tendo a experiência da fundamentalidade metafísica de Deus na realização da sua vida pessoal!
+ Reciprocamente, toda forma de entrega pessoal do homem a Deus, toda forma de comunhão pessoal do homem com Deus, acontece inexoravelmente segundo as modulações desses modos estritamente metafísicos que são o acatamento, a súplica e o refúgio, que constituem a essência disso que chamamos de “religião”!
VI
O MOMENTO PRIMÁRIO E RADICAL
DA ENTREGA DO HOMEM A DEUS:
A FÉ EM DEUS
A. Aproximação à questão
1. Introdução
a. Todos afirmam, e com plena razão, que o momento primário e radical (não o único, evidentemente) da entrega do homem a Deus, é a fé em Deus, ou seja, crer em Deus.
b. Mas o que é a fé em Deus, o que é crer em Deus?; mais precisamente: qual é “o termo da fé”, quer dizer, em que ou em quem se crê?, e qual é “a índole do ato da fé”, quer dizer, em que consiste esse ato que chamamos de “crer”?
c. Vamos tentar responder por passos, deixando claro que estamos num curso de filosofia e que, portanto, falamos da fé em Deus chamada (bastante impropriamente, por certo) de fé “natural” em Deus.
2. Crer não é assentir intelectivamente a certas afirmações acerca de Deus, mas o modo primário e radical de entregar-se pessoalmente à pessoa de Deus.
a. A fé não é assentimento intelectivo a afirmações acerca de Deus.
= Não são poucos os que pensam que a fé em Deus, crer em Deus, consiste em assentir intelectivamente a certas afirmações acerca de Deus; assim, por exemplo, crer em Deus seria assentir, aceitar intelectivamente, que Deus existe, que Deus é onipotente, que Deus está em todas as partes, que Deus me ama, etc.
= Que isso exista de alguma maneira em todo ato de fé, é mais ou menos plausível; mas nem o ato de fé consiste em “assentimento intelectivo” nem o termo da fé são umas “afirmações sobre Deus”.
# O termo da fé não é primariamente “uma afirmação acerca de Deus”, porque, quando se assente intelectivamente a uma afirmação acerca de Deus, assente-se a algo mais radical que essa afirmação; com efeito, quando se assente intelectivamente a uma afirmação acerca de Deus, àquilo ao qual se assente não é propriamente essa afirmação, mas, em todo caso, a “verdade dessa afirmação”; assentir à afirmação “Deus existe”, por exemplo, é aceitar que “é “verdade” que Deus existe”; agora bem, é certo que a fé recai sobre algo “verdadeiro”, mas a verdade duma afirmação não é, de modo nenhum, a forma primária e radical da “verdade”.
# Por outro lado, a índole do ato de fé não é primariamente o “assentimento intelectivo” a uma afirmação acerca de Deus, porque há algo mais radical no qual se funda esse assentimento; com efeito, quando se assente intelectivamente a uma afirmação acerca de Deus, assente-se a ela porque “se admite o testemunho” daquele que testemunha essa afirmação; é óbvio, portanto, que o assentimento a uma afirmação acerca de Deus está fundado na “admissão da testemunha que testemunha essa afirmação”, que, em última instância, seria a autoridade mesma de Deus; agora bem, é claro que a “admissão duma testemunha” é um fenômeno que transborda os limites do mero assentimento intelectivo.
b. A fé é entrega pessoal à pessoa de Deus.
= Uma coisa é clara: a admissão do testemunho de alguém é apenas um modo de algo muito mais radical: disso que temos chamado de “entrega pessoal”; a índole do ato de fé é formalmente entrega pessoal.
= Aquilo a que se entrega pessoalmente o homem no ato de fé é à “pessoa de Deus”; o termo da fé é a realidade pessoal de Deus; a entrega pessoal é um ir desde nós mesmos para a pessoa de Deus dando-nos a ela; o homem se entrega pessoalmente à pessoa de Deus, aceitando configurar a sua realidade pessoal em todos os seus atos, fundamentado na realidade pessoal de Deus.
= Aquilo que há na fé de assentir à verdade dumas afirmações sobre Deus, e de admitir o seu testemunho, são só momentos de algo mais radical: da fé como entrega pessoal do homem à pessoa de Deus.
= Portanto, é preciso que esclareçamos com rigor qual é o termo da fé (a que se entrega pessoalmente o homem, na fé?) e qual é a índole do ato de fé (o que é entregar-se o homem pessoalmente, na fé?).
B. O termo de fé é a realidade pessoal de Deus “enquanto verdadeira”.
1. Colocação da questão
a. O termo da fé, acabamos de dizê-lo, é a realidade pessoal de Deus; a fé é entrega pessoal do homem à realidade pessoal de Deus.
b. Mas isso não é suficiente, porque também a esperança em Deus e o amor a Deus, por exemplo, são momentos da entrega pessoal do homem que tem como termo a realidade pessoal de Deus; no entanto, é claro que fé, esperança e amor não se identificam; portanto, tudo depende de que digamos qual é a “dimensão”, por assim dizer, da realidade pessoal de Deus à qual se entrega pessoalmente o homem no ato de fé.
c. Pois bem, o termo da fé é a realidade pessoal de Deus enquanto que, de algum modo, envolve “verdade”; isto é essencial salientá-lo para não cair no erro da filosofia e da teologia neste ponto.
= A concepção da fé como assentimento à verdade de afirmações acerca de Deus aponta, ainda que insuficientemente, ao momento de “verdade” que envolve o termo da fé.
= Pois bem, algumas filosofias e teologias, querendo evitar essa concepção intelectualista da fé como assentimento à verdade de afirmações acerca de Deus, lançaram-se pela via da concepção “personalista” da fé como entrega pessoal à pessoa de Deus; desse modo, caíram, porém, num outro erro: esvair a dimensão específica da realidade pessoal divina, à qual se entrega pessoalmente o homem na fé e na esperança e no amor, respectivamente.
= Daí que digamos que é essencial que esclareçamos qual é a dimensão específica da realidade pessoal de Deus à qual se entrega pessoalmente o homem no ato de fé, a diferença do ato de esperança e do ato de amor, por exemplo.
2. Insuficiência da concepção agostiniana do termo da fé.
a. S. Agostinho diz que a fé é a união de dois momentos diversos:
= A fé enquanto “crer a Deus” (credere Deo): segundo este momento da fé, o termo dela são “as verdades que Deus nos comunica”, isto é, crer “o que” Deus nos comunica.
= A fé enquanto “crer em Deus” (credere Deum): a fé enquanto “crer a Deus” é insuficiente, porque o decisivo da fé não está em crer “o que” Deus diz, mas em crer algo mais fundo e radical: crer “na pessoa mesma de Deus”; segundo este momento, a fé é credere Deum, “crer em Deus”; e o que é crer na pessoa de Deus, crer em Deus?; crer em Deus é “amar crendo”: credere Deum [est] credendo amare, credendo diligere (Tract. in John. XXIX, 6).
b. Pois bem, esta concepção agostiniana do termo da fé é insuficiente.
= Com efeito, é óbvio que a concepção agostiniana envolve um dualismo interno tanto pelo que diz respeito à índole do ato de fé, quanto pelo que diz respeito ao termo da fé.
# A índole do mais fundo e radical do ato da fé, ou seja, do “crer em Deus” (credere Deum), por um lado, consiste em “amar” (credendo amare) Deus, e, por outro lado, consiste em “crer” (credendo amare) a verdade comunicada por Deus.
# O termo da fé, portanto, é, por um lado, a pessoa de Deus “em si mesma”, e, por outro lado, a pessoa de Deus “enquanto portadora de verdade”.
= Agora bem, o termo da fé não pode estar perfurado por um dualismo; tem que ser algo unitário e único!
3. E é assim mesmo!; com efeito, a dimensão de verdade que envolve o termo da fé não é radicalmente “a verdade da qual é portadora a pessoa de Deus”, quer dizer, a pessoa de Deus “enquanto que diz ou faz verdades”, mas “a verdade em que a pessoa de Deus mesmo consiste”, quer dizer, a pessoa de Deus enquanto realidade pessoal verdadeira!; eis, com rigor e com toda precisão, o termo formal da fé que buscávamos: “a realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira”; a fé é a entrega pessoal do homem à pessoa de Deus enquanto verdadeira; é preciso agora explanar o que é a pessoa de Deus enquanto verdadeira.
a. Lembremos, antes de tudo, o que é “verdade”.
= Verdade, primariamente e radicalmente, não é (em contra daquilo que sempre se pensa) um caráter do pensamento que consiste na conformidade do pensamento com a realidade; a verdade primária e radical é um caráter da realidade mesma: a realidade “enquanto atualizada (enquanto que está presente) na inteligência”; ou seja: a realidade, além da inteligência, é puramente e simplesmente a realidade que é, e pronto; mas essa mesma realidade, quando se atualiza, quer dizer, quando está presente na inteligência, ganha, digamos assim, um novo caráter: é realidade “verdadeira”; por exemplo: uma árvore, além da minha intelecção visual, é justamente isso: uma árvore; essa árvore, atualizada na minha intelecção visual (vista por mim como real), é “verdadeira” árvore.
= Uma realidade enquanto verdadeira, ou seja, a verdade duma realidade, tem três dimensões: é a “manifestação” da riqueza da sua realidade, é a “firmeza” da consistência da sua realidade, e é a “constatação” da efetividade da sua realidade (cfr. Curso de Filosofia da Intelecção).
b. Tratando-se duma realidade pessoal, as três dimensões da “verdade pessoal” dela revestem caracteres próprios; uma realidade pessoal enquanto verdadeira, quer dizer, a verdade duma realidade pessoal, é a manifestação da insondável riqueza da sua realidade pessoal, é a firmeza da fiel consistência da sua realidade pessoal, e é a constatação da irrefragável efetividade da sua realidade pessoal.
c. Pois bem, a realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, quer dizer, a verdade da realidade pessoal de Deus, ou seja, a verdade pessoal divina, é, de modo absolutamente absoluto, ricamente manifesta, fielmente firme e irrefragavelmente efetiva!
= Só atingimos o termo da fé, libertando-nos da concepção angusta da verdade entendida apenas como manifestação e, ainda pior, como manifestação enunciativa de afirmações…
= Ou seja: no termo da fé é essencial a dimensão manifestativa da realidade pessoal de Deus, mas é co-essencial a esse termo da fé, isto é, à realidade pessoal de Deus à qual o homem se entrega na fé, ser uma realidade pessoal com cuja fidelidade se pode firmemente contar, e que constitui, ademais, uma realidade pessoal irrefragavelmente efetiva.
= Pois bem, tudo isso, e em forma suprema, é Deus, realidade absolutamente pessoal; por isso, a verdade pessoal de Deus, a realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, é unitariamente: a absoluta riquíssima manifestação, a absoluta firmíssima fidelidade e a absoluta irrefragável efetividade da sua realidade pessoal divina!
C. A índole do ato da fé é “entrega pessoal” à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, que consiste “em adesão pessoal, firme e opcional”.
1. A índole do ato da fé é “entrega pessoal” à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira.
a. O ato de fé é o momento primário e radical da “entrega pessoal” do homem a Deus; portanto, enquanto “entrega pessoal” do homem a Deus, o ato de fé envolve constitutivamente as três dimensões da entrega pessoal do homem a Deus, que temos visto no capítulo anterior: acatamento, súplica e refúgio; por conseguinte, crer é entregar-se pessoalmente a Deus acatando-o, suplicando-lhe e refugiando-se nele.
b. Mas isso é constitutivo do modo de entrega pessoal a Deus, que chamamos de fé, e de todos os outros modos de entrega pessoal a Deus (esperança e amor); qual é, então, a índole própria do ato de entrega pessoal à realidade pessoal de Deus que chamamos de “fé”, a diferença da esperança e do amor?; pois bem, essa índole própria é determinada pelo termo próprio do ato de fé: pela realidade pessoal de Deus “enquanto verdadeira”, nas suas três dimensões; por conseguinte, a índole própria do ato de fé consiste em entregar-me pessoalmente a Deus:
= Acatando-o como fundamento último “ricamente manifesto” da minha realização vital pessoal.
= Suplicando-lhe como fundamento possibilitante “firmemente fiel” da minha realização vital pessoal.
= Refugiando-me nele como fundamento impelente “irrefragavelmente efetivo” da minha realização vital pessoal.
2. A índole do ato da fé, enquanto entrega pessoal à verdade da realidade pessoal de Deus, consiste em adesão pessoal, firme e opcional.
a. A fé, enquanto entrega pessoal à verdade da realidade pessoal de Deus, consiste em “adesão pessoal”.
= Na fé, o homem adere pessoalmente, outorga a sua adesão pessoal, à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira; e, “conseqüentemente”, em virtude desta adesão pessoal, o homem assente, de antemão, a tudo aquilo que a realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira queira manifestar-lhe, inclusive no caso de que nunca o faça completamente.
= No entanto, não por isso a fé é “fé cega”, como costuma se dizer falsamente; a fé não é fé cega; a fé é “fé pessoal” coisa muito diferente: não é que o homem assente cegamente a tudo aquilo que Deus lhe quiser manifestar; é que o homem, porque outorgou já a sua adesão “pessoal” à realidade “pessoal” de Deus enquanto verdadeira, assente a tudo aquilo que Deus “pessoalmente” lhe quiser manifestar; dito de outro modo: é certo que, em virtude da sua adesão pessoal a Deus, o homem “não vê” tudo aquilo que Deus lhe quiser manifestar; mas também é certo que a adesão pessoal do homem a Deus “faz que ele assenta de antemão” a tudo aquilo que Deus lhe quiser manifestar; daí que digamos: Deus “inspira” fé e isso “nos move” à aderir-nos pessoalmente a ele e a assentir a tudo aquilo que nos quiser manifestar.
= Na sua adesão pessoal à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, o homem “se incorpora” à pessoa de Deus; em certo modo, digamos assim, “corre a mesma sorte” dela; em virtude disso, a realidade pessoal do homem ganha os caracteres da verdade da realidade pessoal divina à qual adere pessoalmente; torna-se, por assim dizer, mais verdadeiro: mais ricamente manifesto, mais firmemente fiel e mais irrefragavelmente efetivo!
b. A fé, enquanto entrega pessoal à verdade da realidade pessoal de Deus, consiste em adesão pessoal “firme”.
= A adesão pessoal do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, tem caráter de “firmeza certa”; esta firmeza certa não é uma espécie de obstinação psicológica, mas é “segurança pessoal”.
= A fé, como adesão pessoal “firme e certa” admite graus, quer dizer há adesões pessoais mais ou menos firmemente certas.
# No começo do século XX, a filosofia e a teologia conceberam estes graus como uma espécie de degraus na escada da segurança da fé, que iriam desde a segurança que dá a simples possibilidade de algo, passando por aquela que dá a probabilidade de algo, até chegar àquela que dá a certeza de algo, certeza que, em realidade, não seria outra coisa que a segurança que dá a máxima probabilidade de algo (em definitiva, o grau de mínima insegurança...).
# Pois bem, isto é impossível:
+ Com efeito, a fé, como adesão pessoal firme e certa que é (caso contrário não seria fé, mas outra coisa), está sempre dentro do âmbito da certeza firme e, nesse sentido, exclui o medo de errar, digamos assim.
+ O que acontece é que esta exclusão do medo de errar admite graus, e, conseqüentemente, há graus de certeza firme, mas sempre dentro do âmbito dela; e estes graus de certeza firme (de exclusão do medo de errar) não se medem por graus de insegurança maior ou menor (coisa que não cabe na fé), mas se medem pelo grau de “energia” por assim dizer, com que a adesão pessoal a Deus brota da pessoa humana e se instala nela; em virtude disso, a adesão pessoal do homem a Deus pode ser mais ou menos firmemente certa.
+ Neste sentido, ter mais fé que outro significa aderir-se pessoalmente a Deus “com maior energia, com energia mais resistente” que ele, digamos assim; e aquele que perde a certeza firme da sua adesão pessoal a Deus, não perde apenas o caráter de “certeza firme” dela; o que perde, em definitiva, é a sua adesão pessoal a Deus e, portanto, a sua fé.
= O caráter constitutivo de certeza firme que tem a fé, descobre-nos um duplo aspecto na fé: a fé como ato de fé, e a fé como estado de fé; até aqui, temos falado sempre da fé como ato de fé, mas este ato de fé, precisamente porque é intrinsecamente firme e certo, deixa àquele que o executa num estado: é a fé como “estado de fé”: ao “creio” do ato de fé, acompanha o “estou crendo” do estado de fé; pois bem, o estado de fé não é simplesmente individual, mas também social e histórico (como tudo aquilo que é pessoal).
# Todo homem nasce e vive numa sociedade histórica determinada; e toda sociedade histórica constitui o que chamamos de “corpo social histórico”.
# Ao corpo social histórico pertence todo um sistema de idéias, apreciações, normas, usos, costumes, etc., que vigem nesse corpo social histórico; desse sistema formam parte também as idéias sobre Deus desse corpo social histórico; para os indivíduos desse corpo social histórico, esse sistema constitui um topos, um lugar comum, algo do qual os indivíduos “deitam mão” como princípios ou poderes que determinam a vida deles.
# Pois bem, também enquanto elemento do corpo social histórico, a fé é “algo em que o homem “está”” firmemente, com segurança: é a fé em que o homem está “instalado” em virtude da sua pertença a uma sociedade histórica determinada.
# Isso não quer dizer, porém, que o indivíduo compartilhe forçosamente essa fé; pode não compartilhá-la por muitas razões, porque fé instalada não quer dizer, em absoluto, fé “obturada”; mas, em geral, o indivíduo, de algum modo, comparte a fé do seu corpo social histórico; dito de outro modo: a sua fé não é uma fé que brota dele desde zero, mas uma fé conformada concretamente, em princípio, pela forma de fé do seu corpo social histórico.
c. A fé, enquanto entrega pessoal à verdade da realidade pessoal de Deus, consiste em adesão pessoal firme “opcional”.
= A fé, como adesão pessoal é sempre uma opção, ou seja, uma adesão constitutivamente opcional; com efeito, na sua adesão pessoal a Deus, o homem vai ativamente desde ele mesmo a Deus; é o homem, desde ele mesmo, aquele que outorga a sua adesão pessoal a Deus.
= Mas este caráter constitutivamente opcional da adesão pessoal a Deus não repousa sobre si mesmo, mas na “atração” de Deus que, doando-se pessoalmente ao homem como fundamento da realização da sua vida pessoal, o atrai a Si; esta atração de Deus envolve todos os diversos modos com os quais a realidade pessoal de Deus requer o homem sem forçá-lo: solicitação, insinuação, sugestão, etc.
= O caráter opcional da adesão pessoal a Deus consiste, portanto, em que o homem, crendo, “aceita ou não “fazer sua” esta atração da doação pessoal de Deus a ele”; só quando o homem a faz sua, a atração da doação pessoal de Deus a ele se torna adesão pessoal do homem a Deus, se converte em fé.
= Tem mais: a fé é uma adesão opcional a Deus “da pessoa humana por inteiro”, ou seja, é uma opção aderente de toda a realidade vital pessoal do homem, e não só da inteligência, nem só do sentimento, nem só da vontade, etc., dele; e por quê?; porque é uma opção aderente do homem em ordem à configuração de toda a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos; daí que essa opção não seja uma espécie de inclinação ou tendência da alma do homem (como usualmente se diz), mas um ato da realidade vital pessoal inteira do homem.
= Finalmente, em virtude precisamente do seu caráter opcional, a fé é radicalmente livre; livre significa aqui que não somos arrastados a ela incoercivelmente por Deus, mas simplesmente atraídos; ou seja, somos nós aqueles que decidimos fazer nossa a atração de Deus; daí que liberdade não seja arbitrariedade; opção livre não quer dizer opção arbitrária, mas opção não forçada, coisa muito diferente: precisamente porque existe a atração da doação pessoal de Deus a nós, a nossa opção está fundada justamente naquilo que nos atrai, isto é, na pessoa de Deus que se doa a nós na verdade da sua realidade pessoal.
VII
DIFERENÇA E UNIDADE ENTRE
INTELECÇÃO DE DEUS E FÉ EM DEUS
A. Insuficiência da concepção da filosofia e da teologia clássicas a respeito
1. Exposição
a. A filosofia e a teologia clássicas colocam a questão assim: é possível que uma mesma verdade seja verdade de razão e verdade de fé ao mesmo tempo para a mesma pessoa?; obviamente, o “nó” da questão estriba nesse “ao mesmo tempo para a mesma pessoa”; com efeito, sem problema algum, uma verdade (um dificultoso teorema matemático, por exemplo) pode ser ao mesmo tempo verdade de razão para um esperto em matemáticas, e verdade de simples crença para um leigo na matéria.
b. Pois bem, tratando-se de Deus, a dificuldade é esta: se a razão me provou a realidade de Deus, como pode essa realidade de Deus ser para mim termo de fé, ou seja, de opção livre?
c. É óbvio que esta colocação clássica da questão pressupõe duas coisas: saber é ver e fé é crer aquilo que não vemos; daí que pareça impossível ver (=saber) e não-ver (=crer) ao mesmo tempo.
d. Eis a solução da filosofia e da teologia clássicas: tratando-se de verdades religiosas, para admiti-las não basta apenas a razão, mas é preciso ademais algumas “disposições morais”.
2. Insuficiência
a. Como se pode apreciar, a colocação clássica da questão identifica indevidamente inteligência e razão; mesmo assim, a dificuldade do “ver e não ver ao mesmo tempo” não é resolvida, mas apenas é transferida a outra dificuldade: “à conexão entre razão e disposições morais”.
b. Dito de outro modo: permanece na penumbra quais sejam essas disposições morais e qual seja a função delas na intelecção da realidade de Deus.
B. Correta colocação do problema intelecção de Deus “e” fé em Deus
1. Falsidade dos pressupostos clássicos
a. Saber não é ver.
= Só uma concepção angusta da inteligência humana como “inteligência concebente” pode ter conduzido a essa afirmação falsa, que, porém, é tida como óbvia desde os gregos.
= Pois bem, temos que dizer energicamente que saber algo não é vê-lo; saber, ou seja, inteligir racionalmente algo real, é sempre e só inteligir aquilo que é na realidade algo “já” inteligido impressivamente como real; por exemplo, saber, inteligir racionalmente esta abelha, é inteligir que esta abelha, já inteligida como real em impressão visual, auditiva, tátil, etc., é na realidade um inseto himenóptero da superfamília dos apídeos, etc., etc.
= Por conseguinte, o saber, a intelecção racional das coisas reais (=razão) é um modo ulterior de intelecção fundado no modo primário e radical da intelecção, que é a intelecção impressiva dessas coisas reais; agora bem, a intelecção impressiva visual (=ver), como já temos dito, não é o modo exclusivo da intelecção impressiva humana das coisas reais, mas só “um” dos dez modos da mesma; por isso, a intelecção racional das coisas reais (=razão), como também temos já dito, envolve estruturalmente não só o modo de intelecção impressiva visual das coisas reais (=ver), mas os outros nove modos da intelecção impressiva da realidade: auditiva, olfativa, fruinte, tátil, cinestésica, temperante, afeiçoante, direcional e cenestésica.
= Daí que o melhor do nosso saber, as melhores das nossas intelecções racionais das coisas reais, possam perfeitamente não consistir em “ver” o que as coisas reais são na realidade; basta lembrar o exemplo do nosso saber acerca das partículas elementares.
# Quando a física das partículas elementares formula as equações às quais obedecem, fica bem claro que as partículas elementares não são nem corpúsculos nem ondas clássicas, ainda que compartam certos caracteres tanto com os corpúsculos quanto com as ondas clássicas; em virtude disso, as partículas elementares não é que não tenham sido “vistas” de fato; é que “não são visualizáveis”!
# É óbvio, portanto, que o nosso saber acerca das partículas elementares nem consiste nem consistirá jamais em “vê-las”; e insistimos neste exemplo tão fundamental do saber contemporâneo, para que ninguém possa pensar que a negação da identidade “saber=ver” concerne só a temas teológicos...
b. Fé não é crer aquilo que não se vê.
= Supondo falsamente que saber é ver, pensa-se eo ipso que o não-visto fica eliminado da inteligência e alojado no domínio do irracional: da fé que é “fé cega”.
= Pois bem, isto é radicalmente falso; como temos dito no capítulo anterior, a fé não é fé cega, e isto por dois motivos.
# Primeiro, pensa-se que a fé é cega, quer dizer, que não vê nada, porque se identifica intelecção e visão, e isso é radicalmente falso como acabamos de dizer; se ainda se quer falar da intelecção em termos de “ver”, tem-se que incluir nesse “ver” não só a visão, mas os outros nove modos de intelecção impressiva das coisas reais.
# Segundo, uma vez ampliado esse conceito restrito de “ver” a todos os outros modos não visuais de intelecção das coisas reais, temos que afirmar energicamente que a fé não é cega, porque a fé “vê” aquilo que crê, quer dizer, a fé “intelige de algum modo” aquilo que crê, ou seja, a fé crê em algo que de algum modo está presente na inteligência; com efeito, o termo da fé, como temos dito, é a realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira; pois bem, como também temos dito, a realidade pessoal de Deus enquanto “verdadeira” é justamente a realidade pessoal de Deus “enquanto que está presente na inteligência do homem”; como?; já o temos dito: sobretudo nos modos auditivo e tátil da intelecção humana; a realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira está presente na inteligência humana sobretudo como notícia e nua presença de Deus.
= Portanto, é falso que fé seja crer aquilo que não se vê; a fé, a entrega pessoal do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, envolve sempre uma estrita e rigorosa intelecção (do tipo que for) da realidade pessoal de Deus.
c. Daí que seja completamente falso dizer que é impossível saber e crer ao mesmo tempo; com efeito, daquilo que acabamos de dizer desprende-se claramente que não só é possível crer e inteligir ao mesmo tempo, mas que o que é impossível é justamente o contrário: crer sem saber, porque é inexorável que a fé forçosamente tenha que inteligir de algum modo aquilo que crê!
2. A dupla vertente da justificação intelectiva humana da realidade de Deus e a distinção-unidade entre intelecção de Deus e fé em Deus.
a. O homem tem intelecção imediata do fato da sua “religação constitutiva ao poder do real” (à realidade enquanto poderosa, quer dizer, à deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos; com isto não queremos dizer, obviamente, que todo homem tenha intelecção imediata do fato da sua religação ao poder do real “nos termos que acabamos de dizer” e que temos explicado demoradamente no capítulo segundo; para isso seria necessário que todo homem fosse um esperto em metafísica e ainda em metafísica zubiriana; e, obviamente, não é o caso…
b. Na vivência problemática, na experiência da inquietude radical da sua realização vital pessoal, o homem tem também intelecção imediata do caráter “enigmático” da sua religação constitutiva ao poder do real (da realidade enquanto poderosa, quer dizer, da deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos.
c. Pois bem, a intelecção imediata do caráter enigmático da sua religação constitutiva ao poder do real (da realidade enquanto poderosa, quer dizer, da deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos, “lança inexoravelmente o homem para a intelecção do fundamento dessa sua enigmática religação constitutiva ao poder do real”.
d. Lançado inexoravelmente para a intelecção do fundamento dessa sua enigmática religação constitutiva ao poder do real, o homem é forçado a tentar justificar intelectivamente (seja como for) a realidade de Deus (seja o que for ou quem for) como fundamento da sua enigmática religação constitutiva ao poder do real.
e. Pois bem, a questão da diferença e da unidade entre intelecção de Deus e fé em Deus radica por inteiro no caráter “ambivalente”, digamos assim, da justificação intelectiva da realidade de Deus, em virtude de tratar-se da justificação intelectiva da “realidade-fundamento” da enigmática e constitutiva religação do homem ao poder do real (da realidade enquanto poderosa, quer dizer, da deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos; vejamos.
= A justificação intelectiva da realidade de Deus, não é a justificação intelectiva duma “realidade-objeto”, quer dizer, duma realidade a mais que está perante o homem e que é objeto da sua pesquisa; a justificação intelectiva da realidade de Deus é a justificação intelectiva da “realidade-fundamento” do poder do real (da realidade enquanto poderosa, quer dizer, da deidade), religado enigmaticamente e constitutivamente ao qual o homem realiza a sua vida pessoal em cada um dos seus atos!
= Agora bem, essa “realidade-fundamento”, que é Deus (seja o que for e seja quem for), por um lado é a realidade de Deus “em si mesma”, e, por outro lado, é a realidade de Deus “que está fundamentando” a realização da vida pessoal do homem em cada um dos seus atos, religado enigmaticamente e constitutivamente ao poder do real (à realidade enquanto poderosa, quer dizer, à deidade).
= Daí que a justificação intelectiva da realidade de Deus seja ambivalente, ou seja, que tenha duas vertentes, por assim dizer: por um lado, é justificação intelectiva da realidade de Deus “em si mesma”, e, por outro lado, é justificação intelectiva da realidade de Deus “que está fundamentando” a realização da vida pessoal do homem em cada um dos seus atos, religado enigmaticamente e constitutivamente ao poder do real (à realidade enquanto poderosa, quer dizer, à deidade).
= Em virtude disso, a sua justificação intelectiva da realidade de Deus faz que a atitude do homem a respeito da realidade de Deus tenha inexoravelmente duas dimensões diferentes mas inseparavelmente unidas:
# Por um lado, a atitude do homem a respeito da realidade de Deus é atitude de “intelecção” da realidade de Deus seja em si mesma seja enquanto fundamento da realização da sua vida pessoal.
# Por outro lado, a atitude do homem a respeito da realidade de Deus é atitude de “aceitação” da realidade de Deus (positiva ou negativa, isto é outra questão que veremos mais tarde) como fundamento da realização da sua vida pessoal; esta segunda dimensão da atitude do homem a respeito da realidade de Deus é justamente o que chamamos de “fé”, que consiste, como temos dito, na entrega pessoal do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira.
= Portanto, é claro que a justificação intelectiva da realidade de Deus mostra tanto a essencial distinção quanto a essencial unidade que há entre intelecção de Deus e fé em Deus; nesta linha podemos agora tratar com precisão e rigor essa questão.
C. Há uma diferença essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus.
1. Há um caso óbvio: o caso em que a fé recai sobre algo que pela sua própria índole não pode ser termo de intelecção demonstrativa.
a. O homem pode crer, ou seja, pode entregar-se pessoalmente à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira em dimensões que certamente intelige de algum modo, mas que de modo nenhum pode inteligir demonstrativamente.
b. É o caso, por exemplo, de tantos momentos da fé cristã: os fiéis cristãos se entregam pessoalmente à divindade de Jesus Cristo, por exemplo; é óbvio que, para isso, a inteligem de algum modo, mas também é obvio que, pela própria índole dela, não podem inteligi-la demonstrativamente; estas dimensões da realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira são aquilo que denominados justamente de “mistérios”; não são mistérios porque deles não caiba demonstração, mas, ao invés, deles não cabe demonstração porque são mistérios; mas isto não é problema da filosofia.
2. Intelecção de Deus e fé em Deus também são essencialmente distintas (e separáveis!) no caso de dimensões do termo da fé que também são termos de intelecção demonstrativa.
a. Há termos de intelecção demonstrativa, como a existência de Deus, nos quais, porém, o homem pode perfeitamente não crer; nesses casos, intelecção de Deus e fé em Deus não só são distintas, mas, ademais, são perfeitamente separáveis.
= A intelecção da realidade pessoal de Deus, incluídas as eventuais intelecções rigorosamente concluintes e evidentes dela, não força o homem à fé na realidade de Deus.
= E por quê?; não, como falsamente se costuma dizer, porque se inteligimos com rigor a realidade pessoal de Deus, já não precisamos ter fé nela, dado que a intelecção rigorosa exclui a fé; mas porque inteligir a realidade pessoal de Deus e crer nela, quer dizer, entregar-se pessoalmente a ela enquanto verdadeira, são duas coisas irredutivelmente distintas, como dá para ver facilmente.
b. A teologia e a filosofia clássicas propendem tratar “Deus” como se fosse uma realidade-objeto, tudo o supereminente que se quiser, mas realidade-objeto em definitiva; daí que defendam a impossibilidade de ter fé num Deus intelectivamente demonstrado; mas isto é falso: Deus não é realidade objeto, mas realidade-fundamento, como temos dito.
= Sendo Deus realidade-fundamento, inteligi-lo, ainda que de modo muito concluinte, convincente e provatório, como aquele que está fundamentando a realização da minha vida pessoal em cada um dos meus atos, não equivale “sem mais” a crer nele, quer dizer a entregar-me pessoalmente a ele.
= Dito de outro modo: que Deus seja aquele que está fundamentando a realização da minha vida pessoal em cada um dos meus atos, em última instância, é só “coisa de Deus”, digamos assim; não é sem mais “coisa minha”; com efeito, Deus está fundamentando a realização da minha vida pessoal em cada um dos meus atos, saiba-o eu ou não, queira-o eu ou não; para que o fundamentar divino da realização da minha vida pessoal em cada um dos meus atos seja também “coisa minha” é preciso algo a mais: é preciso que seja eu quem faça meu o fundamentar divino da realização da minha vida pessoal em cada um dos meus atos, quer dizer, é preciso que eu creia em Deus, que me entregue pessoalmente à sua realidade pessoal enquanto verdadeira.
= Daí que a fé, a entrega pessoal do homem a Deus, consista em que o homem assuma pessoalmente na realização da sua vida pessoal, “enquanto feita por ele”, a realização da sua vida pessoal “enquanto fundamentada em Deus”.
= Em outras palavras: que Deus fundamente a realização da vida pessoal do homem é “função de Deus na vida pessoal do homem”: é a sua doação pessoal ao homem; no entanto, que o homem assuma essa fundamentação divina da realização da sua vida pessoal - que acontece nele saiba ou não, queira ou não - é “fazer reduplicativamente sua” a fundamentação divina da realização da sua vida pessoal: é a sua entrega pessoal a Deus enquanto verdadeiro, é a sua fé.
c. Assim pois, fica claro não só que intelecção de Deus e fé em Deus são distintas, mas que são, inclusive, perfeitamente separáveis.
= O homem pode inteligir, até demonstrativamente, a existência de Deus e o caráter fundante dele, e ter, no entanto, uma atitude distinta da fé, da entrega pessoal a Deus enquanto verdadeiro: pode, por exemplo, despreocupar-se de Deus, ocupar-se dele só como se fosse uma realidade-objeto a mais do Universo; pode, inclusive, revoltar-se contra Deus e rejeitá-lo da sua vida, etc.
# Em todos esses casos, é claro que, apesar de haver intelecção de Deus por parte do homem, e inclusive de caráter demonstrativamente concluinte (como pode o homem despreocupar-se, rejeitar, etc., algo que não intelige de modo nenhum?), não há entrega pessoal do homem a Deus enquanto verdadeiro, isto é, não há fé.
# Em nenhum destes casos, a falta de fé do homem em Deus procede de que o homem tem intelecção, até demonstrativa, da realidade de Deus e do caráter fundante dele, e, portanto, de que ao haver intelecção, até demonstrativa, de Deus, a fé seja impossível por inútil; a falta de fé do homem em Deus, em todos esses casos, procede de que há intelecção, até demonstrativa, de Deus e do seu caráter fundante, sem haver entrega pessoal do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira.
= Há outro tipo de caso, em que, apesar de que a sua intelecção da realidade de Deus e do seu caráter fundante seja intelectivamente insuficiente, por assim dizer, o homem tem uma grande fé, quer dizer, se entrega pessoalmente, com grande energia, à realidade de Deus enquanto verdadeira.
# Que isto aconteça tantas vezes no caso da fé cristã, por exemplo, cujo termo inclui dimensões “misteriosas” da verdade pessoal divina, e que, portanto ultrapassam as capacidades da inteligência humana em si mesma, é mais do que evidente.
# Mas isto acontece também quando o homem mesmo não considera suficientemente convincente a sua intelecção da realidade de Deus e do seu caráter fundante, e, no entanto, se entrega pessoalmente à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, com enorme intensidade e energia; nesses casos, é evidente que há intelecção insuficiente de Deus e, no entanto, há grande fé em Deus.
d. Assim pois, por qualquer lado que se olhar a questão, há intelecção de Deus (demonstrativa ou não, suficiente ou precária) e há fé ou não há fé em Deus, quer dizer, entrega ou ausência de entrega pessoal do homem a Deus enquanto verdadeiro; pode haver intelecção de Deus e não haver fé em Deus, e poder haver tanto intelecção de Deus quanto fé em Deus; assim pois, há sempre e em todo caso uma irredutível distinção entre intelecção de Deus e fé em Deus.
= Daí o grave erro de quem diz: “se há prova de Deus, não pode haver fé em Deus; e, se há fé em Deus, não é possível que haja prova de Deus”; ambas as afirmações são falsas; com efeito:
# A intelecção, inclusive demonstrativa de Deus, não comporta a entrega pessoal a ele: pode haver intelecção provatória de Deus e pode tanto haver fé quanto não havê-la.
# Toda fé, toda entrega pessoal a Deus enquanto verdadeiro, supõe sempre a intelecção de Deus (demonstrativa ou não).
= Por conseguinte, a questão da intelecção de Deus e da fé em Deus não é questão de dois modos de intelecção (a intelecção da razão e a intelecção da fé); isso é completamente absurdo; a questão da intelecção de Deus e da fé em Deus é questão dum único modo de intelecção (a intelecção de Deus, demonstrativa ou não) e de duas atitudes possíveis do homem perante o Deus inteligido por ele: fé ou não-fé (entrega pessoal ou não a Deus enquanto verdadeiro).
D. Há uma unidade essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus.
1. Ainda que essencialmente distintas, intelecção de Deus e fé em Deus estão essencialmente unidas, também quando há intelecção de Deus de caráter demonstrativo.
a. Como temos visto, toda fé em Deus, toda entrega pessoal do homem a Deus enquanto verdadeiro, leva em si uma certa intelecção desse Deus no qual o homem crê, ao qual o homem se entrega pessoalmente; sem essa intelecção da realidade de Deus, não haveria possibilidade nenhuma de fé, de entrega pessoal do homem a Deus enquanto verdadeiro; e, como temos visto também, isto continua sendo verdade também quando o homem que se entrega pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro tem uma intelecção demonstrativa da realidade de Deus.
b. Isto nos mostra que a unidade entre intelecção de Deus e fé em Deus está ancorada na intelecção e não fora dela; dito de outro modo: intelecção de Deus e fé em Deus não constituem “em primeira linha” dois domínios diversos (o domínio da razão e o domínio da fé), mas uma dupla função da intelecção mesma.
= Sendo Deus, como é, realidade-fundamento, a intelecção de Deus, por um lado, “descobre-nos” Deus como realidade-fundamento em si mesmo e, unitariamente, “instala-nos” no âmbito da fundamentalidade divina da realização da nossa vida pessoal, “possibilitando que façamos nossa” essa fundamentalidade.
= Não se trata de duas funções da intelecção de Deus, mas de duas dimensões da única e mesma função da intelecção de Deus determinadas precisamente pelo caráter de realidade-fundamento daquele que é inteligido nessa intelecção: Deus.
= Certamente, a intelecção de Deus não me força à fé, quer dizer, a fazer minha a fundamentalidade divina da realização da minha vida pessoal (porque, então, essa fé não seria adesão pessoal “opcional” e, portanto não seria fé); mas a intelecção de Deus, inexoravelmente, é aquela que “faz possível” a fé; a intelecção de Deus faz possível que eu faça de Deus, reduplicativamente, o fundamento da configuração da minha realidade vital pessoal em cada um dos meus atos.
= Daí que a possibilidade da fé em Deus não é algo que temos “ademais” da intelecção de Deus; a intelecção de Deus é “a abertura do âmbito da possibilidade da nossa fé em Deus”; dito de outro modo: a intelecção de Deus é já, em si mesma, “uma possível fé”!
2. Isto não contradiz que intelecção de Deus e fé em Deus sejam distintas e separáveis; essa contradição é apenas aparente.
a. Os que formam uma unidade essencial são a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus; agora bem, é evidente que a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus, não é fé em Deus; portanto, a fé em Deus (e todas as demais atitudes possíveis do homem perante Deus: despreocupação, rejeição, etc.) é essencialmente distinta da intelecção de Deus e perfeitamente separável dela.
b. Mas, por outro lado, precisamente em virtude da unidade essencial que formam a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus, a intelecção de Deus e a fé em Deus, se pertencem inexoravelmente; tanto é assim, que, uma vez tendo inteligido Deus, o homem, no âmbito da possibilidade da fé, pode tomar atitudes muito diversas, mas inexoravelmente tem que tomar alguma!; num caso extremo, pode despreocupar-se de Deus, mas não esqueçamos que este despreocupar-se é um ato positivo do homem; dito de outro modo: não é abster-se dum ato, mas é um ato de abstenção, e portanto uma atitude positivamente negativa perante Deus!
3. Daí que sejam insuficientes as concepções clássicas da “conexão” intelecção-fé, que vêm correndo desde os tempos de Tertuliano e de Sto. Agostinho.
a. Alguns carregam o acento na fé e dizem: creio para inteligir (credo ut intelligam); outros carregam o acento na intelecção e dizem: intelijo para crer (intelligo ut credam).
b Pois bem, essa mais que plausível “conexão bidirecional” intelecção-fé não é a “unidade essencial” primária e radical que há entre intelecção de Deus e fé em Deus.
= Com efeito, todas as concepções da unidade essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus como simples “conexão” entre elas supõem que essa unidade consiste em “caminho”, quer dizer, supõem que a fé em Deus é caminho para a intelecção de Deus e que a intelecção de Deus é caminho para a fé em Deus.
= Pois bem, ser caminho mútuo não é a unidade essencial primária e radical que há entre intelecção de Deus e fé em Deus, como temos visto; essa unidade é a unidade essencial que há entre a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus.
= Levada esta questão ao terreno teológico cristão, tratando-se, portanto, de mistérios aos quais a inteligência não pode chegar demonstrativamente, é verdade que pode se falar em certo modo de caminho mútuo entre intelecção de Deus e fé em Deus; mas essa consideração suscita, pelo menos, duas questões mais radicais:
# Como é possível esse caminho mútuo, ou seja, em que se funda?; ninguém o diz; no entanto, é impossível que um termo seja caminho para outro (e vice-versa), se não há alguma dimensão anterior comum a esses dois termos na qual traçar esse caminho em questão; pois bem, essa dimensão comum anterior é justamente a que nós temos encontrado: a unidade essencial que há entre a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus.
# Por que se fala de conexão bidirecional entre intelecção de Deus e fé em Deus apenas pelo que diz respeito aos mistérios divinos e não pelo que diz respeito às verdades inteligidas demonstrativamente, como a existência de Deus?; o motivo é simples não foi visto o nó essencial da questão; com efeito, a questão da unidade essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus se coloca de modo radical no que diz respeito a verdades, como a existência de Deus, que podem ser inteligidas demonstrativamente.
+ A unidade essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus na verdade da existência de Deus, está em que, sendo Deus realidade-fundamento, a prova da existência da realidade de Deus constitui o âmbito da possível fé nele, da possível entrega pessoal do homem a Deus enquanto verdadeiro.
+ Mas, então, é evidente que a unidade essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus não consiste no “caminho” que vai da intelecção de Deus à fé em Deus, e vice-versa, mas da unidade essencial que há entre a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus; nesta unidade essencial se funda a conexão de tipo “caminho”, quer dizer, de tipo ut (credo “ut” intelligam; intelligo “ut” credam) seja que se trate de verdades divinas demonstráveis, seja que se trate de verdades divinas indemonstráveis.
VIII
A UNIDADE EFETIVA ENTRE
INTELECÇÃO DE DEUS E FÉ EM DEUS:
A VONTADE DE VERDADE FUNDAMENTAL
A. A unidade efetiva entre intelecção de Deus e fé em Deus se radica na “vontade de verdade”.
1. A unidade efetiva entre intelecção de Deus e fé em Deus se radica na “vontade” do homem.
a. No capítulo anterior, temos visto que há uma unidade essencial entre intelecção de Deus e fé em Deus: a unidade entre a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus; mas é claro que se trata duma unidade “possível” entre intelecção de Deus e fé em Deus, ou seja, da unidade entre a intelecção de Deus e a “possibilidade” da fé em Deus.
b. Agora a questão é outra: em virtude de que essa unidade “possível” entre intelecção de Deus e fé em Deus passa a ser uma unidade “efetiva” entre intelecção de Deus e fé em Deus?; em outras palavras: em virtude de que o homem passa da intelecção de Deus e da possível fé em Deus à fé efetiva em Deus, ou seja, a crer efetivamente em Deus?
c. Lembremos, de entrada, os três momentos estruturais pelos quais o homem passa das suas possibilidades à realização delas: apropriação, forçosidade e opção, que são os três momentos estruturais da “volição” do homem (cfr. Curso de Filosofia Moral).
= Em virtude da sua intelecção das realidades (das coisas reais, dos demais homens e de si mesmo) o homem, unitariamente, intelige as possibilidades que lhe oferecem essas realidades de realizar nelas, com elas e por elas, a sua própria realidade pessoal vital em cada um dos seus atos; nenhuma intelecção do homem, por aparentemente afastada que estiver da sua realidade, por exemplo, a intelecção dum abstrato teorema de matemáticas, acha-se isenta desta condição.
= Pois bem, quando o homem, executando um ato, realiza uma dessas possibilidades que lhe oferecem as realidades (as coisas reais, os demais homens e ele mesmo), aquilo que está fazendo na realidade é “apropriar-se” duma possibilidade de realização da sua vida pessoal que lhe oferecem as realidades.
= No entanto, não é que o homem apenas “de fato” se aproprie de possibilidades da realização da sua vida pessoal que lhe são oferecidas pelas realidades; é que “forçosamente”, em cada situação, “tem que” que apropriar-se de alguma delas, seja a que for.
= Pois bem, apropriando-se duma possibilidade de realização da sua vida pessoal que lhe é oferecida pelas realidades, o que o homem faz é determinar-se por um modo concreto de realizar a sua vida pessoal; nisso consiste essencialmente o que chamamos de “volição” (querer); a volição humana (o querer) é ultimamente e radicalmente determinar-se o homem por uma possibilidade de realização da própria vida pessoal, oferecida pelas realidades, apropriando-se dela; e, como as possibilidades de realização da própria vida pessoal são diversas, toda apropriação duma delas em vez de outras, é necessariamente uma “opção”.
= Em definitiva: toda volição humana (toda “vontade do homem”) é uma opção livre do homem que realiza, por apropriação, uma das possibilidades que lhe oferecem as realidades de realizar a sua vida pessoal.
d. Por conseguinte, voltando à nossa questão, temos que afirmar que a unidade efetiva entre intelecção de Deus e fé em Deus, quer dizer, a passagem do homem da sua intelecção de Deus e da sua possível fé em Deus à sua fé efetiva em Deus, radica na livre opção ou “vontade” humana; com efeito:
= O homem, na sua intelecção da realidade de Deus e do seu caráter de realidade-fundamento, unitariamente intelige a possível opção livre (“vontade”) da fé em Deus entre as outras opções livres possíveis: fé, despreocupação, rejeição, etc.
= Aí o homem efetua a opção livre (“vontade”) da fé em Deus que inteligiu unitariamente com a intelecção da realidade de Deus e do seu caráter de realidade-fundamento.
2. A vontade humana em que se radica a unidade efetiva entre intelecção de Deus e fé em Deus é “vontade de verdade”.
a. Dois significados latos da expressão “vontade de verdade”
= Em sentido amplíssimo, “vontade de verdade” significa o que diz a filosofia clássica: a vontade do homem é vontade de verdade porque só decide dentro dos termos que lhe apresenta a razão, e, em virtude disso, sempre decide “sabendo” (de alguma maneira) a que se decide, quer dizer, se decide dentro do verdadeiro, dentro da verdade (entendendo por verdade, em sentido amplíssimo, “o sabido” pela razão); justamente daqui arranca a insuficiente concepção da vontade na filosofia clássica como “apetite racional” (cfr. Curso de Filosofia Moral).
= Em sentido amplo, “vontade de verdade” significa decidir com veracidade, quer dizer, decidir por algo “que é deveras”, e não pelo “que é apenas “em aparência””; querer as aparências é querer o engano; e o homem pode perfeitamente ter vontade de enganar ou de enganar-se; a vontade de verdade consiste, pelo contrário, em decidir com veracidade e não com engano; é no fundo (só no fundo) aquilo que Nietzsche entendia por vontade de verdade (Wille zur Wahrheit): a veracidade (Wahrhaftigkeit) com os demais e consigo mesmo.
b. Nestes dois sentidos, emprega-se hoje com profusão a expressão “vontade de verdade”; mas há um terceiro significado dela, que é o mais radical e aquele que funda os outros dois; vejamos.
= Lembremos mais uma vez o que é “verdade”.
# Verdade, primariamente e radicalmente, não é (em contra daquilo que sempre se pensa) um caráter do pensamento que consiste na conformidade do pensamento com a realidade; a verdade primária e radical é um caráter da realidade mesma: a realidade “enquanto atualizada (enquanto que está presente) na inteligência”; ou seja: a realidade, além da inteligência, é puramente e simplesmente a realidade que é, e pronto; mas essa mesma realidade, quando se atualiza, quer dizer, quando está presente na inteligência, ganha, digamos assim, um novo caráter: é realidade “verdadeira”; por exemplo: uma árvore, além da minha intelecção visual, é justamente isso: uma árvore; essa árvore, atualizada na minha intelecção visual (vista por mim como real), é “verdadeira” árvore.
# Uma realidade enquanto verdadeira, ou seja, a verdade duma realidade, tem três dimensões: é a “manifestação” da riqueza da sua realidade, é a “firmeza” da consistência da sua realidade, e é a “constatação” da efetividade da sua realidade (cfr. Curso de Filosofia da Intelecção).
= Pois bem, a verdade primária e radical duma coisa real, quer dizer, a atualidade (o estar presente) dela no modo primário e radical de inteligência, que é a intelecção impressiva das coisas (visão da realidade, audição da realidade, etc.), nos lança inexoravelmente, nos dois modos ulteriores de intelecção (logos e razão), a “idear” (conceber, julgar, raciocinar, supor, etc.) o que essa coisa real é em realidade e na realidade.
= Desse modo, ao lançar-nos a idear, a verdade nos abre eo ipso duas possibilidades:
# Repousar nas idéias mesmas como se fossem o cânon mesmo da realidade, e, no caso extremo, acabar por fazer das nossas idéias a verdadeira realidade…
# Dirigir-nos à realidade mesma tomando as idéias como órgãos que facilitam (ou dificultam!) que façamos cada vez mais presente a realidade na nossa inteligência, de tal modo que, guiada pela verdade da realidade, a nossa inteligência entre mais e mais na realidade e consiga um incremento, digamos assim, da verdade da realidade.
= Pois bem, entre estas duas possibilidades, o homem tem que optar livremente, quer dizer, tem que executar um ato de vontade:
# O homem que opta livremente pela possibilidade de ater-se preferentemente às suas idéias tem “vontade de idéias”.
# O homem que opta livremente pela possibilidade de ater-se preferentemente à realidade das coisas tem “vontade de verdade”!
= O homem escorrega muito facilmente pela pendente da vontade de idéias…; mais difícil e menos brilhante é ater-se, de modo ferrenho, à vontade de verdade…; hoje em dia, mais do que nunca, é urgente reclamar ao homem que tenha vontade de verdade!!!
c. A vontade de verdade é unitariamente vontade de realização verdadeira da própria realidade vital pessoal.
= Com efeito, optar livremente pela verdade, pela realidade verdadeira, e não pelas nossas idéias da realidade, é, em última instância, apropriar-nos duma possibilidade de realização da nossa realidade vital pessoal e rejeitar outra possibilidade de realização da nossa realidade vital pessoal.
= Pois bem, o homem que tem vontade de verdade opta livremente por apropriar-se das possibilidades da própria realização vital pessoal que a verdade da realidade lhe oferece, de modo que faz que seja a verdade da realidade aquela que configura a realidade da sua vida pessoal em cada um dos seus atos.
= Dito de outro modo: em virtude da sua vontade de verdade, o homem se entrega pessoalmente à verdade da realidade, isto é, faz da verdade da realidade a fonte da configuração da realidade da sua vida pessoal!
B. A unidade efetiva entre intelecção de Deus e fé em Deus se radica na “vontade de verdade fundamental”.
1. A vontade de verdade tem dois modos: vontade de verdade “por ela mesma” e vontade de verdade “fundamental”.
a. Vontade de verdade “por ela mesma”
= As realidades que se atualizam (que estão presentes) na inteligência do homem, só como realidades-objeto, atualizam-se (estão presentes) nela “só por elas mesmas”, quer dizer, fazem presente (atualizam) na inteligência do homem aquilo que elas são, e pronto, por assim dizer.
= Pois bem, essa atualização (esse estar presentes) das realidades na inteligência do homem “só por elas mesmas”, oferece ao homem a possibilidade de ir à realidade “só pela realidade”.
= A apropriação humana desta possibilidade é a entrega pessoal do homem à realidade “só pela realidade”; neste caso, a vontade de verdade do homem é “vontade de verdade por ela mesma”: o homem opta livremente por realizar a sua vida pessoal fazendo dela “lugar” da verdade da realidade; é, entre outras coisas, a origem da ciência no sentido mais amplo do termo: o saber científico, da índole que for, deve a sua existência à vontade do homem que consiste em “vontade de verdade “por ela mesma””.
b. Vontade de verdade fundamental.
= Deus se atualiza (está presente) na inteligência do homem, não como uma realidade-objeto a mais, mas como “realidade-fundamento”, quer dizer, não se atualiza (não está presente) na inteligência do homem “só por ele mesmo”, quer dizer, só por aquilo que ele é em si mesmo, mas, unitariamente, se atualiza (está presente) na inteligência do homem “como fundamento último, possibilitante e impelente, da realidade e da realização da vida pessoal do homem”; dito de outro modo: a dimensão fundamental da realidade vital pessoal do homem e da sua realização concreta forma parte, por assim dizer, da atualidade (do estar presente) de Deus na inteligência do homem, porque Deus se atualiza (está presente) na inteligência do homem como a realidade-fundamento da realidade vital pessoal do homem e da sua realização concreta.
= Em outras palavras: não se trata de que ao atualizar-se (ao estar presente) Deus na inteligência do homem, se atualiza (está presente) só por ele mesmo, quer dizer, só por aquilo que ele é em si mesmo, e “ademais” se atualiza (está presente) como alguém que pode servir para interesses, necessidades ou conveniências do homem, sobretudo para as mais sublimes; isso não é assim; trata-se de que, precisamente, ao atualizar-se (ao estar presente) Deus na inteligência do homem, por ele mesmo, quer dizer, por aquilo que ele é em si mesmo, se atualiza (está presente) na inteligência do homem como a realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal inteira e da realização concreta dela por inteiro, e não como a realidade-fundamento da configuração de alguns traços, por importantes que forem, da sua realidade vital pessoal.
= Em virtude disso tudo, a atualização intelectiva humana da realidade de Deus (o estar presente a realidade de Deus na inteligência do homem) é a “verdade fundamental”, quer dizer, é unitariamente a “verdade da realidade-“fundamento”” (a verdade da realidade de Deus) e a “verdade da real “fundamentalidade” divina” da realidade vital pessoal do homem e da sua realização concreta!
= Por conseguinte, a atualização intelectiva humana da realidade de Deus (o estar presente a realidade de Deus na inteligência do homem) oferece ao homem duas possibilidades:
# A atualização (o estar presente) da realidade de Deus na inteligência do homem oferece-lhe a possibilidade de ir à realidade de Deus para configurar a sua realidade vital pessoal em cada um dos atos do decurso da sua vida, em, com e por a “verdade fundamental”, quer dizer, na verdade da realidade de Deus e na verdade da real fundamentalidade divina tanto da sua realidade vital pessoal humana quanto da realização concreta dela.
# Mas a atualização (o estar presente) da realidade de Deus na inteligência do homem oferece-lhe outra possibilidade: a possibilidade de “reduzir” Deus, realidade-fundamento, a simples realidade-objeto, quer dizer, a possibilidade de “deixar em suspenso” o caráter fundante da realidade de Deus e, conseqüentemente, o efetivo acontecer nele (no homem) da fundamentalidade divina tanto da sua realidade vital pessoal quanto da realização concreta dela.
= Entre essas duas possibilidades, oferecidas pela “verdade fundamental”, o homem tem que optar livremente; desse modo, o homem pode ter ou não ter “vontade de verdade fundamental”.
# Ter “vontade de verdade fundamental”:
+ Se o homem opta livremente por apropriar-se da primeira possibilidade, o homem se entrega pessoalmente à “verdade fundamental” (à verdade da realidade-fundamento, que é Deus, e à verdade da fundamentalidade divina tanto da sua realidade vital pessoal quanto da realização concreta dela), se apropria dela, a faz sua, e se realiza vital-pessoalmente nela.
+ Desse modo, a realidade vital pessoal inteira do homem ganha eo ipso, a figura da sua realidade-fundamento, de Deus: a verdade da realidade pessoal do homem fica configurada segundo a “verdade fundamental”:
- A manifestação da realidade vital pessoal desse homem é manifestação da absoluta riqueza da realidade de Deus.
- A firmeza da realidade vital pessoal desse homem é firmeza da absoluta fidelidade da realidade de Deus.
- A efetividade da realidade vital pessoal desse homem é efetividade da absoluta irrefragabilidade da realidade de Deus.
+ Então, a vontade de verdade do homem é “vontade de verdade fundamental”: o homem, entregando-se pessoalmente à “verdade fundamental” (à verdade da realidade-fundamento, que é Deus, e à verdade da fundamentalidade divina tanto da sua realidade vital pessoal quanto da realização concreta dela), faz que a realidade-fundamento passe a ser a estrutura fundamental, expressamente querida, da sua vida pessoal e da realização concreta dela; desse modo, a realidade vital pessoal do homem não só “é “deveras””, não só “é “autêntica””, mas “é “a verdade fundamental””!
# Não ter “vontade de verdade fundamental”:
+ Se o homem opta livremente por apropriar-se da segunda possibilidade, reduzir Deus, realidade-fundamento, a simples realidade-objeto, deixa em suspenso o caráter fundante da realidade de Deus e, conseqüentemente, o efetivo acontecer nele (no homem) da fundamentalidade divina tanto da sua realidade vital pessoal quanto da realização concreta dela, e, no melhor dos casos, somente se entrega pessoalmente à verdade desse Deus, mudado por ele em realidade-objeto, apenas pela verdade da realidade d’Ele, quer dizer, fazendo de si mesmo mero “lugar” da verdade da realidade de Deus “por ela mesma”.
+ Assim fazendo, o homem “distancia” Deus tanto da sua realidade vital pessoal quanto da configuração concreta dela, ficando desse modo “afastado” de Deus como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela; Deus, desse modo, fica reduzido àquilo que na história das religiões são os dii otiosi, os deuses ociosos:
- São realidades e realidades supremas, sem a menor dúvida; mas ociosos a respeito do homem; o homem, em geral, não tem com eles nenhuma relação nem de súplica nem de refúgio; um deus ocioso é um deus real, mas que não intervém na vida do homem; a vida do homem não está traçada em função desse deus.
- E isto não é próprio apenas de mentalidades primitivas; o theós do genial Aristóteles é um deus perfeitamente super-ocioso: nem se ocupa do homem, nem o homem dele, porque não pode haver relação alguma do theós com o cosmos.
- E esta é, no fundo, a situação de muitíssimos homens atuais, cada vez em maior número; o seu ateísmo é, na realidade, teísmo dum Deus ocioso: admitem a existência de Deus, duma espécie de causa primeira, admitem inclusive a intelecção estritamente demonstrativa de Deus, mas Deus é para eles meramente uma realidade-objeto que, segundo eles, não intervém na sua vida pessoal; é óbvio que, sem esta dimensão, não cabe falar de fé em sentido estrito…; esses homens têm intelecção de Deus mas não têm fé em Deus.
+ Eis a paradoxal situação do homem que não tem vontade de verdade fundamental: intelige Deus como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela, mas não se entrega pessoalmente a Deus como tal.
= Muitos pensam que o homem tem que optar livremente para entregar-se pessoalmente à realidade de Deus como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela, mas que não tem que optar livremente para não entregar-se; isso é radicalmente falso!; Deus se atualiza (está presente) na inteligência de “todo” homem (seja como for) como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela!; é o homem aquele que opta livremente por reduzir Deus, atualizado (que está presente) inexoravelmente na sua inteligência como realidade-fundamento, a simples realidade-objeto!!; essa redução é tão opcional e tão livre quanto a entrega pessoal do homem a Deus como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta!!!
2. Portanto, a vontade de verdade fundamental é a raiz da unidade efectiva entre intelecção de Deus e fé em Deus.
a. Com efeito, a “vontade de verdade fundamental” do homem faz unitariamente duas coisas:
= Faz que o homem, que inexoravelmente inteligiu Deus como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela, queira deixar que a realidade de Deus continue sendo, na sua atualidade intelectiva nele, aquilo que é, sem reduzi-la a simples realidade-objeto.
= Faz que o homem queira que Deus seja efetivamente tal qual se atualiza na sua inteligência: realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela; esse querer é a entrega pessoal do homem à realidade de Deus enquanto verdadeiro, quer dizer, a fé do homem em Deus.
b. A esta altura, é preciso fazer uma observação essencial:
= A vontade de verdade fundamental (como a vontade de verdade) é uma vontade do homem que “antecede” de alguma maneira à atualização (ao estar presente) da realidade, neste caso da realidade de Deus, na sua inteligência.
= É claro, então, que a vontade de verdade fundamental que tem o homem (aquele que a tem!) não é um “ato” da vontade, porque se o fosse, ao ser antecedente à intelecção da realidade, neste caso da realidade de Deus, a vontade de verdade fundamental poderia ser uma espécie de “pressão” exercida pela vontade sobre a inteligência para que o inteligido por ela lhe pareça ser aquilo que de antemão a vontade quer que seja!
= Então, se a vontade de verdade fundamental não é um ato da vontade do homem, o que é?; é a “atitude” da vontade do homem que está “disposto de antemão” unitariamente a duas coisas:
# Primeiro: está “disposto de antemão” a que a realidade, neste caso a realidade de Deus, seja e continue sendo, na sua atualidade intelectiva aquilo que é (e não aquilo que o homem gostaria que Deus fosse!).
# Segundo: está “disposto de antemão” a entregar-se pessoalmente à realidade, neste caso à realidade de Deus, tal qual ela é na sua atualidade intelectiva, (e não tal qual o homem gostaria que fosse!), quer dizer, está disposto de antemão a entregar-se pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro, a ter fé em Deus!
c. A vontade de verdade fundamental do homem não é “arbitrária”; com efeito, o primeiro momento dessa disposição prévia em que consiste a atitude do homem de vontade de verdade fundamental, “é racional” e o segundo, “é razoável”.
= A disposição prévia do homem de que a realidade de Deus seja e continue sendo na sua atualidade intelectiva aquilo que é (e não aquilo que o homem gostaria que Deus fosse!), quer dizer, que seja e continue sendo a realidade-fundamento da realidade vital pessoal do homem e a configuração concreta dela, é algo perfeitamente “racional”; com efeito, a correta justificação intelectiva da realidade de Deus justifica racionalmente a realidade de Deus como fundamento último, possibilitante e impelente da realização da vida pessoal do homem em cada um dos seus atos, religado enigmaticamente e constitutivamente ao poder do real (à realidade enquanto poderosa, quer dizer, à deidade); pois bem, em virtude disso, a justificação intelectiva da realidade de Deus “exclui racionalmente” a possibilidade dum “Deus ocioso”!
= A disposição prévia do homem a entregar-se pessoalmente à realidade de Deus, tal qual ela é na sua atualidade intelectiva (e não tal qual o homem gostaria que fosse!), quer dizer, a disposição prévia do homem a entregar-se pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro, a ter fé em Deus, é algo mais do que racional: é “razoável”.
# Com efeito, que o homem esteja previamente disposto a entregar-se pessoalmente Àquele que a sua intelecção lhe justificou racionalmente como a realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da configuração concreta dela, é estar disposto previamente o homem a querer em “congruência com a sua intelecção racional”.
# Pois bem, isto é mais do que racional: é justamente o que chamamos de “razoável”; com efeito, a aceitação do racional na própria vida pessoal não é por sua vez racional; é mais do que racional: é razoável!; é perfeitamente razoável que o homem faça que o racional se difunda por toda a sua realidade vital pessoal!
d. Agora bem, ainda que se demonstrasse matematicamente a necessidade de que o homem aceite incorporar Deus como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal, a aceitação efetiva de Deus por parte de cada homem, como realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal, fica sempre aberta a uma opção livre dele; daí que o homem necessite ter vontade de verdade fundamental; o homem atual está mais necessitado dela do que nunca!
e. Com efeito, a unidade possível entre intelecção de Deus e fé em Deus (quer dizer, a unidade entre a intelecção de Deus e a abertura do âmbito da possibilidade da fé em Deus), abre ao homem duas possibilidades:
= O homem pode dissociar efetivamente a sua intelecção de Deus da fé em Deus, em virtude da sua falta de vontade de verdade fundamental; então o homem intelige Deus, mas não tem fé em Deus, não aceita na sua realidade vital pessoal a fundamentalidade de Deus; assim fazendo, Deus, realidade-fundamento, fica eo ipso reduzido para o homem a ser realidade-objeto, a ser Deus-ocioso.
= O homem pode unir efetivamente a sua intelecção de Deus e a sua fé em Deus, em virtude da sua vontade de verdade fundamental; então, o homem intelige Deus e tem fé em Deus, aceita na sua vida pessoal a fundamentalidade de Deus; assim fazendo, Deus, é efetivamente a realidade-fundamento da realidade vital pessoal e da realização vital pessoal do homem; esta é a atitude humana razoável, porque está apoiada na “oferta” da sua intelecção racional de Deus; por isso, a razoabilidade da fé em Deus tem duas dimensões:
# A primeira dimensão da razoabilidade da fé em Deus é o que se chama de “credibilidade” da fé: a intelecção racional da realidade de Deus faz que crer em Deus seja algo “aceitável” pelo homem.
# Mas essa dimensão da razoabilidade da fé em Deus é insuficiente; o decisivo é a segunda dimensão da razoabilidade da fé em Deus, que temos que chamar de “credentidade” da fé em Deus: a intelecção racional da realidade de Deus faz que crer em Deus seja algo “aceitando”, quer dizer, algo “que tem que ser aceito” pelo homem!
f. Mas, por muita credibilidade e credentidade que tenha a fé em Deus, quer dizer, por muito aceitável e aceitando que seja crer em Deus, que o homem creia efetivamente em Deus penderá sempre da sua vontade de verdade fundamental como atitude firme dele!
IX
AGNOSTICISMO, INDIFERENTISMO E ATEÍSMO
A. Introdução
1. A justificação intelectiva da realidade de Deus, apesar do seu valor justificativo, força a que façamos questão da sua ressonância problemática.
a. O significado da nossa justificação intelectiva da realidade de Deus
= A opção livre da fé em Deus, como temos visto, está fundada na justificação intelectiva da realidade de Deus; pois bem, nós temos tentado fazer, no capítulo segundo, a nossa justificação intelectiva da realidade de Deus, através da via da enigmática religação do homem ao poder do real (quer dizer, à realidade enquanto poderosa, ou seja, à deidade), na configuração da sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos.
= Agora bem, com essa nossa justificação intelectiva da realidade de Deus não temos pretendido traçar “a” via pela qual os homens chegam a justificar intelectivamente a realidade de Deus, porque as vias pelas quais os homens chegam a justificar intelectivamente a realidade de Deus são infinitas; o único que temos pretendido, em definitiva, é justificar intelectivamente todas as vias pelas quais o homem chega a justificar intelectivamente a realidade de Deus.
b. Pois bem, estas considerações tem podido parecer a muitos meramente dialéticas, dado que a justificação intelectiva da realidade de Deus, como todos sabemos, envolve uma intrínseca problematicidade.
= Nós, porém, já o temos advertido expressamente: a justificação intelectiva da realidade de Deus é a explanação duma experiência (a religação) que estamos experienciando fisicamente e, portanto, tem sempre essa ressonância de problema, própria do caráter da marcha da vida pessoal do homem.
= Por conseguinte, sem tirar nada do valor justificativo da nossa justificação intelectiva da realidade de Deus, temos que atender agora a esse caráter problemático dela.
2. Três fatos mostram claramente o caráter problemático das justificações intelectivas da realidade de Deus.
a. A insatisfatoriedade das provas da existência de Deus
= A justificação intelectiva da realidade de Deus tem sido múltipla na história; são muitas as chamadas de “provas da existência de Deus”.
= Por que tantas?; justamente porque, num momento determinado, as anteriores têm sido consideradas não totalmente satisfatórias e, por isso, tem-se tentado “novas” provas.
= Ainda que nós consideramos a nossa justificação intelectiva da realidade de Deus rigorosamente concluinte, não somos tão arrogantes como para pensar que esteja isenta dessa condição de possível não satisfatoriedade completa...
b. O desentendimento pela opção de fé em Deus: tantíssimas pessoas, cada vez mais, se desentendem da opção pessoal de entrega a Deus; a opção de fé em Deus está hoje afetada por uma geral “indiferença”.
c. A despreocupação pura e simples pela questão de Deus
= São muitas as pessoas, cada vez em maior número, que nem sequer se preocupam da questão de Deus, que dizem que jamais sentiram Deus como questão.
= Este fato parece indicar que não é inexorável que o homem tenha que optar por entregar-se ou não a Deus.
3. Estes três fatos parecem (só parecem, como veremos!) contradizer tudo o que temos dito até agora neste curso; é preciso, portanto, analisar com rigor cada um deles.
a. Temos que esclarecer que vamos analisar somente as versões “sérias” do agnosticismo, do indiferentismo e do ateísmo, quer dizer, o agnosticismo, o indiferentismo e o ateísmo daquelas pessoas que têm uma “atitude sincera” perante o problema da intelecção de Deus e da fé em Deus; como veremos, essas pessoas têm vontade de verdade fundamental, ainda que sui generis…
b. Outra coisa bem diferente são as versões “frívolas” do agnosticismo, do indiferentismo e do ateísmo; delas não vamos falar neste capítulo (ainda que será inevitável fazer alguma alusão a elas), porque já o fizemos no capítulo anterior; são devidas, como temos visto, puramente e simplesmente à falta da vontade humana de verdade fundamental, ou melhor, à deturpação da sua vontade de verdade fundamental por parte de determinados homens, bastantes, por certo…
B. A insatisfatoriedade das provas intelectivas da realidade de Deus e a fé em Deus ou a não-fé em Deus: o agnosticismo
1. O problema
a. É um fato inegável que a validez das provas racionais da existência de Deus apresentadas na história não tem sido admitida por todos; mais ainda, essa validez nem sequer tem sido admitida por todos aqueles que admitem a realidade de Deus ou estão dispostos a admiti-la.
b. Este fato parece demostrar o caráter ilusório da vontade humana de verdade fundamental pelo que diz respeito à intelecção de Deus; dito de outro modo: parece ser refutado in vivo, por assim dizer, que a vontade humana de verdade fundamental leve à intelecção de Deus.
2. Pois bem, isso é falso, porque a insatisfatoriedade do processo intelectivo para a realidade de Deus não refuta que a vontade humana de verdade fundamental ponha “sempre” em marcha esse processo intelectivo para a realidade de Deus; vejamos.
a. Antes de tudo, é preciso dissipar um grave equívoco: justificação intelectiva da realidade de Deus não equivale a “demonstração” da realidade de Deus.
= A justificação intelectiva da realidade de Deus, posta em marcha inexoravelmente pela vontade humana de verdade fundamental, tem um alcance e um valor que pendem exclusivamente da inteligência humana.
# Que a vontade de verdade fundamental ponha em marcha o processo intelectivo para justificar a realidade de Deus é algo que pertence intrinsecamente e inamissivelmente a essa vontade.
# No entanto, a discussão acerca da validez provatória desse processo intelectivo, é assunto da inteligência humana e de mais nada.
= Agora bem, processo intelectivo para justificar a realidade de Deus não equivale a “demonstração” da mesma: demonstração é só “um” modo, o mais estrito e constringente de intelecção; mas o processo intelectivo para justificar a realidade de Deus é anterior, inclusive cronologicamente, a toda possível demonstração da realidade de Deus; a demonstração da realidade de Deus é só a forma mais rigorosa que esse processo intelectivo, para justificar a realidade de Deus pode, chegar a revestir.
b. Por isso, a discussão sobre o rigor ou a validez do processo intelectivo para justificar a realidade de Deus não afeta à existência desse processo; pelo contrário: a discussão sobre o rigor ou a validez do processo intelectivo para justificar a realidade de Deus é sempre uma discussão dentro já desse processo!
c. Daí que, no processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, seja imprescindível distinguir com claridade duas coisas:
= Primeiro: o fato de que a vontade humana de verdade fundamental põe inexoravelmente em marcha o processo intelectivo para justificar a realidade de Deus.
= Segundo: aquilo que a inteligência consegue inteligir de fato nesse processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, posto em marcha pela vontade humana de verdade fundamental.
d. Pois bem, o problema da validez demonstrativa ou não do processo intelectivo para justificar a realidade de Deus só concerne ao segundo ponto, mas deixa completamente em pé o primeiro ponto que é radical e anterior: a vontade humana de verdade fundamental, inexoravelmente, põe em marcha o processo intelectivo para justificar a realidade de Deus; dito de outro modo: a possível insatisfatoriedade das provas (por falta de validez demonstrativa) não refuta que haja uma vontade humana de verdade fundamental que põe em marcha o processo intelectivo para justificar a realidade de Deus.
e. Para compreender bem isto, é preciso que analisemos rigorosamente a índole do processo intelectivo para justificar a realidade de Deus.
3. A índole do processo intelectivo para justificar a realidade de Deus
a Lembremos, antes de tudo, coisas já ditas:
= O homem tem intelecção imediata do fato da sua “religação constitutiva ao poder do real” (à realidade enquanto poderosa, quer dizer, à deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos.
= Na vivência problemática, na experiência da inquietude radical da sua realização vital pessoal (o que vai ser de mim?; o que vou fazer de mim?), o homem tem também intelecção imediata do caráter “enigmático” da sua religação constitutiva ao poder do real (da realidade enquanto poderosa, quer dizer, da deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos.
b. Pois bem, a intelecção imediata do caráter enigmático da sua religação constitutiva ao poder do real (da realidade enquanto poderosa, quer dizer, da deidade) na realização da sua vida pessoal em cada um dos seus atos, “lança “fisicamente” o homem ao “âmbito ‘real’ do fundamento” dessa sua enigmática religação constitutiva ao poder do real”, quer dizer, ao âmbito fundamental real da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela; aqui é preciso salientar duas coisas:
= Primeiro: salientamos que esse lançamento é de caráter “físico”, quer dizer, não meramente de caráter “teórico ou intelectual”; com efeito, quem é lançado ao “âmbito fundamental” real da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela é o homem “todo inteiro”, ou seja, a ““física” realidade vital pessoal do homem “por inteiro”” e não só a inteligência dele; com efeito, o “âmbito fundamental” real da realidade vital pessoal do homem e da realização concreta, jamais poderá ser apenas um termo ao qual o homem se dirige só para considerá-lo teoreticamente, dado que esse “âmbito” é justamente isso: o “âmbito fundamental” real de “toda” a realidade vital pessoal do homem e da realização concreta dela “em todos e em cada um” dos seus atos; agora bem, também é certo, obviamente, que nesse lançamento físico vai incursa a inteligência do homem, aliás, geralmente vai incursa em primeira fila!
= Segundo: salientamos que o homem é lançado fisicamente ao âmbito fundamental “real” da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela; isto é muito importante tê-lo em conta!
# Ponhamos um exemplo: se um dia, passeando pelo jardim, topo com o cadáver dum homem, imediatamente sou lançado fisicamente, com a minha inteligência à cabeça, ao “âmbito “real” que fundamenta esse cadáver”: é o cadáver de quem?; por que está aqui?; alguém matou este homem?; morreu de enfarte?; etc.; dá para ver facilmente que, nessa vicissitude, sou lançado fisicamente a um âmbito perfeitamente “real”, ainda que, de momento, seja de caráter totalmente indeterminado e impreciso; ainda não sei (e talvez nunca saberei!), com efeito, qual é a realidade precisa e determinada do âmbito real que fundamenta esse cadáver, mas sei perfeitamente que há um âmbito real que o fundamenta, seja o que for.
# Pois bem, exatamente o mesmo acontece quando o homem é fisicamente lançado ao ““âmbito ‘real’ do fundamento” da sua enigmática religação constitutiva ao poder do real”, quer dizer, ao âmbito fundamental real da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela; na intelecção do homem se perfila um âmbito, uma área de realidade-fundamento da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela; é só uma área de realidade, porque ainda o homem não intelige que ou quem é precisamente e determinadamente essa realidade-fundamento dele, mas é uma área real da realidade: o âmbito da realidade que fundamenta a sua realidade vital pessoal e a realização concreta dela; e isto não é questão de raciocínios; é a estrutura física da constituição religante da realidade vital pessoal do homem e da sua realização concreta.
c. Pois bem, estando lançado fisicamente o homem ao âmbito real do fundamento da sua enigmática religação constitutiva ao poder do real, quer dizer, ao âmbito fundamental real da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela, a sua vontade de verdade fundamental força o homem a pôr em marcha um processo intelectivo para tentar precisar e determinar que ou quem é a sua realidade-fundamento, ou seja, para tentar justificar intelectivamente (seja como for) a realidade que chamamos de Deus (seja o que for ou quem for) que fundamenta a problemática religação constitutiva do homem ao poder do real.
d. Fique claro, portanto, que toda justificação intelectiva da realidade de Deus é um processo intelectivo “dentro da realidade”, quer dizer, não é uma transição duma idéia à realidade, mas um processo intelectivo que conduz desde o âmbito “real” do fundamento da realidade e da realização vital pessoal do homem, até uma “realidade-fundamento precisa e determinada”, da realidade e da realização vital pessoal do homem: Deus (seja o que for ou quem for).
e. Agora bem, por três razões, não todo processo intelectivo de justificação da realidade de Deus tem caráter de prova demonstrativa:
= Primeiro, porque, enquanto o processo intelectivo de justificação da realidade de Deus é um fato, necessitado de esclarecimento, mas fato, no entanto, a validez das provas da realidade de Deus é sempre algo discutível.
= Segundo, porque, enquanto é inexorável a intelecção do âmbito real do fundamento da realidade e da realização vital pessoal do homem, no entanto, o processo intelectivo de justificação da realidade de Deus pode, para alguém, não desembocar em nenhuma prova convincente.
= Terceiro, e sobretudo, porque o processo intelectivo de justificação da realidade de Deus pode conduzir a uma intelecção de Deus de caráter não demonstrativo, e a “duas” opções livres “opostas”:
# Alguém pode ter uma intelecção de Deus de caráter não demonstrativo e, apesar disso, optar pela fé, pela sua entrega pessoal a Deus enquanto verdadeiro.
# Alguém pode ter uma intelecção de Deus de caráter não demonstrativo e optar por suspender a fé, por não entregar-se pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro.
4. Intelecção não demonstrativa de Deus e fé em Deus
a. Pode acontecer perfeitamente que, para um homem, a sua intelecção da realidade de Deus não tenha caráter demonstrativo, e que, no entanto, creia em Deus, se entregue pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro; para ele, há intelecção, gnósis, da realidade de Deus, a qual, ainda que não conduza a uma demonstração da realidade de Deus, conduz à fé.
b. Na realidade, é o caso de quase a totalidade dos homens que crêem em Deus: eles não se fazem questão de justificar demonstrativamente a realidade de Deus, mas crêem em Deus; para eles, descobrir intelectivamente Deus não significa demonstrar a existência dele; e reciprocamente: demonstrar a existência de Deus não significaria, para eles, que essa demonstração fosse “o” caminho para descobrir Deus e para crer nele.
5. Intelecção não demonstrativa de Deus e suspensão da fé em Deus: o agnosticismo
a. Essa é a segunda possibilidade; mas há que dizê-lo energicamente, ainda que possa parecer paradoxal: o agnosticismo é um processo intelectivo de justificação da realidade de Deus: é o processo intelectivo agnóstico; com efeito, o agnosticismo consiste em três momentos essenciais:
= Ignorância de algo muito preciso: de Deus
# Como explicamos no Curso de Filosofia da Intelecção humana, ignorância não é nesciência, ou seja, carência de intelecção, mas intelecção de algo que se atualiza (que está presente) na inteligência “indeterminadamente”.
# Com efeito, a ignorância é sempre ignorância de algo muito preciso; isto é, aquele que ignora, sabe numa ou noutra medida o que é que ignora; por exemplo, o homem de Cro-Magnon não ignorava o que é uma equação diferencial, mas carecia de toda referência intelectiva a essas equações, ou seja, era nesciente, e não ignorante, das equações diferenciais; pelo contrário, ignora o que é uma equação diferencial aquele homem ao qual se explica o que são as equações diferencias, mas não consegue entender nada; a mera expressão “equação diferencial” significa, pelo fato de ser uma menção de “algo”, o que é que ignora esse homem: esse homem sabe que tem uma perfeita ignorância justamente disso: das equações diferencias; sem esse “isso”, não haveria ignorância, mas nesciência; a ignorância, portanto, é um modo de intelecção de algo, um modo de processo intelectivo para a intelecção de algo.
# Assim acontece com o agnosticismo; o agnóstico não carece de intelecção de Deus; o agnóstico tem intelecção ignorante da realidade de Deus e, portanto, sabe perfeitamente aquilo que ignora: Deus.
= Intelecção imprecisa e indeterminada de Deus
# O agnosticismo é algo a mais: não é só ignorância de algo muito preciso, mas ignorância de algo que é ignorado porque “intelectivamente não se consegue encontrar”; o agnóstico ignora algo porque não o encontra intelectivamente.
# E o que é que o agnóstico não consegue encontrar intelectivamente?; o agnóstico, no seu processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, não consegue encontrar o que ou qual é a realidade precisa e determinada em que consiste o real âmbito fundamental da sua realidade vital pessoal e da realização concreta dela; o agnóstico ignora algo real (a realidade precisa e determinada em que consiste o real âmbito fundamental da sua realidade e da sua realização) porque, apesar de que intelige que é uma área da realidade (o real âmbito fundamental da sua realidade e da sua realização), resulta-lhe algo real mas completamente impreciso e indeterminado.
# Em outras palavras: para o agnóstico, o âmbito da fundamentalidade da sua realidade e da sua realização é uma área da realidade, mas que não consegue inteligi-la como sendo Deus; dito de outro modo: o agnóstico intelige Deus como sendo realmente aquilo que não consegue inteligir o que é precisamente e determinadamente na realidade; quer dizer: para o agnóstico, Deus é algo real, mas é real de modo completamente impreciso e indeterminado.
# Por conseguinte, o agnosticismo não é completamente alheio à realidade de Deus nem à intelecção dele (como sempre se pensa); o agnosticismo só é alheio à intelecção precisa e determinada da realidade de Deus; assim pois, a a-gnósis do agnóstico não é não-inteligência de Deus, mas intelecção mais ou menos imprecisa e indeterminada de Deus; a intelecção imprecisa e indeterminada de Deus, própria do agnóstico, é algo muito distinto da não-intelecção de Deus!
= Frustração da busca intelectiva de Deus
# O agnosticismo é ignorância e intelecção imprecisa e indeterminada de algo que inexoravelmente o agnóstico busca intelectivamente, mas que não encontra.
# O agnóstico, realizando a sua vida pessoal, intelige o âmbito real fundamental dela, e nesse âmbito ouve a notícia e apalpa a nua presença de Deus; por isso busca intelectivamente esse Deus de quem ouve a notícia e apalpa a nua presença, mas, na sua busca intelectiva de Deus, não consegue que Deus ganhe a figura precisa e determinada da sua realidade.
# Daí que a busca intelectiva agnóstica de Deus seja um ouvir a notícia de Deus e um apalpar a nua presença de Deus, mas sem encontrá-lo precisamente e determinadamente; desse modo, o agnosticismo é “frustração” da busca intelectiva de Deus.
b. Na sua ignorância de Deus, na sua intelecção imprecisa e indeterminada de Deus, e na frustração da sua busca intelectiva de Deus, acontece a suspensão da fé em Deus por parte do agnóstico.
= Muitos homens, apesar de experimentarem, como o agnóstico, a sua ignorância de Deus, a sua intelecção imprecisa e indeterminada de Deus, e a frustração da sua busca intelectiva de Deus, optam livremente pela fé em Deus, por crer em Deus.
= O agnóstico, no entanto, experimentando essas mesmas circunstâncias, opta livremente por não crer em Deus, por não ter fé em Deus.
c. Assim, a vontade de verdade fundamental do agnóstico fica reduzida a uma só das dimensões essenciais da vontade humana de verdade fundamental; a vontade de verdade fundamental do agnóstico é pura e simples “vontade de buscar”.
C. O desentendimento tanto da intelecção de Deus quanto da fé em Deus: o indiferentismo
1. O fato do indiferentismo
a. Grandíssimo número de pessoas vivem desentendidas da questão de Deus, parecem não realizar nenhum processo intelectivo para justificar a realidade de Deus nem levar a termo nenhuma opção positiva ou negativa a respeito da fé em Deus.
b. Dado que a vontade humana de verdade fundamental põe em marcha inexoravelmente esses dois momentos (processo intelectivo para justificar a realidade de Deus e opção positiva ou negativa a respeito da fé em Deus), as vidas pessoais daqueles que se desentendem da questão de Deus parecem ser vidas sem vontade de verdade fundamental; é isso assim?; é o que temos que ver.
c. Mas esclareçamos, antes de tudo, uma coisa: desentender-se do problema do fundamento divino da própria vida pessoal pode ser, em muitos casos, um problema de “frivolidade”, quer dizer, de não ter vontade de verdade fundamental (e nunca esqueçamos que também muitos crentes em Deus vivem a sua fé de modo totalmente frívolo!); mas não tem por que ser assim forçosamente em todos os casos; pode haver perfeitamente também um indiferentismo “sério”, como vamos ver.
2. A essência do indiferentismo
a. Processo intelectivo para justificar a realidade de Deus que desemboca na “indiferença”.
= Dentro do processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, a inteligência do homem examina a índole do âmbito real fundamental da sua realidade e da sua realização; nesse exame, a inteligência do homem descobre a “diferença” que há entre realidade-objeto e realidade-fundamento, ou seja entre um Deus-ocioso e um Deus-fundante da sua realidade e da sua realização.
= Mas pode perfeitamente acontecer que a inteligência de algum homem, no seu processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, não consiga nem sequer chegar a inteligir essa “diferença”; nesse caso, o processo intelectivo desse homem para justificar a realidade de Deus desemboca justamente nisso: na “in-diferença”, na índole “in-diferente” do âmbito real fundamental da sua realidade e da sua realização.
= Por conseguinte, é falso que o indiferentismo careça de processo intelectivo para justificar a realidade de Deus; pelo contrário: o homem seriamente indiferente a respeito da questão de Deus, tem um peculiar processo intelectivo para justificar a realidade de Deus: o processo intelectivo para justificar a realidade de Deus que desemboca na “in-diferença” entre um Deus-ocioso e um Deus-fundante.
= Dito de outro modo: enquanto o agnóstico só suspende a fé em Deus, o indiferente, no seu processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, suspende até a diferença intelectiva que há entre um Deus-ocioso e um Deus-fundante; conseqüentemente, o indiferente nem sequer se coloca a questão de se sabe ou não sabe se Deus existe, e de se sabe ou não sabe o que é esse tal de Deus, se existe, porque, em todo o seu processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, Deus é, puramente e simplesmente, um “seja Deus o que for”!
= Este “seja Deus o que for” é a estrita intelecção que tem o indiferente daquilo que é precisamente e determinadamente a realidade do âmbito real fundamental da realidade da sua vida pessoal e da realização concreta dela.
b. Opção livre pela “despreocupação” a respeito da fé ou não-fé num Deus que está aí “indiferentemente”
= O indiferente vive despreocupado, ademais, da fé ou não-fé em Deus; poderia parecer, então, que vive sem fazer nenhuma opção livre a respeito de Deus; pois bem, isso é mera aparência.
= Assim como a indiferença não consiste em carência de processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, como acabamos de ver, também não consiste em carência de opção livre a respeito da realidade de Deus.
= Com efeito, despreocupar-se a respeito da fé ou não-fé em Deus não é não fazer nenhuma opção; tudo pelo contrário: despreocupar-se da fé ou não-fé em Deus é fazer a opção livre positiva de “não-preocupar-se” de crer ou não-crer num Deus que está aí indiferentemente; o indiferente opta livremente por desentender-se dum Deus que intelige como sendo indiferentemente Deus-ocioso e Deus-fundamento.
= Portanto, o que se desentende do problema de Deus não só faz um estrito processo intelectivo para justificar a realidade de Deus, mas faz também uma estrita opção livre: apropria-se optativamente e livremente da possibilidade de realizar a sua vida pessoal despreocupando-se da realidade precisa e determinada do âmbito real fundamental da sua realidade e da sua realização, que ele intelige como realmente in-diferente.
c. Assim, a vontade de verdade fundamental do indiferente fica reduzida a uma só das dimensões essenciais da vontade humana de verdade fundamental; a vontade de verdade fundamental do indiferente é pura e simples “vontade de viver”.
= In-diferença e des-preocupação, na sua unidade intrínseca e radical, são os dois momentos duma atitude da vontade humana de verdade fundamental muito precisa: o homem indiferente não se desentende de Deus como se desentende dum problema científico ou especulativo, ou como se desentende de realizar algo prático, como uma viagem, por exemplo, porque o homem seriamente indiferente não se desentende de Deus por falta de curiosidade ou de capacidade.
= Com efeito, todo homem está fisicamente lançado ao âmbito real fundamental da sua realidade e da sua realização; dito de outro modo: a dimensão fundamental da realidade vital pessoal do homem e da concreta realização dela é algo inexorável; portanto, o homem que opta livremente por desentender-se dessa sua dimensão fundamental, opta livremente por um modo “positivo” de viver a fundamentalidade da sua vida pessoal: viver despreocupado da realidade precisa e determinada da fundamentalidade da sua vida pessoal, fundamentalidade que ele intelige como sendo realmente in-diferente.
= Por isso, como modo que é de viver a fundamentalidade da própria vida pessoal, o desentendimento humano de Deus tem dois aspectos:
# É vontade de deixar-se viver.
+ Por um lado, o desentendido de Deus, isto é, da fundamentalidade da sua vida pessoal, vive fundamentalmente abandonado “a seja o que for”; portanto, não é que o desentendido de Deus vive sem fundamentalidade; o que sim acontece é que o desentendido de Deus vive positivamente numa fundamental indiferença, coisa muito distinta.
+ Agora bem, viver em fundamental indiferença é o que precisamente chamamos de “deixar-se viver”, no sentido dum viver entregando-se pessoalmente à indiferente fundamentalidade da própria vida pessoal.
+ Podemos dizer, portanto, que o indiferente tem uma espécie de fé: uma fé indiferente e despreocupada!
# É vontade de viver.
+ A vontade de “deixar-se viver” própria do desentendido de Deus, é uma vontade de “deixar-se viver” mas só a respeito do fundamento da própria vida pessoal; portanto, em si mesma, a vontade de “deixar-se viver” é uma decidida “vontade de viver”, ainda que indiferentemente fundamentado!
+ Dito de outro modo: o desentendido de Deus “vive deixando-se viver” a respeito do fundamento da sua vida pessoal, porque, por cima da sua indiferença fundamental, o que faz é afirmar energicamente que vive e que quer viver!; ou seja: o seu desentender-se de Deus é uma atitude que o desentendido de Deus toma “em aras da vida”: opta livremente por despreocupar-se dum Deus que intelige como indiferente, precisamente pela sua “vontade de viver”!; ele quer que a indiferença da realidade fundamental da sua vida não seja um impedimento para a sua própria vida!
d. Pois bem, podemos concluir esta análise do indiferentismo dizendo que o deixar-se viver e a vontade de viver, próprios do indiferente, definem uma única vontade dele: a sua “vontade de vida penúltima”!; tendo vontade de viver, mas de viver deixando-se viver pelo que diz respeito ao fundamento da sua vida pessoal, que ele intelige como “seja o que for”, o desentendido de Deus, o homem indiferente, “vive na superfície de si mesmo”: a sua vida pessoal é “vida constitutivamente penúltima”.
D. O ateísmo
1. O fato do ateísmo
a. Cada vez são mais numerosas as pessoas que nem sequer se despreocupam do problema de Deus, porque, segundo dizem, Deus jamais foi problema para elas.
= A vida dessas pessoas, como a de todas as pessoas, está tecida de seguranças e de incertezas, de facilidades e de dificuldades, de conquistas e de fracassos; portanto, a vida delas coloca-lhes problemas, e muito graves seguramente, mas se trata de problemas dentro da vida mesma, quer dizer, de problemas intravitais.
= No entanto, tomada por inteiro, a vida não parece colocar-lhes problema nenhum: para elas, ao parecer, a sua vida é o que é e mais nada: é uma vida que parece repousar sobre si mesma; é uma vida a-téia.
# Não se trata duma vida atéia que é “contra” a realidade de Deus, porque ser “contra” Deus não é algo essencial ao ateísmo em si mesmo: cada dia é maior o número daqueles cujo ateísmo não vai contra nada nem contra ninguém.
# Trata-se da vida vivida em si mesma e por si mesma e mais nada; é uma vida a-téia no sentido meramente privativo do prefixo “a”.
b. Por conseguinte, a respeito dessas pessoas, parece não ter cabimento falar não só de opção livre pela fé ou não fé em Deus, mas nem sequer de vontade de verdade fundamental!
c. Daqui uma possível (e falsíssima!!!) conclusão:
= Costuma pensar-se, então, que, dado que a vida é algo que inegavelmente existe, toda apelação a uma realidade fundante dela, fora ou por cima dela, é problema só do não-ateu; dito de outro modo: pensa-se que o ateísmo é a atitude humana primária que não precisa justificação alguma, e que só toda outra atitude a respeito de Deus, em qualquer das suas formas (crença [politeísta, panteísta, monoteísta], agnosticismo, despreocupação), necessita justificação; em outras palavras: a conditio possidentis, como diriam os juristas, estaria do lado da vida a-téia, do ateísmo; o resto seriam opções e, em conseqüência, elas e só elas, tem que ser justificadas; (mas o ateísmo não).
= É assim tudo isso?; absolutamente não!!!; para mostrar a falsidade descomunal de todas essas afirmações temos que analisar com rigor o que é o ateísmo, coisa muito mais difícil de fazer do que parece a primeira vista; vamos tentá-lo!
2. A essência do ateísmo
a. É radicalmente falso que para o ateu a vida inteira, quer dizer, a vida tomada em si mesma e por si mesma, não seja problema; a vida de “todo” homem, tomada por inteiro, acontece na problematicidade da sua religação constitutiva ao enigmático poder do real, da realidade enquanto poderosa, da deidade.
= Pensa ingenuamente o ateu que ele só tem problemas intra-vitais, mas que a sua vida, tomada por inteiro, não é problema para ele.
= Pois bem, isso é metafisicamente impossível!
# Com efeito, a vida de todo homem, tomada por inteiro, não é outra coisa que a realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida; isto é um fato, quer dizer, algo observável por qualquer um.
# Também é um fato que o homem só pode realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, apoiado ultimamente, possibilitantemente e impelentemente, na realidade enquanto tal, quer dizer, na realidade seja das coisas, seja dos demais homens, seja dele mesmo.
# Daí que todo homem experimente inexoravelmente este outro fato inconcusso: a realidade (das coisas, dos demais homens e dele mesmo) é algo que domina sobre ele, é algo que tem poder sobre ele, na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida; é um fato que o homem experimenta que só pode realizar a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, religado constitutivamente ao poder do real, quer dizer, à realidade enquanto poderosa, ou seja, à deidade.
# Também é um fato a constitutiva problematicidade da realização da figura concreta da realidade vital pessoal de todo homem em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, em virtude de estar constitutivamente religada a algo que é constitutivamente enigmático: o poder do real, a realidade enquanto poderosa, a deidade:
+ O poder do real, a realidade enquanto poderosa, a deidade, não é nada fora do poder da realidade das coisas, dos demais homens e do homem mesmo.
+ Mas, ao mesmo tempo, o poder do real, a realidade enquanto poderosa, a deidade, é mais do que o poder da realidade das coisas, dos demais homens e do homem mesmo; em definitiva, o poder do real, da realidade enquanto poderosa, da deidade excede o poder da realidade totalidade das coisas, dos demais homens e do homem mesmo.
+ Eis o enigma do poder do real, da realidade enquanto poderosa, da deidade: em que se funda esse poder do real (essa realidade enquanto poderosa, essa deidade), que não pode estar fundado no poder da realidade das coisas, dos demais homens e do homem mesmo, porque é mais do que ela, e que também não pode estar fundado na realidade da totalidade das coisas, dos demais homens e do homem mesmo, porque excede a ela?
# Finalmente, também é um fato que a experiência da sua problemática religação ao enigmático poder do real na realização da figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, lança fisicamente todo homem (também o homem ateu!!!) a um processo intelectivo para justificar a realidade do que chamamos de Deus (seja o que for ou quem for), quer dizer, do fundamento do enigmático poder do real, religado constitutivamente e problematicamente ao qual todo homem realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida.
b. Portanto, não é que o homem ateu não faça um processo intelectivo para justificar a realidade de Deus (seja o que for ou quem for); o que acontece é que o homem ateu resolve esse processo a seu modo: ele encontra que o fundamento do enigmático poder do real, religado constitutivamente e problematicamente ao qual ele realiza a figura concreta da sua realidade vital pessoal em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, é “a pura faticidade do poder do real”!
= Enquanto uns homens inteligem que o fundamento do poder do real e, portanto, da sua realidade e da sua realização, é uma realidade absolutamente absoluta, isto é, Deus, os homens ateus inteligem que o poder do real “é um fato e nada mais que um fato”, sem necessidade de fundamento ulterior!
= A pura faticidade do poder do real como fundamento da realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, é a essência do ateísmo!
= Dito de outro modo: a vida do homem ateu não é apenas a vida dele em si mesma e por si mesma, mas uma vida que repousa sobre a pura faticidade do poder do real.
c. Daí duas conseqüências.
= Primeiro: é claro que na pessoa atéia acontece um processo intelectivo sobre o fundamento da totalidade da sua vida e que, talvez sem dar-se conta, resolve esse processo com a solução da pura faticidade do poder do real.
= Segundo: é claro também que admitir a pura faticidade do poder do real como fundamento da realização da figura concreta da realidade vital pessoal do homem em cada um dos atos, por triviais que forem, do decurso da sua vida, é tão “interpretação intelectiva” quanto admitir a realidade de Deus; ambas interpretações intelectivas, teísta e ateísta, precisam ser justificadas!
# Aquele que admite a realidade de Deus como fundamento da realidade e da realização do homem, tem que dar as suas razões; assim o temos feito.
# Mas também o ateu, que admite a faticidade do poder do real como fundamento da sua realidade e da sua realização, deve dar as suas razões!; ficamos aguardando!!!
# O ateísmo, portanto, não é a atitude primária, nem tem a conditio possidentis, mas tem que justificar-se intelectivamente exatamente igual que o teísmo!
# Teísmo e ateísmo são dois modos de concluir o processo intelectivo a respeito do problema do fundamento do poder do real e, portanto, da realidade e da realização do homem.
# A pura faticidade do poder do real como fundamentalidade da vida pessoal humana não é nenhum factum, mas uma interpretação intelectiva necessitada de justificação como qualquer outra!!!
d. Há que dizer energicamente, ademais, que o ateísmo é uma “opção”, ou seja, que o ateu, exatamente igual que o teísta, leva a termo uma opção!
= Com efeito, fundamentar a própria vida pessoal na faticidade do poder do real é uma possibilidade, entre outras, de fundamentação da própria realidade vital pessoal e da realização concreta dela.
= Pois bem, o ateu se apropria dessa possibilidade por opção livre; desse modo opta livremente por realizar a realidade da sua vida pessoal como algo que se basta a si mesmo; a opção pessoal do ateu é uma opção livre pela “auto-suficiência” da própria vida pessoal; o ateísmo é, neste sentido, uma opção livre por uma vida pessoal que é o que é e como é, e mais nada.
= Tem mais; enquanto opção livre pessoal, a opção do homem ateu é entrega pessoal à faticidade do poder do real enquanto verdadeiro, ou seja, é “fé” na pura faticidade do poder do real; o ateísmo é precisamente “a fé do ateu”, “a religião do ateu”!: o ateu se entrega pessoalmente ao poder do real (à realidade enquanto poderosa, à deidade) enquanto verdadeiro, como única e suficiente realidade-fundamento da sua realidade e da sua realização.
e. Assim, a vontade de verdade fundamental do ateu fica reduzida a uma só das dimensões essenciais da vontade humana de verdade fundamental; a vontade de verdade fundamental do ateu é pura e simples “vontade de ser”.
= A vontade de verdade fundamental do ateu é uma vontade que recai formalmente sobre a realidade vital pessoal do homem como realidade “absoluta” sui generis.
# A faticidade autosuficiente da realidade vital pessoal do ateu não significa só que ele se baste a si mesmo para a trama das suas situações e atuações vitais; com efeito, viver pessoalmente não consiste no decurso da vida pessoal, mas naquilo que tem de vida pessoal esse decurso, isto é, em auto-possuir a própria realidade configurando-a concretamente em cada um dos atos do decurso da própria vida; por conseguinte, a faticidade autosuficiente da realidade vital pessoal do ateu significa, sobretudo, que esse seu autopossuir a sua própria realidade configurando-a concretamente em cada um dos atos do decurso da sua vida é algo que começa e termina nele mesmo.
# Pois bem, é claro que essa autosuficiência em faticidade do ateu é um modo de ser realidade absoluta sui generis.
= A vontade de verdade real fundamental do ateu é uma vontade que recai sobre a realidade vital pessoal do homem como realidade “relativamente” absoluta sui generis.
# O ateu sabe perfeitamente que um dia nasceu e que um dia morrerá; mais ainda, crê que a sua realidade vital pessoal é pura faticidade e mais nada.
# Pois bem, é claro que pura faticidade é um modo de “relatividade” do caráter relativamente absoluto da realidade vital pessoal do homem.
# Neste sentido, o ateísmo é uma vontade de verdade fundamental que concerne à realidade vital pessoal do homem como algo “ganhado” no decurso da vida e, portanto, como algo “relativamente” absoluto.
= Em definitiva, o ateu tem vontade de verdade fundamental que consiste em “vontade de ser” relativamente absoluto sui generis, quer dizer, considerando o caráter relativamente absoluto do homem como faticidade autosuficiente; mas é evidente que isso é uma “interpretação” que livremente faz o ateu do caráter relativamente absoluto do homem, e que terá que justificar…; estamos aguardando!
X
A CONCREÇÃO DA FÉ
A. A “minha” fé
1. Toda entrega pessoal do homem é essencialmente concreta.
a. Todo ato de entrega pessoal do homem é um ato da realidade humana “por inteiro”, com todas as notas que possui, tanto as suas notas meramente físicas quanto as suas notas físicas por apropriação (=morais).
b. Portanto, a entrega pessoal do homem é sempre um ato essencialmente “concreto”, no sentido de que envolve “toda a realidade que o homem é e toda a realidade que o homem chegou a ser por apropriação”
c. Isto é essencial na fé em Deus, quer dizer, na entrega pessoal do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, como vamos ver.
2. A fé é essencialmente concreta; a fé é essencialmente “a “minha” fé”.
a. Como toda entrega pessoal do homem, a entrega pessoal do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira, isto é, a fé, é sempre e só uma fé concreta.
b. A essencial concreção da fé consiste nos modos peculiares e próprios segundo os quais a fé do homem nunca é “a” fé, mas “a “minha” fé”.
3. Caracteres essenciais da concreção da fé, da fé enquanto “minha”
a. A concreção da fé é uma concreção constitutiva dela e não meramente funcional.
= Quer dizer, a concreção da fé não é uma concreção meramente prática, digamos assim, como se as peculiaridades da fé de cada homem consistissem apenas nos modos com os quais cada pessoa “funciona” na sua fé.
= A concreção da fé é algo muito mais fundo que o meramente “funcional”; é algo “constitutivo” da fé da pessoa crente.
b. A concreção da fé é uma concreção intrínseca e não meramente extrínseca.
= A concreção da fé não consiste apenas nas diferenças do modo pessoal de ser de cada crente, as quais, em definitiva, são alheias à fé em si mesma; se assim fosse, a concreção da fé seria apenas extrínseca, porque essas diferenças concernem à fé apenas “concomitantemente”, assim como, por exemplo, a idade acompanha à obra dum cientista, mas não forma parte intrínseca da obra científica dele.
= A concreção concerne à estrutura mesma da fé enquanto tal; a concreção da fé é uma concreção intrínseca.
# Com efeito, a fé, como temos visto, não é a mera admissão dumas verdades acerca de Deus, mas a entrega pessoal da pessoa inteira do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeira.
# Pois bem, em virtude disso, as notas concretas da realidade pessoal inteira que se entrega pessoalmente a Deus não “acompanham” a fé dela, mas são um momento intrínseco da constituição da sua fé.
c. A concreção da fé consiste em que cada pessoa se entrega pessoalmente ao acontecer da sua fundamentalidade divina “ao seu modo”, quer dizer, de maneira “própria”.
= Certamente a fé é sempre “a” mesma, quer dizer, é sempre fé e não outra coisa; mas também é certo que a fé nunca é “o” mesmo.
= Assim, a “minha” fé não é a “tua” fé, não enquanto fé, porque ambas são fé, mas enquanto que a minha fé é “minha” e a tua fé é “tua”.
= A fé enquanto fé não é algo abstrato que se “concretiza” em cada pessoa; a fé enquanto fé é o momento idêntico de entrega pessoal a Deus de pessoas “radicalmente concretas”.
= Por conseguinte, ser “minha” é um momento constitutivo da fé em Deus; dito de modo paradoxal: que distintas pessoas tenham a mesma fé não é questão de que uma mesma fé seja vivida por distintas pessoas, mas é questão de que a fé de distintas pessoas constitua uma mesma fé…; e isto não é uma sutileza mental; a história está aí como testemunha irrecusável do que estamos dizendo...
4. É preciso evitar dois escolhos que sempre lesaram à concepção da fé.
a. A concepção extrinsecista da concreção da fé
= É a concepção da fé que a considera como algo que repousa sobre si mesma e que, portanto, não faz senão aplicar-se externamente às situações concretas das pessoas.
= Se assim fosse, os ingredientes da concreção da fé só seriam a vivência pessoal de cada crente de algo prévio a todos os crentes, isto é, da fé em si mesma.
= Isto é, em definitiva, um gigantesco extrinsecismo da concreção da fé, totalmente inaceitável, como vamos ver.
b. A concepção subjetivista da fé
= É a concepção da fé concebida como algo que radica apenas nas estruturas mentais de cada pessoa.
= Se assim fosse, a fé seria apenas um impulso cego ou, ao máximo, uma atitude subjetiva que emerge das estruturas mentais de cada pessoa; isto é ainda muito mais inaceitável, como vamos ver!
5. O problema da concreção da fé, da fé como “minha”
a. O problema de concreção da fé não é questão nem de extrinsecismo nem de subjetivismo, porque, de entrada, como temos visto, a fé emerge das “estruturas vitais-pessoais da realidade do homem” constitutivamente religado ao poder do real na realização da sua realidade vital pessoal.
b. Daí que a articulação intrínseca da realidade da fé e da concreção da fé é justamente o problema da concreção da fé, da fé como “minha”, que temos que analisar.
B. Estrutura da fé enquanto “minha” fé
1. A fé é minha por três razões.
a. Em primeiro lugar, a fé, na sua radical concreção, é concreta por razão dos caracteres próprios da pessoa que se entrega pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro; essa pessoa que se entrega a Deus não é “a” pessoa de “o” homem, mas “esta” pessoa humana na sua intrínseca concreção; dito de outro modo: quem crê não é “o” homem, mas “este” homem, não é “a” pessoa, mas “esta” pessoa.
b. Em segundo lugar, a fé, na sua radical concreção, é concreta por razão das modalidades peculiares que reveste a entrega pessoal mesma de cada qual.
c. Em terceiro lugar, e sobretudo, a fé, na sua radical concreção, é concreta por razão do modo próprio como cada qual “vê, na fé, Deus como fundamentalidade da sua vida pessoal”, modo que pende essencialmente do modo concreto segundo o qual cada um está vertido para Deus desde a sua concreta realidade vital pessoal; a fé, com efeito, é essencialmente pessoal, e a pessoa é sempre “minha” pessoa, a “minha intransferível” pessoa, absolutamente insubstituível pela pessoa dos outros.
2. A concreção da fé enquanto minha por essas três razões
a. A fé é fé ao meu modo de ser pessoa, ao modo da minha pessoa.
= Em primeiro lugar, pelo que concerne à dimensão individual de cada pessoa.
# Cada pessoa é pessoa ao seu modo, quer dizer, cada pessoa, ao longo da sua vida, configura de modo próprio a sua realidade vital pessoal.
# Isto é essencial para a fé que é entrega “da minha pessoa” à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeiro.
# Se sempre fosse tido em conta que a índole concreta da pessoa que crê é ingrediente constitutivo da sua fé, eliminar-se-iam tantas considerações erradas que se fazem sobre a fé em virtude dos caracteres peculiares individuais das pessoas.
+ Diz-se, por exemplo, que tal pessoa crê “porque” é um neurótico; pois bem, isto é metafisicamente impossível.
+ O que é verdade é que alguém pode “crer neuroticamente”, que alguém pode ter uma “fé neurótica”, que pode ser um “crente neurótico”; com efeito, a personalidade neurótica é uma personalidade distinta, uma personalidade “minha”, com suas neuroses, com suas taras, com suas qualidades e disposições, etc.; essa personalidade concreta é a que se entrega pessoalmente a Deus enquanto verdadeiro.
= Em segundo lugar, pelo que concerne à dimensão social e histórica de cada pessoa.
# Toda fé tem ademais uma concreção bem determinada em virtude das dimensões sociais e históricas de cada pessoa; não é o mesmo a fé de qualquer religião em sociedades distintas, nem numa mesma sociedade que vai mudando no tempo e no espaço; isso seria quimérico; por exemplo: o antigo povo de Israel cria certamente em Jahveh, mas desde e com umas condições sociais e históricas determinadas: era uma nação teocrática, etc.
# Pois bem, nada disso é alheio à fé; não só, mas é que sem isso não poderia haver fé; são ingredientes formais e constitutivos da fé; por exemplo:
+ O povo de Israel sentiu-se povo eleito, mas não desde o princípio e sim numa longa história: refletiu sobre muitos episódios isolados da sua vida como povo, e descobriu neles a unidade que em todos eles podia haver; assim apareceu a idéia de povo escolhido.
+ Pois bem, essa história é uma concreção da fé; por isso, não é um acaso que a fé em Jahveh não começasse a ser pregada dum modo universal desde um princípio, mas depois duma experiência histórica.
# Em geral pode dizer-se que a história das religiões é a experiência que os povos fizeram de Deus ao longo da história e, em nosso caso, é a história da fé concreta desses povos.
b. A fé é fé ao meu modo de entrega, ao modo da minha entrega.
= Há pessoas prontas e pessoas lerdas em entregar-se; há pessoas muito precipitadas em ter fé; há outras que não o são; há quem tem uma fé ilustrada; outros menos; há quem tem uma fé forte; há quem tem uma fé fraca, etc.
= São distintos modos de entrega; neles acontece precisamente a entrega da pessoa concreta do homem à realidade pessoal de Deus enquanto verdadeiro.
c. A fé é fé ao meu modo de idéia de Deus, ao modo do meu Deus.
= Cada um tem ou pode ter a “sua idéia” de Deus, termo da sua fé; não se trata só de que um seja politeísta e outro monoteísta, por exemplo; trata-se de que dentro do monoteísmo cristão, por exemplo, um santo pode ter uma idéia de Deus distinta à que tem outro, porque Deus não só é “Deus”, mas é “meu Deus”.
= Vemos Deus desde o ponto de vista da verdade pessoal de Deus, mas sempre referido essencialmente às dimensões pelas quais Deus se doa a mim; dito de outro modo: na sua definição, a fé pode ser igual para todos, mas a fé vivida não é igual para todos!
= Há quem vê Deus, sobretudo e em primeira linha, como misericordioso, como caritativo; há quem o vê como ente supremo, etc.; cada um tem, neste sentido, seu Deus, o Deus dele; e isto é verdade a fortiori, se consideramos a idéia de Deus nas distintas religiões, etc.
= Mas atenção: isto não é subjetivismo, e sim subjetualismo, que são coisas abismalmente diferentes, tão diferentes, que a primeira (o subjetivismo) é uma pura quimera!; vejamos:
# A ciência e a filosofia modernas chamam frivolamente de “subjetivo” tudo aquilo que é relativo a um sujeito, por exemplo, as qualidades sensíveis (cor, calor, etc.), porque consideram que são algo relativo aos órgãos sensitivos do sujeito, e dependente deles.
# Pois bem, há que distinguir com todo rigor entre subjetual e subjetivo.
+ Subjetual é tudo aquilo que é próprio e depende (do modo que for) dum sujeito, dum “mim”; subjetual é tudo aquilo que é meu, “de mim”.
+ Subjetivo é tudo aquilo que é próprio e depende “só” dum sujeito e que não tem nada a ver com a realidade, por assim dizer; é possível que haja algo subjetivo, neste sentido?; achamos que não.
# Portanto, quando dizemos: “meu Deus!”, estamos dizendo, entre outras coisas, que Deus “enquanto meu”, enquanto Deus “de mim”, é o momento subjetual do “meu Deus”.
+ Não queremos dizer, em absoluto, que o meu Deus seja subjetivo, isto é, que seja só uma espécie de caráter meu, algo que depende só de mim; seria absurdo!
+ Queremos dizer que o meu Deus é Ele, não mim (não é subjetivo), e que só a dimensão de Deus enquanto “Deus de mim” é minha (é subjetual).
= Assim pois, o homem vê a sua realidade-fundamento, que é Deus, com aspectos distintos; o momento de fidelidade de Deus, por exemplo, não está vivido por igual no povo de Israel e no cristianismo; há uma enorme diferença entre a concepção israelita de que Jahveh pertence antes de tudo ao povo de Israel, e a de Jesus Cristo de que ser verdadeiro israelita é fundar-se em Jahveh; a colisão destas duas concepções significou nada menos que a crucifixão de Jesus Cristo…
= O percurso histórico da idéia de Deus em Israel e nos distintos povos, mostra até que ponto é essencial a consideração da concreção da fé.
XI
O HOMEM É EXPERIÊNCIA DE DEUS
A. Deus tem querido livremente ser experiência do homem.
1. Deus doa em experiência ao homem a sua verdade pessoal divina, constituindo-o como realidade pessoal relativamente absoluta.
a. Deus tem querido livremente ser realidade fundamental de todas as realidades, estando transcendentemente, intramundanamente e fontanalmente em todas elas constituindo-as como reais.
b. Esta presença transcendente, intramundana e fontanal de Deus nas realidades constituindo-as como reais, é o divino “dar de si” realidade: Deus constitui as realidades como reais “dando de si” a elas a realidade em que Ele consiste absolutamente.
c. Pois bem, tratando-se dos homens, realidades pessoais, o “dar de si” de Deus, é “doação pessoal”: Deus se doa pessoalmente ao homem constituindo-o como “sua própria realidade”, quer dizer, como realidade pessoal, como pessoa; e o estar presente transcendente, intramundano e fontanal de Deus no homem que o constitui como realidade pessoal, enquanto estar presente (atualidade) de Deus na inteligência pessoal do homem, é a verdade pessoal de Deus, Deus enquanto verdadeiro.
d. Por conseguinte, a doação pessoal de Deus ao homem é, antes de tudo, doação pessoal de Deus ao homem da sua absoluta verdade pessoal, que é a manifestação da absoluta riqueza, a firmeza da absoluta fidelidade e a efetividade da absoluta irrefragabilidade da sua realidade pessoal divina; o homem, fundamentado ultimamente, possibilitantemente e impelentemente na doação pessoal de Deus a ele, configura a sua realidade pessoal em cada um dos atos do decurso da sua vida.
e. Agora bem, enquanto animal que é, a realidade pessoal do homem é constitutivamente experiencial; daí que a doação pessoal de Deus ao homem seja forçosamente doação experienciável, doação em experiência.
f. Por conseguinte, dado que a doação pessoal de Deus ao homem é aquilo que “constitui o homem como realidade pessoal, como pessoa”, e dado que a doação pessoal de Deus ao homem é “doação em experiência”, a experiência da doação pessoal de Deus ao homem não é consecutiva à realidade pessoal dele (não é que o homem é a realidade pessoal que é, e “depois” tenha experiência de Deus), mas constitutiva da realidade pessoal do homem (o homem é realidade pessoal sempre e só sendo experiência de Deus).
g. Daí que possamos dizer com todo rigor que Deus, não em si mesmo, mas enquanto doador pessoal da realidade pessoal do homem, é “experiência do homem”.
2. A doação pessoal de Deus em experiência a todos os homens, pode revestir em alguns casos, por livre iniciativa de Deus, formas particulares.
a. Doação pessoal de Deus ao homem “em graça”
= Deus, por livre iniciativa, pode fazer que o seu estar presente no homem não se limite a ser um estar presente nele que o constitui como realidade pessoal, mas que seja um estar presente no homem que o constitui como realidade pessoal de caráter misteriosamente “divino”.
= Trata-se, então, duma doação pessoal peculiar de Deus ao homem que a teologia cristã chama de “graça”, referindo-se unitariamente tanto à “graça incriada” (esse modo peculiarmente gratuito de estar presente Deus no homem, de doar-se pessoalmente a ele) quanto à “graça criada” (esse caráter misteriosamente divino que Deus imprime no homem ao estar presente nele e ao doar-se pessoalmente a ele desse modo peculiarmente gratuito, de tal modo que o homem não é só “deiformemente” pessoal, como todos, mas “divinamente” pessoal!).
b. Doação pessoal de Deus “em pessoa”
= É o modo mais íntimo e absoluto (e misterioso!) que possa haver de doação pessoal de Deus ao homem: o modo de estar presente Deus “em pessoa” num homem constituindo-o como “a verdade pessoal de Deus em pessoa”!
= É o que acontece na Encarnação tal como é afirmada pela fé cristã: Jesus de Nazaré é “a verdade pessoal de Deus em pessoa”!; o “et Verbum caro factum est”, deve ser interpretado assim; com efeito:
# Caro, significa, neste caso, o homem experienciando ser a verdade pessoal de Deus em pessoa.
# Verbum factum est, significa Deus fazendo-se formalmente experiência da sua verdade pessoal em pessoa.
= O Verbo de Deus é suidade divina absolutamente absoluta, é absolutamente a verdade pessoal de Deus em pessoa; mas quis livremente ir fazendo-se a si mesmo verdade pessoal de Deus em pessoa, experiencialmente, humanamente; isso é Jesus Cristo enquanto Verbo encarnado.
3. Dimensões da doação de Deus.
a. A doação pessoal de Deus ao homem em experiência concerne a todas as dimensões da pessoa humana; em primeiro lugar, como temos visto, à dimensão individual dela; mas também concerne à pessoa humana enquanto que vai realizando-se socialmente e historicamente: Deus se doa pessoalmente ao homem em experiência de caráter não só individual, mas também de caráter sócio-histórico.
= Isto não tem nada a ver com aquilo que Hegel pretende, ou seja, que a sociedade e a história são momentos do devir dialético de Deus, espírito absoluto, razão absoluta.
= Isto é completamente insustentável, ao menos por dois motivos.
# Primeiro, porque a função de Deus na sociedade e na história não é ser a presença na sociedade e na história da razão absoluta, mas da verdade pessoal de Deus; verdade em nenhum caso se identifica com razão; certamente há uma presença de Deus na razão humana, mas fundada na forma primária e radical do estar presente de Deus enquanto verdadeiro na realidade vital pessoal do homem nas suas dimensões tanto individual quanto social e histórica.
# Segundo, porque não se trata, em nenhum caso, de um devir dialético de Deus, mas duma doação pessoal de Deus que não é desdobramento dialético, mas desdobramento experiencial, quer dizer, Deus doando-se pessoalmente ao homem em experiência individual, social e histórica.
b. Tudo isto é claro na história das religiões:
= O pacto, berith, de Jahveh com Israel
# No AT, Deus funda e estatui o povo de Israel, o povo eleito, num berith, num pacto.
# Esse pacto é livre iniciativa de Deus que consiste justamente em doar-se pessoalmente ao povo de Israel como germe, como agente e como meio duma experiência histórica.
# Realmente e efetivamente Deus se doa pessoalmente a Israel como verdade nas três dimensões da verdade, mas acima de tudo naquela à qual é mais sensível o semita: como firmíssima fidelidade; de tal modo que o pacto é uma doação pessoal de Deus a Israel em experiência da sua fidelidade firmíssima; é a forma peculiar de estar presente Deus enquanto verdadeiro em Israel.
# Tanto é assim, que pode interpretar-se boa parte da história de Israel, desde o relato do paraíso até a culminação dos profetas, através desse pacto histórico de Deus com Israel; a história de Israel é a ratificação da realidade pessoal de Deus doando-se a ele em forma de pacto, em forma de experiência histórica.
= Jesus Cristo; a livre historicidade de Deus, que é a historicidade de Jesus Cristo, funda e constitui o movimento religioso cristão, cuja história arranca da historicidade do próprio Jesus Cristo; Jesus Cristo é justamente Deus doando-se pessoalmente ao homem como filho de Maria, como experiência da verdade absoluta pessoal de Deus, do Verbo de Deus.
c. A providência divina: é inadequado conceituar a providência de Deus antropomorficamente como se fosse puramente e exclusivamente a ordenação de razões e disposições por parte de Deus, umas de beneplácito e outras de permissão; há algo muito mais radical: a providência divina recai formalmente sobre o curso da experiência de Deus na história e na vida de cada homem.
B. O homem é constitutivamente experiência de Deus.
1. Em que consiste ser experiência de Deus.
a. Que o homem “tenha” experiência de Deus é verdade; mas essa não é a última verdade; a última verdade é que o homem “é” experiência de Deus, que o homem é “constitutivamente” experiência de Deus.
b. Com efeito, a experiência de Deus não é a experiência dum objeto chamado de Deus; Deus não é realidade-objeto como para poder ser experimentado enquanto objeto; a experiência de Deus também não é um “estado” em que o homem está; no começo do século XX, com a invasão inundatória de livros sobre a experiência religiosa, partia-se sempre do suposto de que a experiência religiosa é algo que afeta a um estado do homem; Deus, no entanto, não é em absoluto algo que afeta a “um” estado do homem; a experiência de Deus é a experiência de “estar realizando-se fundamentado na realidade pessoal de Deus”!; isso equivale a dizer que o homem é constitutivamente experiência de Deus!
= O homem é uma maneira finita (entre outras possíveis) de ser Deus realmente e efetivamente; e esta finitude é formalmente experiencial, porque o homem é “animal” de realidades.
= Por isso o homem é o modo experiencial de ser Deus: Deus é a realidade absolutamente absoluta; o homem é uma realidade relativamente absoluta: realizando a sua realidade vital pessoal em cada um dos seus atos, o homem “ganha” o seu caráter de absoluto; pois bem, a experiência de configurar a minha própria realidade pessoal é experiência do absoluto, e essa experiência é justamente a experiência de Deus: a experiência do absoluto da minha realidade vital pessoal fundamentado na realidade absolutamente absoluta que é Deus.
2. Modos da experiência de Deus.
a. A experiência da vontade de verdade fundamental e da liberdade
= O modo primário e radical da experiência de Deus é a experiência da vontade de verdade fundamental em virtude da qual o homem é autor da sua própria realidade vital pessoal religado ao enigmático poder do real, e, portanto, em atitude de querer buscar o fundamento verdadeiro, último, possibilitante e impelente da sua realização pessoal, e entregar-se pessoalmente a ele para realizar-se na verdade fundamental.
= Esta vontade de verdade fundamental se plasma, como temos visto, em dois momentos:
# Um processo intelectivo para justificar a própria realidade-fundamento, no qual há distintas possibilidades de intelecção dela.
# Um âmbito de distintas possibilidades de realizar fundamentalmente a própria realidade vital pessoal, de distintas formas de ser relativamente absoluto.
= Por conseguinte, em ambos momentos o homem há de optar “livremente” frente a diversas possibilidades.
= Daí que o modo radical da experiência de Deus seja a experiência da minha própria liberdade, do meu ser “absoluto” relativamente; a experiência primária e radical de Deus é a experiência de ser livre na realidade-fundamental.
# Ser livre animalmente é uma maneira finita de ser Deus.
# A experiência desta liberdade animalmente experienciada é justamente a experiência primária e radical de Deus.
b. A experiência da graça (cfr. supra)
c. A experiência da filiação divina em pessoa: Jesus Cristo
= A forma suprema da experiência de Deus é a vida humana de Jesus Cristo.
= Não basta ver apenas os “mistérios” que podem ser vistos na vida de Jesus Cristo; é preciso ver a vida mesma de Jesus Cristo como “o mistério da sua filiação divina em pessoa”.
# Se contemplamos a vida dele, Jesus Cristo se mostra como uma pessoa que tem fome, sono, penas, que chora, etc.
# Então nos perguntamos: todos esses atos da sua vida o que foram para Jesus Cristo?
+ Podemos pensar que têm uma função pedagógica: com eles quis ensinar-nos algo.
+ Certamente, mas a questão é “como” nos ensinou esse algo?; fazendo-o ele deveras!; ou seja: a maneira concreta de ser Filho de Deus em pessoa que teve Jesus Cristo foi justamente tendo fome, comendo, falando com os amigos, chorando quando os perdia, rezando, etc.; não é que Jesus Cristo fosse homem “ademais” de ser Filho de Deus em pessoa; é que Jesus Cristo viveu “humanamente”, experiencialmente, a sua própria filiação divina em pessoa; a humanidade de Jesus Cristo é a experiência da sua própria filiação divina em pessoa.
= O contrário seria um gigantesco “docetismo biográfico”, como se Jesus Cristo se comportasse como os demais homens, sem que isso lhe afetasse como Filho de Deus em pessoa que era; isso não é assim para nada!; da mesma maneira que Jesus Cristo teve um sistema psico-corpóreo humano, teve também uma biografia-história estritamente humana que afetava à sua condição de Filho de Deus em pessoa.
# Deus, em Jesus Cristo, não quis apenas sentir na realidade humana que rendia uma homenagem da finitude à divindade, à qual estava hipostaticamente unido.
# Deus, em Jesus Cristo, quis viver biográfico-historicamente as vicissitudes dum homem que sente em sua própria índole pessoal ter necessidades, ter que afrontar toda uma séria de situações, e, inclusive, ter que assumir, pelo menos na sua inteligência humana, alguns aspectos da sua missão na terra, etc.
= A idéia de kénosis aponta justamente a esta dimensão de Jesus Cristo: é essa espécie de esvaziamento divino que consiste em ser finitamente, quer dizer, humanamente, palestinamente, naquela época determinada, um filho de José e de Maria, carpinteiro que anda pelas ruas de Nazaré, etc.; é justamente nessa maneira biográfico-histórica que Jesus Cristo experiencia a sua própria filiação divina em pessoa.
= Algo semelhante, à inversa, acontecerá a nós (esperamos!)
# Estamos acostumados a pensar que deixaremos “esta vida” para ir à “outra vida”.
# Na realidade, porém, há apenas “uma vida” divinamente vivida de “duas maneiras distintas”: uma, tendo fome, sede, etc.; outra, contemplando Deus por toda a eternidade; não são duas vidas; é a mesma vida divina vivida de distinta maneira; viver pessoalmente é auto-possuir a própria realidade, aqui, na graça; na glória, na contemplação de Deus.
= Esta maneira de viver experiencialmente a sua própria filiação divina em pessoa, foi em Jesus Cristo o segredo da sua intimidade pessoal.
# Realmente não o revelou aos homens; quando os exegetas falam do “segredo messiânico”, pensam que isto é um fato evidente que se desprende do mesmo texto de S. Marcos; mas há um problema fundamental subjacente: em que consiste o segredo messiânico?; consiste precisamente nisso: em que Jesus Cristo, o Messias, era a maneira “experiencial” da filiação divina em pessoa.
# Jesus Cristo comunicou aos demais o essencial da sua vida só em alguma medida: na medida em que a biografia histórica pessoal íntima pode ser comunicada aos demais; o fez, precisamente, para que os homens, somando-se e unindo-se a ela, pudessem algum dia, nele, ascender a esse segredo constitutivo da sua própria filiação divina em pessoa.
= Assim pois, Jesus Cristo é a experiência plenária de Deus.
# Todo homem é experiência de Deus como realidade relativamente absoluta religada ao poder do real; Jesus Cristo foi muito mais: foi a religação plenária ao poder do real.
# Precisamente por isso fundou uma religião que é a religião das religiões: Jesus Cristo é a experiência plenária de Deus.
+ Certamente, a experiência plenária de Deus não é uma experiência “ou margem” do que é a experiência da vida quotidiana (andar, comer, chorar, etc.).
+ Pelo contrário: a experiência plenária de Deus é a maneira de experienciar plenariamente “em” a experiência da vida quotidiana a fundamentalidade divina em que o homem está fundado.
- O homem, com efeito, não tem que se haver com a realidade deste mundo “e ademais” com Deus.
- O homem se ocupa de Deus puramente e simplesmente ocupando-se com as coisas, com as demais pessoas e com a sua própria realidade, na sua realização vital pessoal em cada um dos atos do decurso da sua vida, por triviais que forem.
- O homem tem que se haver com o mundo, até no mais trivial, mas “deiformemente”; justamente aí está a experiência de Deus.
* * *
Chegará seguramente a hora em que o homem, no seu íntimo e radical fracasso, despertará como dum sonho, encontrar-se-á em Deus e cairá na conta de que, no seu ateísmo, não fez outra coisa senão estar em Deus. Então, encontrar-se-á religado a Ele, não precisamente para fugir do mundo, dos demais e de si mesmo, mas, pelo contrário, para poder agüentar e sustentar-se na realidade. A experiência de Deus, a parte Dei, é Deus doando-se como Absoluto à experiência humana; a parte hominis é o homem fazendo a experiência do absoluto na realização da sua pessoa. O homem não encontra Deus primariamente na dialética das necessidades e das indigências; o homem encontra Deus precisamente na plenitude da sua realidade e da sua vida. O resto é ter um triste conceito de Deus. É certo (todos os homens somos vítimas de falta de elegância) que apelamos a Deus quando troveja. Sim, disso ninguém está isento. Mas não é a forma primária como o homem vai a Deus e “está” efetivamente em Deus. O homem vai a Deus e deve ir sobretudo naquilo que é mais plenário: na plenitude mesma da sua vida, no seu realizar-se como pessoa. Na sua realização pessoal é onde o homem encontra Deus doando-se a ele em experiência. A doação de Deus é justamente a realidade da pessoa humana.
Xavier Zubiri Apalategui