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Seminário Missionário Arquidiocesano
'Redemptoris Mater'
Metafísica
(Apostilas)
Pe. Francisco-Javier Sotil Baylos
Brasília 1998
I
A metafísica
A. O que é metafísica?
1. A metafísica é o saber acerca do "diáfano" das coisas.
a. O óbvio das coisas (saber comum).
Quando apreendemos as coisas, há notas
Por exemplo: se apreendo uma garrafa, topo, porque me vêm ao meu encontro, com a sua cor, com a sua forma, com o seu brilho, com o seu peso, com a sua temperatura, etc.
Essas notas das coisas com as quais deparamos, porque nos vêm ao encontro quando apreendemos as coisas, são o âmbito do "óbvio" das coisas.
Com efeito, "óbvio" (do latim ob-viare) significa etimologicamente "vir ao encontro".
O saber acerca do óbvio das coisas é o que costuma ser chamado de saber comum ou vulgar.
b. O ultra-óbvio das coisas (saber científico-técnico).
Há outras notas das coisas que não são óbvias, ou seja, que não deparamos com elas, porque não vêm ao nosso encontro quando apreendemos as coisas.
Por exemplo: ao apreender a garrafa, não topo, porque não me vêm ao encontro, com seus fótons (que originam a sua cor), com seus elétrons, nêutrons e prótons (que compõem a sua matéria), com a velocidade das suas moléculas (que origina a sua temperatura), etc.
Essas notas das coisas com as quais não deparamos, porque não nos vêm ao encontro quando apreendemos as coisas, são o âmbito do "ultra-óbvio" das coisas.
Com efeito, para achar essas notas das coisas, o homem tem que ir "além" (ultra) do óbvio; tem que buscá-las arduamente mediante a ciência ou outras atividades humanas.
O saber acerca do ultra-óbvio das coisas é o que costuma ser chamado de saber científico ou técnico.
c. O diáfano das coisas (saber metafísico).
Poder-se-ia pensar que o óbvio e o ultra-óbvio das coisas esgotam completamente a realidade delas (assim pensa o "positivismo", por exemplo, que só admite os fatos positivos científicos).
Há, porém, um saber, a metafísica, que defende energicamente o seguinte:
- É falso que a realidade das coisas consista somente no óbvio e no ultra-óbvio delas.
- Há um âmbito das coisas com o qual não deparamos, porque não nos vem ao encontro quando as apreendemos (não é o óbvio), e que também não o encontramos buscando além do óbvio (não é o ultra-óbvio).
- É um âmbito das coisas "óbvio demais", "mais do que óbvio"; é tão óbvio que nem o percebemos; carece dessa mínima opacidade necessária para que topemos com ele quando apreendemos as coisas.
- Trata-se do âmbito do "diáfano" das coisas, que é justamente o mais radical e profundo da realidade das coisas.
- O saber acerca do diáfano das coisas é a Metafísica.
Três caracteres do diáfano das coisas.
- O âmbito do diáfano das coisas "deixa que apreendamos" o óbvio e o ultra-óbvio delas; permite, sem obstáculos, o transcurso da nossa apreensão dos outros âmbitos das coisas.
- O âmbito do diáfano das coisas não só deixa, mas "faz que apreendamos" o óbvio e o ultra-óbvio delas; faz efetivamente possível a nossa apreensão dos outros âmbitos das coisas.
- O âmbito do diáfano das coisas não só deixa e faz que apreendamos os outros âmbitos das coisas, mas é "âmbito constitutivo das coisas mesmas que apreendemos".
2. A metafísica é o saber acerca do "transcendental" das coisas.
a. O talitativo das coisas (saber comum e saber científico-técnico).
Desde outro ponto de vista, o óbvio e o ultra-óbvio das coisas constitui o âmbito do conteúdo real das coisas, das coisas "tais quais são".
É o âmbito das coisas que a metafísica chama de "talidade" das coisas ou de âmbito talitativo das coisas.
Os saberes chamados de comum e de científico-técnico são saberes acerca do talitativo das coisas, isto é, das coisas tais quais elas são, do conteúdo real das coisas.
b. O transcendental das coisas (saber metafísico).
A metafísica defende energicamente o seguinte:
- O talitativo das coisas, o conteúdo real das coisas, não esgota a realidade das coisas.
- De algum modo, a realidade do conteúdo das coisas é "mais" que o conteúdo real das coisas; o diáfano das coisas vai "além", "transcende" o óbvio e o ultra-óbvio das coisas.
- É o âmbito das coisas que a metafísica chama de "o transcendental" das coisas.
Atenção para não confundir transcendental com transcendente.
- Transcendente (transcendência) é aquilo que transcende as coisas porque, de algum modo, está fora delas; assim, por exemplo, é Deus.
- Transcendental (transcendentalidade) é aquilo que transcende as coisas, mas desde elas mesmas e nelas, isto é, sendo um âmbito constitutivo das coisas mesmas; assim, por exemplo, a realidade, a verdade, a beleza, a bondade, etc.
O transcendental tem dois caracteres constitutivos:
- O transcendental vai além das coisas, sendo, porém, âmbito constitutivo das coisas mesmas; o transcendental não é nada fora das coisas.
- O transcendental próprio duma coisa é de algum modo idêntico ao transcendental de cada uma das outras coisas; o transcendental, de algum modo, é um âmbito único que envolve todas as coisas.
A metafísica é o saber acerca do "transcendental" das coisas.
- Entre outros fatores, a "preguiça mental" pode levar-nos a negar frivolamente o âmbito transcendental das coisas, a considerar a metafísica como uma invenção de mentes à toa.
- Atenção! Se negarmos o transcendental das coisas, que será do transcendente, de Deus, por exemplo?
- De fato, muitos começam negando a metafísica e acabam negando Deus...
3. A metafísica é o saber acerca do "primário" das coisas.
a. A metafísica defende energicamente o seguinte:
O óbvio e o ultra-óbvio das coisas, o talitativo das coisas, não é o primário das coisas e sim o secundário delas, por assim dizer.
O diáfano das coisas, o transcendental das coisas é o "primário" delas, no sentido do mais radical e profundo das coisas.
b. A metafísica é o saber acerca do primário das coisas.
Responder à pergunta "o que é o primário das coisas, o mais radical e profundo delas?" é justamente a tarefa da metafísica.
A metafísica é um transcender, um ir nas coisas além do secundário delas, em busca do primário das coisas.
4. A metafísica é o saber acerca do "metafísico" das coisas.
a. O óbvio e o ultra-óbvio das coisas, o talitativo das coisas, costuma ser chamado de "o físico" das coisas.
b. Portanto, temos justamente que chamar de "meta-físico" o diáfano ou o transcendental das coisas; com efeito, o diáfano é "mais" (meta) do que óbvio (físico); o transcendental vai "além" (meta) do talitativo (físico).
c. A metafísica é o saber acerca do metafísico das coisas.
B. A dificuldade extrema da metafísica.
1. Precisamente por ser o saber acerca do diáfano, a metafísica é o saber mais difícil, mais violento.
a. Na apreensão das coisas materiais, não há nada mais difícil que apreender o transparente.
Os nossos sentidos precisam fazer a si mesmos uma espécie de "violência" para apreender o transparente.
Basta pensar na violência que faz a si mesma a visão para poder ver um vidro perfeitamente transparente...
b. Pois bem, a metafísica é o exercício da mais difícil das operações intelectivas: a apreensão do transparente dos transparentes, isto é, do diáfano das coisas; para isso, o nosso saber precisa fazer a si mesmo a maior das "violências".
2. A violência intelectiva da metafísica não consiste primariamente numa dificuldade circunstancial da mente humana, mas na dificuldade constitutiva da apreensão do diáfano.
a. Aristóteles (Estagira, Macedônia, 384-322 aC), e S. Boaventura (Bagnoregio, Itália, 1217-1274), por exemplo, nos falam de aspectos diferentes da ofuscação circunstancial da mente humana perante o diáfano.
Diz Aristóteles: Do mesmo modo que se comportam os olhos do morcego a respeito da luz do meiodia, comporta-se também o intelecto de nossa alma a respeito das coisas que são as mais visíveis do mundo ("té phúsei phanerótata pánton").
S. Boaventura cita literalmente o texto de Aristóteles e acrescenta: Porque, acostumados às trevas dos entes e das imagens sensíveis, quando o homem vê a luz do Ser Supremo, parece-lhe que nada vê; não entende que essa escuridão é a iluminação suprema da nossa mente.
b. Tudo isso é certo, mas não é radical; a apreensão do diáfano é "constitutivamente" difícil; e isso por dois motivos:
Primeiro, porque o diáfano é um âmbito constitutivo das coisas, mas não pertence ao âmbito do óbvio ou do ultra-óbvio delas: é justamente o mais óbvio das coisas.
Segundo, porque se trata de apreender o diáfano sem sair do diáfano mesmo.
- A metafísica não pretende tirar-nos das coisas; pelo contrário, pretende reter-nos mais profundamente nas coisas para fazer-nos apreender o mais que óbvio delas.
- A apreensão do diáfano é uma espécie de violenta retorção da apreensão das coisas sobre si mesma.
c. Daí que o que diz a metafísica parece truísmos nos quais não vale a pena gastar o tempo; acontece, porém, que essa presumível perda de tempo leva a apreender intelectivamente as coisas na sua maior radicalidade e profundidade...
d. Por incrível que possa parecer, não há saber mais diáfano que a metafísica; nisso consiste a sua extrema dificuldade.
Se eliminarmos da nossa consideração o óbvio e o ultra-óbvio das coisas, o talitativo das coisas, isto é, o conteúdo real das coisas, o que resta?; parece não restar absolutamente nada.
Essa é a dificuldade da metafísica: parece que não resta nada, precisamente porque o que resta é diáfano, transcendental, primário, metafísico.
Fazer que não desapareça o metafísico, o primário, o transcendental, o diáfano das coisas, é justamente a violência constitutiva da metafísica.
C. Primeiro plano, horizonte, e problema fundamental da marcha intelectiva em metafísica.
1. Primeiro plano.
a. Ao iniciar a sua marcha em busca do mais radical e profundo das coisas (do diáfano, do transcendental, do primário, do metafísico delas), a todo metafísico há algo que se lhe apresenta como o "primeiro plano" da sua visão intelectiva.
b. Para os metafísicos clássicos, como Aristóteles, S. Tomás de Aquino, esse primeiro plano são as coisas "enquanto que são", quer dizer, "o que é".
c. Para os metafísicos modernos, como Descartes, Leibniz, Kant, Hegel, numa grave inversão, esse primeiro plano já não são as coisas, nem a verdade das coisas, mas a inteligência mesma, isto é, a intelecção das coisas enquanto verdadeira, "a verdade intelectiva acerca das coisas".
2. Horizonte.
a. Os pensadores metafísicos contemplam num horizonte bem preciso esse primeiro plano da sua busca metafísica.
b. Ao longo do pensamento metafísico ocidental há somente dois horizontes diferentes:
A toda a metafísica grega (assim a Aristóteles) as coisas "enquanto que são" se apresentam no horizonte ameaçador da "mobilidade" delas, no horizonte do movimento das coisas que nascem, duram, mudam e perecem.
A toda a metafísica ocidental a partir do cristianismo, as coisas "enquanto que são" (S. Tomás de Aquino) e a "verdade intelectiva acerca das coisas" (Descartes, Leibniz, Kant, Hegel) se apresentam num horizonte muito mais grave: o horizonte da "nihilidade", quer dizer, do "nada" do qual vem tudo pela ação criadora de Deus, e do "nada" em que tudo parece diluir-se por ordem de Deus.
3. Problema fundamental.
a. O primeiro plano metafísico, contemplado no horizonte metafísico, adquire um caráter constitutivamente problemático.
b. Como veremos, esse é justamente o problema metafísico fundamental que tenta arduamente resolver cada pensador metafísico na sua marcha intelectiva à procura do diáfano das coisas, do mais radical e profundo delas.
II
A metafísica grega
A. A busca metafísica grega anterior a Aristóteles.
1. A diferença da busca metafísica dos filósofos em relação à busca dos outros pensadores antigos.
a. Os pensadores antigos.
Desde sempre os homens observaram que as coisas nascem, mudam, duram um certo tempo e, finalmente, corrompem-se ou desaparecem.
Os pensadores das culturas mais antigas buscaram, desde sempre, explicar tudo isso de alguma maneira; por isso nos contam "narrações" acerca de como se originaram as coisas que temos ao nosso redor, como mudam, como duram e como se corrompem.
b. Os filósofos gregos.
Mas é como se os filósofos gregos tivessem dito: tudo isso é mythos, ou seja, relato, narração; a origem-mudança-duração-corrupção das coisas, no entanto, não é questão de estória, mas de theoria.
Os filósofos gregos buscaram theorein, ou seja, "entender-contemplando" o que ocorre na origem-mudança-duração-corrupção das coisas.
Vamos ver sinteticamente os quatro passos fundamentais da busca grega do diáfano das coisas anterior a Aristóteles.
2. Primeiro passo: todas as coisas têm um mesmo princípio (arkhé) que é o mais radical e profundo de todas as coisas.
a. Anaximandro (Mileto, Ásia Menor, 610-547 aC).
Todas as coisas do universo provêm dum princípio, dum arkhé.
Esse arkhé, para os filósofos gregos, é unitariamente três coisas:
- O princípio do qual provém todo o universo.
- O arconte que domina o universo justamente por ser o princípio dele.
- O domínio com o qual esse arconte domina o universo.
O princípio de todas as coisas é "Natureza", Physis; efetivamente, desse princípio "nascem" (phyo "nascer") todas as coisas do universo.
Esse princípio não é algo que está fora das coisas, mas é o mais radical e profundo delas.
O princípio de todas as coisas é algo "indefinido" (ápeiron).
- Ápeiron não significa "infinito" (como costuma ser traduzido), mas indefinido, indeterminado; o infinito nunca passou pela cabeça de Anaximandro.
- O princípio do qual nascem todas as coisas é indefinido porque não pode ser nenhuma das coisas bem definidas, determinadas e delimitadas (péras) que dele procedem, mas algo diferente que permanece sempre indefinido.
- O princípio de todas as coisas é uma espécie de matéria "informe" que nunca se esgota.
A mobilidade, ou seja, o movimento ou mudança ou devir (kínesis) das coisas parece se opor a essa determinação e delimitação constitutiva de cada uma das coisas; eis o horizonte problemático para os filósofos gregos: a "mobilidade" das coisas.
b. Heráclito (Éfeso, Ásia Menor, 540-480 aC).
Não existe nenhum princípio do qual procedam as coisas; as coisas procedem simplesmente umas das outras.
A totalidade das coisas tem uma estrutura: a "harmonia" (armonía), isto é, o encaixe de todas as coisas vindo umas das outras e perecendo para dar lugar a outras.
A delimitação das coisas não é uma delimitação delas a respeito dum princípio indefinido de todas elas, mas a delimitação dumas coisas a respeito das outras.
3. Segundo passo: a realidade mais radical e profunda de todas as coisas consiste pura e simplesmente em "ser" (Parmênides, Eléia, Sul da Itália, 540-480 aC).
a. O único caminho para chegar à verdade é inteligir o "ser" (einai) das coisas.
As coisas são ou não são.
Para chegar à verdade, portanto, só há dois caminhos: o caminho do que é e o caminho do que não é.
Mas é necessário que o ser seja e que o não ser não seja.
O caminho do não ser, portanto, é falso: é impensável que algo positivamente não seja.
Então, não há mais que esse caminho para a pesquisa: dizer, pensar, inteligir que as coisas "são".
Porque efetivamente é o mesmo inteligir e ser.
- Há uma "mesmidade" entre inteligência e ser, quer dizer, inteligir uma coisa é inteligir que é.
- O próprio da inteligência, a natureza da inteligência, é justamente inteligir o ser das coisas, inteligir que as coisas são.
b. O ser .
A realidade mais radical e profunda das coisas, o miolo de todas as coisas, consiste simplesmente em "ser".
As coisas são perfeitamente delimitadas; o ser, portanto, é algo perfeitamente delimitado.
Em virtude de ser perfeitamente delimitado em si mesmo, o ser é dura necessidade, é moira (destino implacável).
O ser em si mesmo é sempre o mesmo (tautón); está aí, jaz (keítai) no mundo, sempre idêntico a si mesmo sem movimento ou mudança alguma.
- O ser é e não faz outra coisa que ser.
- O ser não admite diferenciação alguma: caso contrário dentro do ser haveria um elemento diverso do ser, quer dizer, um elemento de não-ser, e isso é impossível.
- Desde si mesmo, portanto, o ser não pode multiplicar-se nem mover-se.
Pelo mesmo motivo, o ser não pode ter princípio algum: o ser é ánarkhon.
O ser é uma "esfera": o universo inteiro, no profundo, é apenas uma grande esfera que não faz outra coisa senão "ser".
c. O ser não é natureza (não nasce de nenhum princípio) nem é princípio da natureza (nada nasce do ser).
Tudo o que vemos na natureza, que as coisas nascem, mudam e perecem, não tem nada a ver com a realidade mais radical e profunda das coisas que consiste pura e simplesmente em ser.
Por isso o ser não é o princípio das coisas, não é princípio da geração, mudança e corrupção das coisas.
- Os mortais têm a opinião (dóxa) de que as mudanças da natureza (geração, mudança e corrupção) afetam à índole mesma do ser, e acreditam que o ser é o princípio da natureza.
- Se assim fosse, o ser teria internamente movimento ou mudança; mas como todo movimento requer um certo elemento de não ser, então o ser não seria plenamente o ser, o que é.
- Portanto, esta via é falsa; é impensável dizer que as coisas "são" umas vezes duma maneira e outras vezes de outra maneira.
O movimento ou mudança da natureza acontece na superfície externa do ser, sem alterar em nada a identidade do ser; o ser é perfeitamente imutável.
Parmênides não nega os movimentos ou mudanças da natureza (contrariamente ao que sempre se diz); o que nega é a mudança ou movimento do ser.
4. Terceiro passo: o seres estão compostos de elementos (stoikheîa).
a. Demócrito (Abdera, Trácia, 460-370 aC).
É verdade que não há multiplicidade ou divisão no ser; mas também é verdade que há multiplicidade de seres.
Isso só é possível porque cada coisa que é está composta de elementos (stoikheîa); as coisas estão feitas de certos elementos últimos que são os "átomos" (esferas indivisíveis).
Cada átomo é indivisível, não gerado e indestrutível.
Os átomos só mudam de lugar, mas mudar de lugar não é mudar de ser.
A mudança de lugar dos átomos requer que o não-ser tenha certa realidade; não o não-ser em abstrato, mas um não-ser sumamente concreto: o vazio ou espaço.
- O vazio é o espaço no qual se movem os átomos.
- O vazio ou espaço faz também possível distinguir os átomos uns dos outros.
b. Empédocles (Agrigento, Sicília, 494-434 aC): os seres estão compostos de quatro elementos que são as quatro "raízes" de todas as coisas: a água, o ar, a terra e o fogo.
5. Quarto passo: por cima dos elementos dos quais estão compostos os seres e por cima do ser-esfera está a "Idéia" do Ser (Platão, Atenas, 428-347 aC).
a. Por cima deste mundo há um mundo superior: o Mundo das Idéias.
Não se trata de idéias no sentido usual atual, isto é, das idéias ou conceitos que a mente humana faz das coisas.
Trata-se de Idéias no sentido grego originário de Eidos, isto é, da configuração última, radical e essencial em que consiste cada coisa do universo.
- Pedras, árvores, vacas, homens, etc., há muitos; mas "a" Idéia de pedra é uma só; "a" Idéia de árvore é uma só; "a" Idéia de vaca é uma só; "a" Idéia de homem é uma só, etc.
- Os átomos de Demócrito são infinitos; mas "a" Idéia de átomo é uma só.
- Inclusive o ser-esfera de Parmênides responde a uma Idéia: "a" Idéia mesma do Ser.
- Também o movimento responde a uma Idéia: a Idéia do movimento, a qual não se move e está em íntima relação com a Idéia do Ser.
b. A metafísica de Platão é uma espécie de fuga do mundo da realidade -no qual até agora tinham pensado os filósofos gregos- para escapar a um duplicado superior da realidade: o Mundo das Idéias.
c. Platão relutou por superar este dualismo de mundos, mas com pouco sucesso.
Afirmava que as Idéias estão "presentes" nas coisas; que as coisas "participam" das Idéias.
Mas só conseguia explicar em que consiste esta presença (parousía) e essa participação (méthexis) mediante a metáfora da luz e das sombras...
B. A busca metafísica de Aristóteles.
1. Aristóteles herda dos filósofos gregos que o precederam tanto o problema metafísico fundamental quanto alguns conceitos fundamentais para resolvê-lo.
a. O problema da "filosofia primeira" (metafísica): "o que é o que é enquanto que é" (tì tò ón ê ón)?
Antes dele -segundo o próprio Aristóteles- os filósofos gregos tinham ido descobrindo distintas parcelas de "o que é": os elementos físicos, os números e as figuras, a retórica, a política, a virtude, etc.
Os filósofos gregos foram dizendo o que é cada uma dessa parcelas de "o que é": o que é "o que é" enquanto quente, enquanto frio, enquanto divisível, enquanto indivisível, enquanto justo, enquanto virtuoso, etc.
Mas a filosofia primeira, a proté philosophía (o que mais tarde se chamará de metafísica) é o saber acerca do que é "o que é" tomado na sua universalidade ou totalidade, pura e simplesmente "enquanto que é".
Eis o grave problema que vai enfrentar Aristóteles: o que é esse "ser enquanto ser" que é o caráter mais radical e profundo de todas as coisas e de todas as nossas afirmações sobre as coisas, e que no entanto nos foge, porque tem essa imperceptibilidade do diáfano?
b. Aristóteles recebe também dos filósofos gregos, anteriores a ele, conceitos fundamentais com os quais montará de modo genial a sua metafísica de "o que é enquanto que é":
O conceito de princípio: todas as coisas têm um único princípio que é o caráter constitutivo mais radical e profundo de todas elas.
O conceito de delimitação: cada uma das coisas é perfeitamente delimitada.
O conceito de encaixe harmônico: a totalidade das coisas do universo forma uma unidade harmônica e ordenada.
O conceito da mesmidade do ser: o ser em si mesmo é sempre o mesmo.
O conceito de que o ser é algo que está aí, que jaz sempre idêntico a si mesmo.
O conceito de que o mais profundo e radical de cada coisa, enquanto que é, é um eidos, uma configuração essencial.
2. Primeiro plano, horizonte e problema da metafísica de Aristóteles.
a. O primeiro plano da metafísica de Aristóteles, portanto, são as coisas enquanto que são, "o que é enquanto que é".
b. Esse primeiro plano metafísico é visto por Aristóteles no horizonte de toda a metafísica grega: a "mobilidade" do que é, quer dizer, o movimento ou mudança ou devir das coisas que nascem, duram, variam e perecem.
c. Por conseguinte, o problema metafísico, para Aristóteles, é: o que é "o que é enquanto que é, que parece, porém, intrinsecamente móvel".
C. Os três passos fundamentais da busca de Aristóteles.
1. Os quatro sentidos fundamentais de "o que é enquanto que é".
a. O que é verdade.
Muitas vezes dizemos que algo "é" no sentido de que é verdade, e que "não-é" no sentido de que é um erro.
Como exemplo, basta pensar em expressões tão brasileiras como: "é", "ah é?"; "é mesmo?"; "será?".
b. O que é em ato.
Os filósofos gregos disseram sempre que as coisas são perfeitamente determinadas ou delimitadas (péras).
Dizer que uma coisa é perfeitamente delimitada significa, mais precisamente, que essa coisa é "em ato" (que é entelékheia).
- Que uma coisa esteja já delimitada significa que é "em ato" aquilo que é, que está já acabada, quer dizer, que tem já em si mesma a sua finalização, o seu acabamento (en-télos-ékhein: entelékheia).
- Dizemos, por exemplo, de algo que "é" uma árvore, porque já é árvore "em ato", porque esse algo tem em si mesmo o ato acabado, a plenitude delimitada de sua realidade de árvore.
Frente a isso, dizemos que algo não-é, no sentido de que ainda não é em ato, mas só "em potência" (dynamis).
- Dizemos, por exemplo, duma semente que ainda não é árvore.
- Com isso não queremos dizer que uma semente não seja nada; a semente enquanto semente é semente em ato, tem em si mesma a plenitude delimitada de sua realidade de semente e se distingue das outras sementes.
- Mas enquanto semente destinada a ser árvore, a semente ainda não é árvore em ato, é apenas árvore em potência.
- Ser em potência também é ser, mas em sentido pleno ser é só ser em ato.
c. O que é por si mesmo.
De um homem podemos dizer, por exemplo, que é músico e que é racional; mas o sentido desses dois "que é" são diversos.
- Quando dizemos dum homem que é músico, estamos dizendo dele algo "acidental", algo que é mas que poderia não ter sido; portanto um homem não é músico por si mesmo, pelo seu próprio ser.
- No entanto, quando dizemos dum homem que é racional, estamos dizendo dele algo que é por si mesmo, pelo seu próprio ser.
Eis o terceiro sentido de "o que é": ser por si mesmo (kath'autó), quer dizer, aquilo que algo é sempre e necessariamente, aquilo que é o próprio (ídion) e constitutivo de algo, aquilo que algo é por sua natureza (katà phúsin) e por sua essência (ousía).
d. O que é ousía.
Finalmente, tudo aquilo que uma coisa é por si mesma, constitui a ousía dela.
A ousía é "o que é" da forma mais plena, radical e profunda.
Em virtude da sua ousía, da sua essência, do mais profundo e último do seu ser, cada coisa tem a totalidade dos recursos para ser independente e separada (khoristón) de todas as demais coisas.
Neste sentido de "o que é" como ousía centra Aristóteles a sua reflexão metafísica.
2. A ousía.
a. A ousía e os modos de ser da ousía (as "categorias").
Um exemplo.
- O predicado "saudável" se atribui de diversos modos a um homem: diz-se que tal homem é saudável; diz-se que a cor dele é saudável; diz-se que a comida que ele toma é saudável; diz-se que o passeio que ele dá é saudável, etc.
- De todos esses diversos modos de atribuir o predicado saudável a um homem só o primeiro (tal homem é saudável) é fundamental; os outros modos estão fundados nesse primeiro:
+ Diz-se que tal homem tem uma cor saudável, porque expressa que esse homem é saudável.
+ Diz-se que a comida que ele toma é saudável, porque é necessária para que esse homem seja saudável.
+ Diz-se que o passeio que ele dá é saudável, porque favorece a que esse homem seja saudável.
- Logo, quando dizemos que um homem é saudável, estamos atribuindo predicados ao ser fundamental desse homem, quer dizer, à ousía dele.
- Portanto, o ser da ousía desse homem é o ser fundamental dele; todos os outros modos de ser desse homem somente "são" porque estão fundados no ser da ousía desse homem.
Por conseguinte, cada coisa tem um ser fundamental que é o ser da ousía dela; todos os outros modos de ser da coisa são modos de ser da ousía da coisa.
Pois bem, todos os modos de ser de algo são "categorias", porque "acusam" (em grego "acusar" se diz kategoreîn) os diferentes modos de ser da ousía desse homem.
- Se dissermos, por exemplo, que essa parede é branca, estamos dizendo duas coisas numa:
+ Obviamente estamos dizendo que essa parede é branca e não vermelha ou azul, etc.
+ Mas implicitamente estamos dizendo também que a brancura "é" porque é um modo de ser da ousía da parede: a brancura é uma "qualidade" da ousía da parede.
- Se dissermos, por exemplo, que essa parede tem vinte metros de comprimento, estamos dizendo duas coisas numa:
+ Obviamente estamos dizendo que essa parede tem vinte metros de comprimento e não quatro nem quinze e meio.
+ Mas implicitamente estamos dizendo também que os vinte metros de comprimento "são" porque são um modo de ser da ousía da parede: os vinte metros de comprimento são uma "quantidade" da ousía da parede.
- Assim estabelece Aristóteles a sua lista das categorias: a ousía e os nove modos de ser da ousía (qualidade, quantidade, relação, posição, lugar, tempo, situação, ação e paixão).
b. A ousía é substância ou sujeito.
Parmênides dizia que o ser é algo que está aí, que jaz imóvel (keîtai).
Por duas vias diferentes Aristóteles chega à conclusão de que o ser fundamental, a ousía, não jaz (não é keímenon), mas subjaz (é ypo-keímenon), ou seja, é um sub-jectum ou uma sub-stância.
- A via do logos.
+ O pensamento grego sempre se baseou no logos, isto é, em "dizer" o que as coisas são (para os gregos são logos, indistintamente, tanto os conceitos quanto as afirmações daquilo que as coisas são).
+ Pois bem, se digo de algo que é branco, a ousía desse algo é um sujeito (sub-jectum), porque está sujeito ao predicado "branco" que lhe atribuímos.
- A via do movimento ou mudança.
+ O horizonte de todo o pensamento grego é o movimento ou mudança das coisas que nascem, duram e perecem.
+ Pois bem, quando algo vai se movendo ou mudando, o que permanece constante e imóvel por baixo do movimento ou mudança desse algo? A ousía desse algo.
+ A ousía de cada coisa é o sujeito, a sub-stância (aquilo que jaz por baixo) das variações do movimento ou da mudança dessa coisa.
A ousía ou a substância ou o sujeito consiste na complexão (symploké) da matéria prima e da forma substancial.
- Os acidentes da ousía ou substância.
+ Toda coisa tem uma série de propriedades que pode adquirir, variar e perder sem que isso afete à ousía ou substância da coisa.
+ Assim, por exemplo, essa árvore pode perder as folhas, mas continua sendo essa mesma árvore.
+ Por conseguinte, todas essas propriedades da ousía (as nove categorias da ousía) são acidentais, são "acidentes" (symbebékota) inerentes à ousía, mas não formam parte da ousía.
- A matéria prima.
+ Pode acontecer também que uma coisa se mude em outra coisa distinta, quer dizer, as coisas podem mudar "substancialmente".
+ Essa árvore, por exemplo, pode morrer e mudar-se num monte de lenha; isso quer dizer que a ousía (substância) da árvore mudou-se em ousía (substância) de monte de lenha.
+ No entanto, é claro que há uma parte, por assim dizer, da ousía da árvore que permanece na ousía do monte de lenha, porque esse monte de lenha originou-se dessa árvore.
+ Essa parte da ousía que permanece sempre nas mudanças substanciais das coisas é a "matéria prima".
+ A matéria prima não é matéria no sentido nosso atual, mas apenas uma parte metafísica da ousía das coisas.
- A forma substancial.
+ A matéria prima sozinha não pode de jeito nenhum constituir ousía, porque carece de toda e qualquer determinação; a matéria prima é perfeitamente indeterminada.
+ Há, portanto, outra parte, por assim dizer, da ousía que é aquela que dá forma perfeitamente determinada à matéria prima para constituir a ousía completa da coisa como algo "por si mesmo" (kath'autò).
+ Essa parte da ousía é a "forma substancial".
+ O que acontece, portanto, no nosso exemplo?
- A matéria prima da ousía/árvore se conserva inalterável na ousía/monte-de-lenha.
- Mas a forma substancial da ousía/árvore se separa da matéria prima e é substituída pela forma substancial da ousía/monte-de-lenha.
- A ousía, substância ou sujeito, por conseguinte, é a complexão (symploké) da matéria prima e da forma substancial.
A matéria prima e a forma substancial são imortais!
- É verdade que cada uma das coisas perece: a matéria prima perde uma forma substancial e adquire outra.
- Mas também é verdade que tanto a matéria prima quanto a forma substancial são imortais.
3. O theós.
a. O cosmos não foi feito por nenhum deus; o cosmos está aí eternamente, desde sempre e para sempre.
b. Mas há uma ousía absolutamente separada do cosmos, o theós, que é o suscitante do movimento ou mudança das coisas do cosmos.
Os movimentos ou mudanças das coisas do cosmos emergem da índole própria das ousías ou substâncias que o compoem; não dependem em nada duma "ação" divina.
As coisas do cosmos simplesmente têm um certo desejo ou tendência (órexis) de estar em movimento ou mudança.
Mas isso não parece plenamente suficiente para explicar os movimentos e mudanças das coisas do cosmos; alguém, de alguma maneira, faz que as coisas do cosmos efetivamente se movam ou mudem; quem?
Há uma substância completamente separada do cosmos, o theós, que não produz nem põe em movimento as substâncias do cosmos, mas que "suscita" nelas o movimento interno sem ficar por isso afetado em nada; como?
Aristóteles tem uma solução "astuta": como os objetos do amor e do desejo suscitam o amor e o desejo sem serem movidos.
- O amado suscita o amor; mas a ele não lhe acontece nada.
- Acontecer-lhe-ia algo se ele, por sua vez, estivesse enamorado do outro.
- Não é o caso do theós, ele por si mesmo suscita o movimento das coisas sem ser movido, ele mesmo, em nada.
c. Características do theós.
É a única ousía ou substância não gerada e incorruptível e que se basta plenamente a si mesma.
- Todas as coisas em alguma medida são suficientes e independentes, bastam-se a si mesmas em virtude da sua ousía.
- Mas essa ousía pura e simples que é o theós tem uma independência e uma suficiência absolutamente plenas.
O theós é imutável e imóvel porque é ato puro sem potência alguma, porque é pura forma substancial sem matéria prima alguma.
O theós só se ocupa de si mesmo; tem inteligência e vontade que se bastam completamente a si mesmas; a inteligência e a vontade do theós carecem de objeto distinto delas mesmas.
- O theós não conhece o cosmos, porque se o conhecesse dependeria dele; a inteligência do theós só pensa nela mesma: é intelecção da intelecção (nóesis noéseos).
- A vontade do theós não quer o cosmos; só se quer a si mesma; nisso consiste a felicidade perfeita (eudaimonía) do theós.
d. Pode ser que haja muitos theós.
O theós não tem um atributo que exclua a sua multiplicidade.
Inicialmente, Aristóteles pensou que o theós fosse um só; por isso cita Homero (Esmirna, Ásia Menor, s. IX aC): Não é bom que haja muitos soberanos; que haja só um.
Posteriormente, provavelmente por influxo da astronomia de Eudóxio (Cnido, Ásia Menor, 408-355 aC), atribuiu aos 47 círculos astronômicos 47 theós.
Assim como Demócrito mulplicou numa infinidade de átomos o ser-esfera único de Parmênides, o próprio Aristóteles multiplicou o seu theós em 47 theós.
III
A metafísica de S. Tomás de Aquino
A. A profunda mudança de perspectiva da metafísica a partir do cristianismo: a novidade do Deus do cristianismo e a novidade do horizonte cristão da nihilidade.
1. Há uma diferença abismal entre o theós de Aristóteles e o Deus do cristianismo.
a. O Deus do cristianismo em si mesmo.
Para o cristianismo, Deus é uma realidade que existe plenamente em si mesma e por si mesma (isto já o tinham dito os gregos), mas está dotada de caráter "pessoal" (a idéia de pessoa é completamente alheia aos gregos).
O Deus do cristianismo não admite réplicas (ao contrário do deus dos gregos); o politeísmo resta completamente excluído, porque a intrínseca infinitude de Deus exclui toda e qualquer multiplicação de deuses.
b. O Deus do cristianismo como causa eficiente (Criador) e como causa final (Providente) do mundo.
O cristianismo, como dado de fé, acredita que Deus criou o mundo do nada (idéia completamente estranha ao pensamento grego) e que, portanto, é a causa eficiente primeira de toda a realidade do mundo.
- A afirmação "criação do nada" aparece por vez primeira em 2 Mc 7,28 (s. II aC).
+ Diz: Deus criou das coisas que não são.
+ A frase está posta na boca duma mulher do povo; isso indica que era crença usual entre os israelitas daquele tempo.
- Criação do mundo do nada significa "posição de alteridade sem alteração".
+ Criar é pôr algo outro (posição de alteridade) que antes não era; mas isso o faz todo aquele que na terra faz algo.
+ O exclusivo da criação divina do mundo, no entanto, é ser posição de alteridade ex nihilo sui et subjecti (sem alteração).
- Todas as produções e criações que vemos na terra são criações que agem sobre um suposto ou sujeito prévio; daí que todas as criações, por geniais que forem, são sempre "alterações" de algo.
- Que Deus cria o mundo "do nada" significa, pelo contrário, que cria o mundo sem alteração alguma nem de si mesmo (ex nihilo sui) nem dum sujeito prévio (ex nihilo subjecti).
Como Criador do mundo ex nihilo, Deus é também a causa final última de toda a realidade do mundo.
2. Há uma grande diferença entre o horizonte grego da mobilidade e o horizonte cristão da nihilidade.
a. Diferença profunda do ser, do mundo, e do homem na metafísica grega e na metafísica cristã.
Para os gregos, ser significa antes de tudo "ser deveras", isto é, "ser sempre", ser mais ou menos incorruptível, ao menos durante um certo tempo; para os cristãos, ser significa antes de tudo "ser não-nada", isto é, "ser criado".
Para os gregos, o mundo começa por ser algo; para os cristãos, o mundo começa por poder não ter sido, por poder ter sido nada, ou, ao menos, por poder ter sido diferente de como é.
Para os gregos, o homem é radicalmente um ser que com o seu logos diz o que as coisas são, que trata de estudar e a estrutura interna do mundo e as suas vicissitudes; para os cristãos, o homem é radicalmente um itinerante (viator) entre o quase-nada que ele é, e Deus que é a realidade plena (cf. Itinerarium mentis in Deum de S. Boaventura).
b. O nada, a nihilidade da qual provém o mundo, é o novo horizonte da metafísica ocidental desde o começo do cristianismo até hoje.
O órgão de conceitos metafísicos que os gregos elaboraram genialmente no horizonte de mobilidade é reelaborado magistralmente pelos pensadores cristãos clássicos no horizonte da nihilidade.
Vamos ver o exemplo mais exímio: S. Tomás de Aquino (Roccasecca, Lácio Meridional, 1225-1274) o qual depura e perfila com pulcritude e finura extremas os conceitos metafísicos de Aristóteles.
B. A metafísica de S. Tomás de Aquino.
1. A metafísica é a conceituação do ente enquanto ente.
a. Conhecer as coisas é conceituá-las, que dizer, elaborar "conceitos" dos caracteres delas.
b. Os conceitos dos caracteres das coisas se obtém por meio da "abstração"; a abstração é uma operação mental que consiste em prescindir duns caracteres das coisas e em considerar os restantes, para poder elaborar conceitos destes últimos.
c. Há três tipos fundamentais de abstração e, portanto, de elaboração de conceitos dos caracteres das coisas.
A abstração própria da Física.
- A Física elabora conceitos dos caracteres qualitativos e quantitativos das coisas sensíveis prescindindo dos caracteres individuais dessas coisas.
- A Física, por exemplo, elabora conceitos dos caracteres qualitativos e quantitativos de "a" chuva-de-pedra, prescindindo de se se trata desta ou daquela chuva-de-pedra individual.
A abstração própria da Matemática.
- A Matemática elabora conceitos dos caracteres quantitativos inteligíveis das coisas sensíveis, prescindindo não só dos seus caracteres individuais, mas também de todos os seus caracteres qualitativos e dos seus caracteres quantitativos sensíveis.
- A Matemática, por exemplo, elabora conceitos dos caracteres quantitativos inteligíveis do número 17, prescindindo de se se trata destas 17 maçãs (caracteres individuais), de 17 maçãs ou de 17 vacas em geral (caracteres quantitativos sensíveis), e de se as maças e as vacas em geral são vermelhas, têm pêlo, etc. (caracteres qualitativos sensíveis).
A abstração própria da Metafísica.
- A Metafísica prescinde de todos os caracteres individuais, sensíveis e quantitativos inteligíveis das coisas; o que resta então?
- Resta o caráter das coisas pura e simplesmente enquanto que são, quer dizer, os caracteres dos entes enquanto entes, das substâncias enquanto substâncias.
- Eis a tarefa própria da Metafísica: elaborar conceitos do ente enquanto ente (ens ut ens), da substância enquanto substância.
- Os conceitos do ente enquanto ente são os conceitos mais abstratos possíveis e neles se diluem todos os demais conceitos, porque dizem respeito ao caráter mais comum e unitário de todas as coisas.
2. O ente enquanto ente "em si mesmo".
a. O que é o ente enquanto ente?
Eis a célebre definição, por assim dizer, de S. Tomás: Ens est id cujus actus est esse.
Se explicitamos a frase, entendemos que S. Tomás nos está dizendo o seguinte: O ente enquanto ente é tudo aquilo, toda coisa, cujo ato, quer dizer, cuja realidade mais radical e profunda plenamente delimitada, consiste pura e simplesmente em ser.
b. O ente enquanto ente é transcendental.
O ente enquanto ente é um caráter de cada uma das coisas, mas não diferencia em modo algum umas a respeito das outras.
Isso significa que o ente enquanto ente está "em" todas as coisas, mas transcorrendo no fundo e por cima de todas elas.
Este "estar-em-sobre" é o sentido exato de "transcender": o ente enquanto ente é "transcendental": é um caráter de todos os entes e não está limitado a nenhum deles.
- Com efeito, "ser" não é idêntico a "ser-ferro" ou a "ser-árvore", etc.; ser é "mais" que ser-ferro ou ser-árvore, etc.
- Alguém poderia pensar: isso é certo, mas "ser" é idêntico a "ser-a-totalidade-dos-seres".
- Pois bem, isso é falso.
+ A totalidade dos seres é o mundo.
+ Então fica claro que "ser" não é idêntico a "ser-mundo", mas que "ser" continua sendo "mais" que "ser-mundo".
c. Os caracteres transcendentais do ente enquanto ente: coisa, uno, algo, verdadeiro, bom (res, unum, aliquid, verum, bonum).
Se consideramos cada ente enquanto ente "de modo absoluto", isto é, em si mesmo, encontramos que é "coisa" e "uno" (res, unum).
- Considerado de modo "positivo", todo ente enquanto ente é "coisa" (res) [obviamente não no sentido atual de coisa material], em virtude de ter um quê, um quid, uma quidditas, isto é, uma essência, um conteúdo essencial.
- Considerado de modo "negativo", todo ente enquanto ente, em virtude da sua essência, é "uno" (unum), no sentido de que é indiviso, ainda que seja divisível.
+ Se considero, por exemplo, este pedaço concreto de madeira, encontro que é absolutamente uno, isto é, in-diviso.
+ É claro que posso partí-lo em dois, isto é, que é divisível; mas, então, este pedaço de madeira não-é mais; terei sim dois novos pedaços de madeira.
+ Por conseguinte, é absolutamente impossível que este pedaço de madeira, enquanto for este pedaço de madeira, seja diviso: é sempre necessariamente uno, indiviso.
Se consideramos cada ente enquanto ente "de modo relativo", isto é, em relação aos outros entes, encontramos que é "algo", "verdadeiro" e "bom" (aliquid, verum, bonum).
- Considerado de modo "negativo" em relação aos demais entes, todo ente enquanto ente não é os outros quê, mas é "algo" no sentido etimológico do termo, quer dizer, é um outro-quê (ali-quid) respectivamente aos demais quê.
- Considerado de modo "positivo" em relação às inteligências e às vontades, todo ente enquanto ente é "verdadeiro" e "bom" (verum, bonum).
+ O ente enquanto ente é "verdadeiro" (verum) no sentido de que pode ser objeto de apreensão duma inteligência; o ente enquanto ente tem em si mesmo razão de ser inteligido.
+ O ente enquanto ente é "bom" (bonum) no sentido de que pode ser objeto de desejo duma vontade; o ente enquanto ente tem em si mesmo razão de ser desejado.
d. Os caracteres transcendentais do ente enquanto ente "se convertem" (convertuntur) com o ente enquanto ente; não são algo acrescentado ao ente enquanto ente, mas o ente enquanto ente mesmo, só que concebido de modo mais expresso segundo os distintos pontos de vista em que nos colocamos.
e. A analogia do ser, do ente enquanto ente.
O ente enquanto ente está em todos os entes: numa qualidade, numa quantidade, numa relação, numa substância, etc.; por isso dizemos justamente de cada um deles "que é".
Mas o ente enquanto ente não está em cada um dos entes de maneira unívoca (da mesma maneira) nem de maneira equívoca (de maneira completamente diferente); está de maneira "análoga", quer dizer, "à sua maneira".
O ente enquanto ente está "contraido" em cada modo de ser (na substância e nas nove categorias da substância) de forma "analógica".
Por exemplo, a cor de um homem "é" e a substância desse mesmo homem "é", mas o primeiro "é" e o segundo "é" são de modo analógico.
Esta analogia do ser se chama "analogia de atribuição".
- "É" se atribui primariamente e radicalmente (per prius) à "substância" das coisas, que é o "analogado principal" (analogatum princeps).
- "É" se atribui secundariamente (per posterius) às nove categorias da substância das coisas (analogados secundários, analogata secundaria), só por referência ao analogado principal, à substância das coisas.
3. O ente enquanto ente "em referência a Deus".
a. Todo ente enquanto ente, em virtude de ter sido criado por Deus, é "finito" no sentido de que é "ser im-perfeito".
Os gregos, que consideraram as coisas no horizonte da mobilidade, disseram que as coisas são limitadas (péras), ou seja, que as limitações de cada coisa constituem positivamente aquilo que essa coisa é.
S. Tomás, que considera as coisas no horizonte da nihilidade (coisas criadas do nada por Deus), diz que as coisas são finitas, no sentido de que são "seres im-perfeitos".
- Só Deus é Infinito, quer dizer, Ser-Perfeito.
- Ser coisa-criada é ser por natureza "não-Deus".
- Por conseguinte, ser coisa-criada é ser "não-Infinito" (finito), "não-Ser-Perfeito", (ser-imperfeito).
- Efetivamente, por serem não-nada, as coisas são seres; mas, por terem sido criadas do nada, as coisas são "seres-imperfeitos".
b. A ação criadora divina consiste radicalmente em "criar o ser das coisas", em fazer que as coisas sejam.
O mais radical e profundo das coisas criadas é serem entes.
Por conseguinte, aquilo que fundamentalmente é criado por Deus é justamente a entidade das coisas; o caráter entitativo das coisas é o efeito primário e radical da ação criadora de Deus, causa eficiente primeira e universal de todas as coisas.
Dito de outro modo: dizer que Deus cria é, antes de tudo, dizer que dá o ser às coisas.
4. Deus.
a. Deus é infinitamente perfeito; essa infinita perfeição divina somente podemos expressá-la mediante um conceito: a "transcendencia" de Deus; Deus é transcendente a todas as coisas.
b. A transcendência de Deus é transcendência criadora: Deus é criador trascendente de todas as coisas.
O theós de Aristóteles nem fez as coisas (o cosmos está aí desde sempre e para sempre) nem põe as coisas em movimento mediante uma ação ativa dele; simplesmente suscita passivamente e externamente o movimento das coisas.
O Deus de S. Tomás é a causa criadora de todas as coisas desde o nada e a causa eficiente primária e universal do movimento de todas as coisas; conceber Deus racionalmente é concebê-lo como Criador transcendente de todas as coisas.
c. A transcendência de Deus é transcendência entificante: Deus é o criador transcendente primariamente da entidade de todas as coisas.
As coisas criadas enquanto criadas são fundamentalmente entes.
A causalidade criadora de Deus consiste fundamentalmente, portanto, em criar entes fora dele; Deus é a causa eficiente do âmbito transcendental das coisas, isto é, do ente enquanto ente e todos os seus caracteres transcendentais.
Enquanto entificador transcendente das coisas, Deus "está além" de todas as criaturas; diz o Cardeal Tomás de Vio "Cajetano" (Gaeta, Lácio Meridional, 1468-1534), o grande comentarista de S. Tomás de Aquino: Deus é anterior ao ente e a todas as suas diferenças, porque, com efeito, está por cima do ente, por cima do uno, por cima da verdade, etc.
d. A transcendência de Deus é transcendência hiper-entitativa: Deus é o hiper-Ser, o Ser por excelência.
Na filosofia cristã há uma posição quase insignificante que afirma que Deus não é propriamente ser.
- Diz Mário Vitorino (África proconsular, 295-363): Deus não é ente (ón), mas anterior a todo ente (pro-ón); Deus não é ser, mas pré-ser.
- Diz Mestre Johann Eckhart (Hochheim, Alemanha, 1260-1327): O ser não se encontra formalmente em Deus; nada daquilo que há em Deus tem razão de ente.
- Dito de outro modo: o ente enquanto tal é intrinsecamente finito; Deus cria este ente finito, mas em modo algum podem ser atribuidos a Deus os conceitos entitativos.
S. Tomás fez uma leve concessão a esta via: se chamamos de entes às coisas que são, na medida em que não se parecem intrinsecamente a Deus, Deus seria não-ente.
Mas S. Tomás apostou decididamente pela posição filosófica oposta: a entificação da realidade de Deus.
- Deus, como causa da ordem transcendental, está além da ordem transcendental.
- Mas está além da ordem transcendental como aquele que produz primariamente a entidade das coisas.
- Ainda que duma maneira "hiper-eminente", Deus também é ser; Deus é o Ser Subsistente mesmo (ipsum esse subsistens), o Ser que subsiste por si mesmo (a se); Deus é o "hiper-ser" por excelência.
- Enquanto criadas por Deus, todas as coisas são entes por outro (ab alio), isto é, por Deus (a Deo).
Deste modo, S. Tomás inclui dentro da analogia de atribuição do ser não só os entes, mas também Deus mesmo, o Ser por excelência.
- Deus é e as coisas são.
- Mas Deus e as coisas não são da mesma maneira, isto é, univocamente: as coisas são porque receberam a sua entidade do Deus Criador (a Deo); Deus é por si mesmo (a se).
- Portanto, Deus e as coisas são à sua maneira própria, isto é, são "analógicamente".
- O ser se atribui principalmente a Deus, o Ipsum Esse Subsistens (analogado principal); o ser se atribui secundariamente às coisas (analogados secundários) só por referência ao Ser de Deus Criador.
e. A entificação tomista da realidade de Deus coloca três problemas que S. Tomás não resolve.
Como pode ser Deus analogado principal da analogia de atribuição do ser?
- Parece aceitável a analogia de atribuição do ser considerando como analogado principal a "substância", pois esta é algo perceptível à razão.
- Mas como é possível fazer de Deus o analogado principal da analogia de atribuição do ser, sendo que Deus é transcendente à razão?
- Cajetano, vendo o problema, diz que não se trata de analogia de atribuição, mas de analogia de "proporcionalidade": o ente é às coisas de modo semelhante (proporcional) a como o Ipsum esse subsistens é a Deus.
- Mas com isso ficamos numa grande escuridão...
Como podemos atribuir a Deus o ser, ainda que seja por via de excelência, e não todos os caracteres transcendentais do ser que se convertem com o ser?
- S. Tomás, efetivamente, afirma até a saciedade que Deus é Ser, Uno, Verdadeiro e Bom por excelência, mas obviamente não admite que Deus seja res e aliquid.
+ Como vamos dizer que Deus seja res, isto é, que tenha um quê, um conteúdo essencial, sendo que Deus é o Ser In-finito?
+ Como vamos dizer que Deus seja um aliquid?
- A respeito de qual quê Deus seria outro-quê? No melhor dos casos a respeito do quê do mundo.
- Mas isso não pode ser, porque a ação divina criadora do mundo não acrescenta nada ao Ser Absoluto de Deus.
- Francisco Suárez (Granada, Espanha 1548-1617) tentou resolver a questão eliminando res e aliquid dentre os caracteres transcendentais do ser, isto é, amputando o âmbito transcendental da metafísica de S. Tomás...
Como pode o ser das criaturas ser "participação" do Ser de Deus?
- S. Tomás afirma repetidamente, com efeito, que a entidade da criatura consiste em "participar" do ser de Deus.
- Mas isto não é tão claro assim, como o próprio S. Tomás vislumbrou quando numa passagem afirmou: todo ser criado participa, por assim dizer (ut ita dixerim) (?), da natureza do ser porque só Deus é o seu próprio Ser.
- Com certeza, nesta passagem cruzou pela mente de S. Tomás a problematicidade da entificação da realidade divina...
2. A verdade das coisas.
a. A verdade das coisas, radicalmente, é o caráter das coisas enquanto conformes com a Inteligência de Deus.
Deus é a Inteligência Originária (Intellectus Originarius); efetivamente, Deus dá orígem às coisas, cria as coisas, tal como as pensa.
Toda coisa, portanto, é a realização da idéia pré-existente dessa coisa na mente divina.
Esse caráter das coisas enquanto conformes com a idéia divina delas é a verdade radical das coisas.
Depois de S. Tomás, outros metafísicos cristãos chamaram esta dimensão da verdade das coisas de "verdade ontológica" das coisas; a expressão é desafortunada; no melhor dos casos deveria ser chamada de "verdade teológica"...
b. A verdade das coisas, secundariamente, é o caráter das coisas enquanto conformes com as inteligências; aqui S. Tomás segue tal qual as afirmações de Aristóteles.
O homem fabrica muitas coisas com o seu fazer (poíesis) e com a sua técnica (tékhne): são as coisas artificiais que estão chamadas a serem conformes com a idéia delas que o homem que as fabrica tem na inteligência.
Mas, antes de tudo, há as coisas naturais (res naturales, phúsei ónta), não produzidas pelo homem; a inteligência humana com essas coisas o único que pode fazer é conformar-se com elas.
Todas as coisas, com efeito, têm o caráter de serem capazes de conformar as inteligências; esse caráter das coisas é a verdade das coisas.
IV
A metafísica de Renι Descartes.
A. Primeiro plano, horizonte e problema fundamental da metafísica moderna.
1. Primeiro plano.
a. No seio da própria metafísica cristã medieval, no fim do século XV e começo do século XVI, nasce a metafísica moderna (e, congênere com ela, a ciência moderna).
b. A metafísica moderna inverte radicalmente o primeiro plano da busca metafísica.
Para a metafísica clássica (grega e cristã), o primeiro plano da busca metafísica são as coisas enquanto que são, isto é, a realidade mesma, em definitiva.
- Para a metafísica clássica, a verdade é primariamente um caráter transcendental do ser das coisas mesmas: as coisas que são enquanto verdadeiras.
- A metafísica clássica é uma "ontologia (intelecção do ser) transcendental".
Para toda a metafísica moderna ocidental, o primeiro plano da busca intelectiva não são mais a coisas, senão a intelecção mesma acerca das coisas enquanto intelecção, isto é, a inteligência mesma, em definitiva.
- Para a metafísica moderna, a verdade é primariamente um caráter transcendental da intelecção acerca das coisas enquanto intelecção: a intelecção acerca das coisas enquanto verdadeira.
- A metafísica moderna é uma "noologia (intelecção da intelecção) transcendental".
2. Horizonte.
a. O horizonte da busca metafísica moderna, continua sendo o mesmo de toda a busca metafísica ocidental a partir do cristianismo: o horizonte da "nihilidade", quer dizer, do "nada" do qual vem tudo pela ação criadora de Deus, e do "nada" em que tudo parece diluir-se por ordem de Deus.
b. Para a metafísica moderna, esse "tudo" não é mais primariamente as coisas, como era para a metafísica clássica, senão a intelecção enquanto tal acerca das coisas.
c. Daí que, para a metafísica moderna, o horizonte da nihilidade não é primariamente o horizonte da nihilidade das coisas, mas o horizonte da nihilidade da intelecção humana acerca das coisas, ou seja, a ameaçadora "incerteza (a não-certeza)" radical e constitutiva da inteligência humana mesma na sua apreensão das coisas.
3. Problema fundamental.
a. A verdade da intelecção acerca das coisas (primeiro plano), contemplada no horizonte da incerteza radical dessa intelecção acerca das coisas, adquire un caráter constitutivamente problemático.
b. Vamos ver como alguns metafísicos modernos, a começar de Descartes (La Haya, França, 1596-1650), tentam arduamente resolver o que para eles constitui o problema metafísico fundamental: a procura do diáfano, que consiste agora no fundamento mais radical e profundo da intelecção "inconcussamente certa" acerca das coisas.
C. Os três passos fundamentais da marcha metafísica cartesiana.
1. O caminho (método) da dúvida à certeza.
a. O caráter "dubitável" da ciência.
Desde os gregos, todos os filósofos se referiram, com maior ou menor intensidade, ao caráter incerto ou dubitável de quase todos os conhecimentos humanos acerca das coisas, ou seja, a que há poucas verdades que sejam evidentes por si mesmas.
A preocupação filosófica por este caráter incerto e dubitável do conhecimento humano aumentou consideravelmente na filosofía da baixa Idade Média (século XIV sobretudo); vejamos, por exemplo, os três elementos essenciais daquilo que é "ciência" segundo o nominalista Guilherme de Ockham (Ockham, Inglaterra, 1285-1349):
- "Conhecimento verdadeiro" (cognitio vera), quer dizer, que corresponda adequadamente àquilo que as coisas efetivamente são.
- "Mas dubitável" (sed dubitabilis): a imensa maioria das verdades consideradas científicas são, em princípio, dubitáveis, ou seja, in-certas.
- "Nascido para tornar-se evidente por meio do raciocínio" (nata fieri evidens per discursum); quer dizer, a "dúvida", que acompaña em princípio todo conhecimento, se transforma em "certeza" somente quando se encontra alguma razão que torna "evidente" esse conhecimento.
b. Descartes, herdeiro dessa tradição filosófica, a leva até o extremo: faz precisamente da "dúvida" o "método" da sua busca metafísica para chegar à certeza.
Método é, para Descartes, algo assim como "o caminho que conduz à verdade", como dizia Parmênides.
Pois bem, para Descartes, esse caminho que conduz à verdade certa é nada menos que a "dúvida"; por isso, a dúvida cartesiana é "dúvida metódica".
- Descartes se propõe, como método que conduz à verdade certa, duvidar de todos os conhecimentos humanos; não para ficar na dúvida, mas justamente para o contrário: para achar a verdade, ou seja, para achar algum conhecimento certo que resista a toda dúvida.
- Para achar esse conhecimento resistente a toda dúvida, Descartes se reclui solitariamente dentro de si mesmo com os seus pensamentos, isto é, com a sua inteligência e o com o seu pensar.
+ Ficar a sós com os próprios pensamentos é tão velho quanto o homem; para achar a verdade que habita nele, o homem sempre procurou ter essa solidão interior consigo mesmo.
+ Mas a solidão interior de Descartes é mais grave; é, segundo ele, o único caminho estrito e rigoroso para achar um conhecimento que resista completamente a toda dúvida, quer dizer, para encontrar uma verdade incomovivelmente certa.
+ Por isso, a marcha metafísica de Descartes é constitutivamente uma "meditação" (as "meditações cartesianas"), e não sobre as coisas, isto é, sobre o ente (como acontecia na metafísica clássica), mas sobre a inteligência humana em si mesma.
- Para a filosofia clássica, a realidade mais fácil de apreender com a inteligência eram as coisas externas ao homem, e a mais difícil de apreender, a inteligência.
- Para Descartes, pelo contrário, que identifica "fácil" com "imediato", a realidade mais fácil de apreender pela inteligência é a inteligência mesma, porque a inteligência é imediata a si mesma.
c. Em definitiva, Descartes, como todo metafísico, busca o diáfano, o mais radical e profundo da realidade; pois bem, para ele o diáfano que busca é uma verdade incomovivelmente certa, resistente a toda dúvida, para poder fundamentar nela com certeza os diversos conhecimentos humanos.
2. A intuição da verdade evidentemente certa: "se eu penso, é que eu sou", quer dizer, "se eu penso que eu penso, é que eu sou uma coisa pensante".
a. Recluído dentro do seu próprio pensar, Descartes duvida de tudo.
b. Justamente nesse seu pensamento que duvida de tudo, Descartes "intui", isto é, percebe clara e distintamente, uma verdade evidentemente certa, porque resiste a toda dúvida: "se eu duvido de tudo, 'eu penso'".
O gênio maligno que me pode enganar em todos os meus pensamentos, inclusive nas minhas evidências, até nas mais evidentes, no "eu penso" não tem cabida alguma.
Teria cabida se o "eu penso" fosse um raciocício tipo assim: todo aquele que duvida de tudo, pensa; é assim que eu duvido de tudo; portanto eu penso.
Mas não é o caso; eu tenho a intuição (intuitus), isto é a percepção clara e distinta (clara ac distincta perceptio), de que efetivamente "eu penso"; e essa intuição é incomovivelmente resistente a toda tentativa de dúvida.
Analisemos mais detalhadamente essa intuição cartesiana "eu penso".
- Em todo pensamento nosso há dois momentos:
+ O "pensamento pensante" (os metafísicos medievais o chamam de "conceito formal"), quer dizer, o ato de pensar enquanto tal.
+ O "pensamento pensado" (os metafísicos medievais o chamam de "conceito objetivo"), quer dizer, o conteúdo do ato de pensar, isto é, aquilo que eu penso.
- Assim, no pensamento, no cogito, no "eu penso" de Descartes, há perfeitamente esses dois momentos:
+ Pensamento pensante: "eu penso" (cogito).
+ Pensamento pensado: "que eu penso" (me cogitare).
- O que nos quer dizer Descartes é que a sua intuição, a sua certeza inconcussa concerne ao seu pensamento pensante (eu penso) e não ao pensamento pensado (que eu penso).
+ Com efeito, poderia ser absolutamente falso e errado, um perfeito engano, "que eu penso" (o pensamento pensado).
+ Ainda assim, o "eu penso" (pensamento pensante) seria uma verdade inconcussamente certa, porque, no pior dos casos, sem dúvida alguma, "eu penso" esse presumível engano, erro e falsidade (que eu penso).
c. Pois bem, Descartes nos diz que "percebe com toda claridade e distinção" (intuição, intuitus) que este seu pensamento pensante (eu penso; cogito) envolve em si mesmo unitariamente três coisas:
Primeiro, como acabamos de dizer, uma certeza inconcussa, incomovivelmente resistente a qualquer dúvida: "eu penso" (cogito).
Segundo, o próprio ser (existência) de Descartes: se eu penso, é que sou (cogito ergo sum).
Terceiro: a essência mesma de Descartes, e do homem, que consiste precisamente em ser uma coisa pensante (res cogitans): "eu sou uma coisa pensante" (ego sum res cogitans).
3. Os quatro caracteres constitutivos da verdade, segundo Descartes.
a. Firmeza.
A verdade primária e radical que Descartes pensa ter achado (cogito, ergo sum) é, segundo ele, uma certeza incomovível.
Essa certeza incomovível consiste mais precisamente na "firmeza" da verdade frente a toda dúvida ou incerteza possíveis.
Não se trata de que a verdade seja firme porque se baseia em evidências, mas de que a verdade é firme por si mesma, pela sua própria estrutura interna.
Esse primeiro caráter constitutivo da verdade cartesiana (firmeza) é salientado na metafísica desde as suas origens.
- Parmenides falava de "o coração incomovível (artemés) da verdade rotunda".
- Aristóteles considerava o primeiro princípio do logos (o princípio de não contradição: "A" não pode ser simultaneamente "não-A") "o mais seguro ou inflexível (bebaiotáte)".
b. Manifestação.
A verdade não é somente firme, mas é firmemente "manifesta".
Que a verdade é firmemente manifesta, significa concretamente, para Descartes, que é percebida com percepção clara e distinta (clara ac distincta perceptio), isto é, mediante uma "intuição" (intuitus).
A evidência, para Descartes, consiste justamente nesta percepção clara e distinta ou intuição ou manifestação firme.
c. Transcendentalidade.
A verdade firmemente manifesta é "transcendental".
Efetivamente, quando penso uma verdade evidente, isto é, com uma percepção clara e distinta, sem dúvida alguma (procul dubio) essa verdade é "algo" (aliquid).
Esse algo, de acordo com a metafísica clássica, se converte com o "ente"; a verdade, portanto, é ente.
Mas prestemos atenção à gravíssima inversão dos caracteres transcendentais feita por Descartes.
- Os caracteres transcendentais segundo a metafísica clássica.
+ Os caracteres transcendentais são caracteres das coisas.
+ O primeiro caráter transcendental de cada coisa é o "ente", a coisa enquanto "que é".
+ Todo ente enquanto ente é "algo", quer dizer, é "outro-quê", outra essência respectivamente às demais essências.
+ O ente enquanto ente é conforme com a inteligência divina e é chamado a conformar a inteligência humana; por isso, o ente enquanto ente é "verdade", isto é, tem em si mesmo razão de inteligibilidade, quer dizer, é em si mesmo inteligível.
- Os caracteres transcendentais segundo Descartes.
+ Os caracteres transcendentais são caracteres da inteligência, isto é, da intelecção humana acerca das coisas (observa que nesta gravíssima inversão é "concebida", no sentido estrito de "gerada", a filosofia moderna!!!).
+ O primeiro caráter transcendental da intelecção humana acerca das coisas, como temos visto, é a "verdade".
+ Tudo aquilo que é verdade, é "algo", porque é clara e distintamente percebido.
+ Tudo aquilo que é algo clara a distintamente percebido é "ente"; "ente" é tudo aquilo que tem os caracteres transcendentais de ser "algo" inteligido com "verdade".
Por conseguinte, se a metafísica clássica, ao afirmar que o mais radical e profundo das coisas é o "ente", operou a "entificação da realidade", a metafísica cartesiana, ao afirmar que o mais profundo e radical da entidade da intelecção humana acerca das coisas é a "verdade", operou a "verificação da entidade".
A metafísica de Descartes não é somente uma egonoologia (um saber acerca do eu pensante), mas uma egonoologia transcendental!!!
- A verdade "eu penso" é o fundamento transcendental da toda a minha intelecção acerca das coisas.
- O âmbito transcendental da realidade já não se fundamenta sobre a entidade das coisas (como na metafísica clássica), mas sobre o meu "eu pensante" que é verdadeiro, isto é, que tem certezas ou evidências ou percepções claras e distintas de algo.
- A verdade da minha intelecção acerca das coisas já não se fundamenta nas coisas, ou seja, não consiste primariamente em que eu pense conforme as coisas são, mas se fundamenta no meu "eu pensante" mesmo, ou seja, em que as coisas sejam realmente como eu as penso!!!
d. Transcendência.
O problema gravíssimo que resta agora a Descartes na sua marcha metafísica é justamente este: como a verdade do meu "eu pensante" pode incluir também a certeza de que as coisas são realmente como eu penso que são?
Este problema é tão gravíssimo que a sua solução, segundo Descartes, só pode estar em Deus; somente Deus mesmo pode garantir-me a certeza de que as coisas são realmente como eu penso que são.
Descartes, portanto, precisa sem demora dar caráter "transcendente" (divino) à verdade do eu pensante acerca das coisas; por isso não tem mais remédio que provar imediatamente tanto a existência quanto a veracidade de Deus.
- Para provar a existência de Deus, Descartes desenterra o velho "argumento ontológico" de S. Anselmo de Canterbury (Aosta, Itália, 1033-1109), e nos dá una nova versão dele.
+ No meu eu pensante encontro uma idéia clara e distinta que é diferente de todas as idéias que eu penso: a idéia de um Ente Infinito ou Perfeito (Deus).
+ Essa idéia do Ente Infinito ou Perfeito (Deus) não pode vir de meu eu pensante que é finito; aliás, o meu eu pensante sabe que é finito e imperfeito justamente porque tem a idéia do Ente Infinito ou Perfeito (Deus).
+ Portanto, esta idéia do Ente Infinito ou Perfeito (Deus) deve necessariamente ter vindo ao meu eu pensante da "realidade" do Ente Infinito ou Perfeito (Deus).
+ Por conseguinte, é evidente que Deus existe
- Deus, como Ente Infinito e Perfeito que é, é "veraz"; e, precisamente porque é veraz, Deus "quer" não enganar-me.
+ Em virtude do seu poder absoluto (de potentia Dei absoluta), Deus poderia ter feito a criação de modo tal que aquilo que são as coisas criadas por Ele não coincidisse para nada com aquilo que pensa que são as coisas o meu eu pensante criado por Ele (!).
+ Mas, pela sua veracidade (e porque, portanto, não "quer" enganar-me), em virtude do seu poder ordenado (de potentia Dei ordinata), Deus tem feito a criação de modo tal que aquilo que são as coisas criadas por Ele coincida com aquilo que pensa que são as coisas o meu eu pensante criado por Ele (!!!).
Deste modo, a verdade cartesiana do eu pensante acerca das coisas adquire o seu caráter "transcendente" (divino); o Deus Veraz é o fundamento transcendente da verdade firme, manifesta e transcendental do eu pensante acerca das coisas.
C. Contrariamente ao que frivolamente costuma dizer-se, há que salientar energicamente que o pensamento de Descartes não é um jogo ingênuo de dúvidas e de certezas, mas um pensamento metafísico que quebra gravíssimamente o diáfano, o mais radical e profundo da unidade realidade-inteligência, dando carta de cidadania à ruína metafísica da modernidade.
1. Descartes quebra a unidade realidade-razão, ao negar o caráter necessário dessa unidade e ao atribuir-lhe um caráter apenas contingente.
a. Descartes nega o caráter "necessário" da unidade realidade-razão que defende a metafísica clássica, S. Tomas de Aquino, por exemplo.
A verdade transcendental da razão humana e a verdade transcendental da realidade, em si mesmas, são absolutamente independentes; em si mesmas não têm porquê coincidir (!!!).
Em contra do que diz a metafísica clássica, a realidade não tem em si mesma nenhuma razão de ser inteligida com verdade pela razão humana.
Com efeito, de potentia Dei absoluta, Deus poderia ter criado a realidade de tal modo que nada tivesse a ver com as verdades mais evidentes e mais transcendentais da razão humana.
Descartes assume mais uma vez a metafísica nominalista da baixa Idade Média e a leva ao paroxismo.
- Guilherme de Ockham tinha dito que tudo, menos o princípio de não-contradição, podia ter sido completamente distinto de como é.
- Descartes diz que tudo, absolutamente tudo, até o princípio de não-contradição, podia ter sido completamente distinto de como é.
Nesse caso, a realidade não teria nada a ver com o que dela pensa a razão humana.
b. Descartes tenta salvar do naufrágio completo a unidade realidade-razão, afirmando que essa unidade existe, ainda que seja só de caráter "contingente".
Em virtude da sua veracidade, Deus, que não "quer" enganar os homens, ao criar tanto a realidade quanto a razão humana, faz coincidir, por um ato libérrimo da sua vontade veraz, a verdade transcendental da realidade com a verdade transcendental da razão humana, as quais, por si mesmas, não têm por quê coincidir.
Há sim, portanto, uma unidade realidade-razão, mas consiste apenas numa coincidência "contingente" devida somente à vontade veraz de Deus.
Com isso, a unidade necessária realidade-razão tem ficado gravíssimamente quebrada.
- Descartes ainda mantém essa unidade com caráter apenas contingente, apoiada na veracidade de Deus.
- Mas já veremos o que tem acontecido com essa veracidade divina no curso da história do pensamento moderno...; na filosofia posterior a Descartes, assistiremos nada menos que à quebra e ao divórcio radicais da unidade realidade-razão.
2. Descartes é o pai do racionalismo moderno, quer dizer, da metafísica que outorga à razão humana o primado sobre a realidade.
a. Por isso, como temos remarcado, a metafísica cartesiana é uma egonoologia transcendental.
O fundamento transcendental da verdade já não é mais, como na metafísica clássica, o caráter verdadeiro transcendental da realidade mesma (a razão de intelegibilidade do ente em si mesmo), mas é o ego-pensante do homem.
A verdade da razão humana acerca da realidade já não consiste primariamente, como na metafísica clássica, em que o meu ego-pensante se deixe conformar pela realidade (em que pense conforme as coisas são), mas em que a realidade seja como o meu ego-pensante pense que é!!!
b. E este primado da razão humana sobre as coisas, segundo Descartes, tem nada menos que um fundamento transcendente, divino:
O que Deus quis não foi criar a estrutura da razão humana em conformidade com a estrutura da realidade.
O que Deus quis foi criar a estrutura da realidade em conformidade com a estrutura da razão humana!!!
3. Descartes é racionalista; mas o racionalismo de Descartes é constitutivamente "voluntarista"; o pensamento de Descartes é o "voluntarismo" mais ousado da história do pensamento ocidental; o racionalismo cartesiano, efetivamente, está fundado todo ele na "vontade" de Deus, no ato libérrimo da "vontade" divina.
a. O voluntarismo cartesiano é manifesto na sua conceituação da criação da realidade por obra de Deus; neste ponto, Descartes abandona completamente o metafísica de S. Tomás de Aquino e aceita a influência decisiva da metafísica de B. João Duns Escoto (Duns, Escócia, 1274-1308).
S. Tomás de Aquino.
- A Essência de Deus envolve em si mesma uma imitabilidade dela mesma ad extra.
- Essa imitabilidade consiste mais precisamente em cada uma das possíveis imitações da Essência de Deus ad extra.
- Estas possíveis imitações da Essência de Deus ad extra são, mais precisamente ainda, as diversas "idéias" que Deus tem das possíveis imitações da sua Essência ad extra.
- Estas idéias pré-existem em certo modo na Essência de Deus; por isso Deus as intelige como se intelige a si mesmo.
- Com a mesma necessidade com a qual Deus é o Ente Supremo, Deus é também o Ente que faz possível pelas suas idéias pré-existentes aquilo que não é Ele mesmo: as imitações da Essência de Deus ad extra, quer dizer, as suas criaturas.
B. João Duns Escoto.
- A Essência de Deus envolve em si mesma um ato de "Vontade" que consiste precisamente em "querer" liberrimamente "criar", dentro da sua própria Inteligência, as idéias das possíveis imitações da sua Essência ad extra.
- Essas idéias, portanto, não pré-existem na Essência de Deus; por isso Deus as intelige como termo da sua "Vontade" criadora.
Descartes segue a metafísica voluntarista de B. João Duns Escoto.
- Em virtude de um ato da sua libérrima "Vontade", Deus criou dentro dele mesmo as idéias das criaturas.
- Em conformidade com essas idéias, obra da sua libérrima "Vontade", criou a realidade fora dele mesmo.
b. O voluntarismo cartesiano é manifesto na sua conceituação da criação da razão humana por obra de Deus.
Em virtude de um ato de sua libérrima "Vontade", Deus "quis" criar uma razão finita qual é a razão humana.
Deus podia perfeitamente ter criado a estrutura da razão humana completamente diferente de como efetivamente é.
Mas, em virtude de seu ato de libérrima "Vontade", Deus "quis" criar a estrutura da razão humana como efetivamente é.
c. O voluntarismo cartesiano é manifesto na sua conceituação da criação da unidade razão-realidade por obra de Deus.
Em virtude de um ato de sua libérrima "Vontade", Deus "quis" criar as estruturas da realidade coincidentes efetivamente com as estruturas evidentes da razão humana.
Por conseguinte, a unidade razão-realidade é radicalmente "um fato contingente" que pende apenas dum ato libérrimo da "Vontade" de Deus que, em virtude da sua Veracidade, não quis enganar à razão humana.
d. Ainda mais: o voluntarismo metafísico de Descartes é de caráter "moralizante".
O ato libérrimo da Vontade de Deus, em virtude do qual Deus quer a unidade contingente razão-realidade, consiste no fundo em que Deus quer não enganar-nos...
Outro exemplo: o que chamamos de erro consiste radicalmente num "pecado" da vontade humana contra a razão.
- A vontade humana tem tanto a possibilidade de outorgar o seu assentimento às evidências claras e distintas da razão quanto a possibilidade de se antepor a essas evidências.
- No segundo dos casos, a vontade humana "falseia" a essência do seu ato a respeito da razão.
- Daí que o contrário à verdade não é simplesmente erro, mas "falsidade", isto é, um "pecado" da vontade contra a razão!
4. O que importa salientar da metafísica cartesiana, que tem conseqüências funestas para o pensamento ocidental posterior, é justamente isto:
a. Descartes inverte os termos da unidade realidade-razão; agora essa unidade é razão-realidade.
b. Além disso, Descartes quebra a unidade razão-realidade, ao negar-lhe caráter necessário e atribuir-lhe caráter contingente apenas, pendente de um ato libérrimo da Vontade de Deus.
5. Nos próximos três capítulos veremos como três dos grandes metafísicos modernos, Leibniz, Kant e Hegel tentam resolver este gravíssimo problema metafísico: a unidade realidade-razão; o remédio será muito pior que a doença: a razão humana adquire primado "absoluto" e a realidade fica definitivamente perdida.
V
A metafísica de Gottfried Wilhelm Leibniz
A. A razão é o fundamento da realidade; Descartes, segundo Leibniz (Lepzig, Alemanha, 1646-1716), ficou na "ante-sala da verdade", porque faltou-lhe analisar a fundo três pontos.
1. As idéias claras e distintas do eu pensante são, mais precisamente, os "conceitos objetivos aptos" ou "definições" ou "essências" da razão.
a. Descartes tem razão em dizer que o fundamento transcendental da verdade são as idéias claras e distintas do eu pensante, isto é, da razão humana (observa que Leibniz assume de cheio a inversão metafísica de Descartes).
b. Mas Descartes não viu clara e distintamente por quê isso é assim, dado que não viu clara e distintamente em que consistem as idéias claras e distintas do eu pensante.
c. Analisemos a fundo, portanto, os conceitos da razão, e descobriremos em que consistem mais precisamente as idéias claras e distintas do eu pensante.
Em todo conceito da razão há que distinguir com precisão dois momentos.
- Os conceitos da razão têm um momento subjetivo, em virtude do qual são "conceitos formais".
+ Efetivamente, os conceitos são o resultado da atividade concebente do "sujeito pensante", do eu pensante, da razão; por este momento, os conceitos são "conceitos formais", como diziam os metafísicos medievais.
+ Por exemplo, o conceito "líquido incolor, inodoro e insípido" é um conceito formal, quer dizer, é um conceito concebido pelo sujeito pensante, pelo eu pensante; é um conceito que concebeu a razão.
- Os conceitos da razão têm um momento objetivo, em virtude do qual são "conceitos objetivos".
+ Efetivamente, o conteúdo dos conceitos é um "conteúdo objetivo" porque representa conceitualmente "algo objetivo", isto é, algo que não é o sujeito pensante, algo que não é a razão (observa como Leibniz tenta recuperar a unidade razão-realidade); por este momento, os conceitos são "conceitos objetivos", como diziam as metafísicos medievais.
+ Por exemplo, o conceito "líquido incolor, inodoro e insípido" é um "conceito objetivo", porque é um conceito de "algo objetivo" chamado "água", que é distinto do sujeito pensante que concebe esse conceito.
Pois bem, os "conceitos objetivos" da razão são representações conceituais das "coisas", tanto das "coisas reais" quanto das "coisas ideais".
- Obviamente, os conceitos objetivos da razão não são "coisas reais"; por exemplo, o conceito objetivo "copo", evidentemente, não é um "copo real".
- Poder-se-ia pensar, então, que, ao menos, os conceitos objetivos da razão são "representações conceituais das coisas reais"; mas isto não é necessariamente sempre assim.
+ Efetivamente, é certo que a minha razão concebe conceitos objetivos que representam conceitualmente coisas reais; assim, por exemplo, o conceito objetivo "recipiente de vidro com forma de cone truncado" é uma representação conceitual deste "copo real" que tenho na mão.
+ Mas também é certo que posso ter um monte de conceitos objetivos que representam conceitualmente coisas que não são reais, mas coisas ideais; assim, por exemplo, posso perfeitamente ter um conceito objetivo da viagem que gostaria de fazer, do amigo que gostaria de ter, do quadro que vou pintar, etc.
- Por conseguinte, os conceitos objetivos da razão são "representações conceituais das coisas", tanto reais quanto ideais.
Agora bem, há uns conceitos objetivos da razão que são justamente as idéias claras e distintas do eu pensante: os "conceitos objetivos aptos" da razão ou "definições" ou "essências".
- Deixemos de lado os conceitos que são fruto da nossa percepção sensível e da nossa imaginação, porque essa categoria de conceitos pertence pura e simplesmente à intelecção confusa (!!!), e concentremo-nos nos conceitos objetivos da razão.
- Há uns conceitos objetivos da razão que representam conceitualmente "requisitos" (requaesita) ou elementos essenciais duma determinada coisa, seja real, seja ideal.
+ Por exemplo, "líquido", "incolor" e "inodoro" são requisitos ou elementos essenciais da "água real".
+ Por exemplo, "x", "y", "z", etc., (cada um coloque o que quiser...) são requisitos ou elementos essenciais da minha "viagem ideal".
- Pode acontecer que alguns desses conceitos objetivos da razão representem conceitualmente requisitos ou elementos essenciais "incompatíveis" entre si; esses conceitos objetivos da razão são "conceitos objetivos ineptos", no sentido de que não são aptos para representar conceitualmente uma coisa determinada, seja real, seja ideal.
+ Com efeito, nenhuma coisa determinada, nem real, nem ideal, pode conter elementos essenciais "incompatíveis" entre si, quer dizer, contraditórios.
+ Por ejemplo, se eu tenho o conceito objetivo "líquido incolor, inodoro e insípido e com odor de perfume", esse conceito objetivo é perfeitamente inepto para representar conceitualmente uma coisa determinada, porque nenhuma coisa, nem real, nem ideal, pode simultaneamente e sob o mesmo aspecto não ter cheiro (ser in-odora) e ter cheiro do que for.
- Pois bem, os conceitos objetivos da razão que representam conceitualmente "todos os requisitos ou elementos essenciais perfeitamente compatíveis entre si" duma coisa são "conceitos objetivos aptos", isto é, são "definições" ou "essências" das coisas.
- Eis as idéias claras e distintas do eu pensante (que Descartes não soube nos dizer em que consistiam exatamente): os "conceitos objetivos aptos" (ou definições ou essências) da razão.
- Isto nos leva ao segundo ponto que faltou-lhe analisar a Descartes.
2. Os conceitos objetivos aptos (ou definições ou essências) da razão são "objetos possíveis" e, enquanto tais, são o fundamento das "coisas reais".
a. Desde sempre a metafísica pensou que todas as coisas reais, se são reais, é que são possíveis; não se precisa uma mente privilegiada para perceber isso; é evidente que aquilo que é real é possível, e que aquilo que é impossível nunca poderá chegar a ser real; mas essa possibilidade ou impossibilidade, em definitiva, é algo "extrínseco" às coisas reais.
b. Mas o que nos diz agora Leibniz é muito diferente e tem um alcance enorme: as coisas reais chegam a ser reais "porque são possíveis"; com efeito, os "objetos possíveis" são o fundamento formal das coisas reais, porque têm possibilidade "intrínseca" de serem coisas reais.
Obviamente, os conceitos objetivos aptos ou essências não são o fundamento "causal" das coisas reais.
- Os conceitos objetivos aptos ou essências não produzem por si mesmos as coisas reais; precisa alguém (fundamento causal) que realize os conceitos objetivos aptos ou essências; os conceitos objetivos aptos ou essências "não são" coisas reais pelo mero fato de serem concebidos.
- Efetivamente, para que haja um copo real, por exemplo, não basta o conceito objetivo apto ou definição ou essência "copo"; precisa, ademais, alguém (fundamento causal) que o faça.
Mas é claro também que os conceitos objetivos aptos ou essências são o "fundamento formal" das coisas reais; com efeito, toda coisa real é a realização dum conceito objetivo apto ou essência.
- Realizar algo, efetivamente, é realizar o concebido.
- Aquele que faz um copo o que realmente faz é simplesmente dar existência à essência ou definição ou conceito objetivo apto de "copo" (se percebe aqui a influência em Leibniz da metafísica de Henrique de Gante (Gante, Bélgica, 1230-1293)).
- E isso é verdade também tratando-se de coisas reais naturais; quando Deus criou o Sol, o que fez realmente foi dar existência à essência ou definição ou conceito objetivo apto de "Sol" que tinha na sua mente.
- Os cachorros, os homens, as árvores, etc., são realizações dos conceitos objetivos aptos ou essências "cachorro", "homem", "árvore", etc.
Pois bem, os conceitos objetivos aptos ou essências são o "fundamento formal" das coisas reais, porque os conceitos objetivos aptos ou essências são "objetos possíveis" e, enquanto tais, são o fundamento das coisas reais.
- Os conceitos objetivos aptos ou essências não são coisas reais, mas "podem ser" coisas reais: o âmbito dos conceitos objetivos aptos ou essências é o âmbito das "possíveis coisas reais", isto é, o âmbito dos "objetos possíveis".
- Por exemplo, o conceito objetivo apto "recipiente de vidro com forma de cone truncado" é um "copo possível", isto é, a "possibilidade objetiva" dum copo real, aquilo que faz possível um copo real.
- Esse caráter de "possibilidade" dos "objetos possíveis" (dos conceitos objetivos aptos ou essências) consiste precisamente em que os conceitos objetivos aptos ou essências são "fatíveis em si mesmos", quer dizer, em que têm uma "possibilidade intrínseca" (percebe-se aqui a influência em Leibniz da metafísica de Francisco Suárez).
- Essa possibilidade intrínseca dos objetos possíveis consiste precisamente na "não-contradição" ou "compatibilidade" dos diversos elementos que os compoem.
3. A razão é o fundamento da realidade, porque o "ente possível" é o fundamento do "ente real" (!)
a. Os conceitos objetivos aptos são "entes possíveis".
Os conceitos objetivos aptos não são puro "nada" (como já dizia Descartes), mas são "algo" em si mesmos, quer dizer, têm um ser positivo próprio, contrariamente não poderiam ser fundamento das coisas reais.
Este ser positivo próprio dos conceitos objetivos aptos não é o ser da faculdade da razão.
- É verdade, com efeito, que os conceitos objetivos aptos só têm existência na faculdade da razão.
- Mas também é verdade que os conceitos objetivos aptos não são idênticos à faculdade da razão.
O ser positivo próprio dos conceitos objetivos aptos também não é o ser das coisas reais (entes reais), porque os conceitos objetivos aptos carecem de realidade física, por assim dizer.
Por conseguinte, os conceitos objetivos aptos da razão são "entes" mas sui generis: efetivamente, não são entes reais, mas são "entes possíveis".
b. Que os conceitos objetivos aptos são o fundamento das coisas reais quer dizer, então, que o ente possível é o fundamento do ente real.
O ente real é somente o realização fática dum ente possível; o ente real é só um ente possível ao qual foi conferida existência; realizar é somente conferir existência a um ente possível ou essência.
Portanto, o ser fundamental é o ente possível ou essência, não o ente real, porque o ente possível ou essência é fundamento dos entes reais.
Isso quer dizer que a metafísica deve ocupar-se primariamente não do ente real, mas do ente possível, isto é, daquele ente que aptitudinalmente "pode ter realidade", pode existir.
c. Agora bem, como a essência ou ente possível é o conceito objetivo apto da razão, resulta que o ser fundamental e absoluto são os conceitos da razão, que a razão é o fundamento da realidade: eis o "racionalismo"!!!.
d. Isto é justamente o que não aprofundou Descartes: faltou-lhe fundamentar o ente real no ente possível para fundamentar toda a realidade nos conceitos da razão.
B. Algumas das coisas que nos diz Leibniz acerca da realidade que está fundamentada na razão.
1. Deus.
a. A prova da existência de Deus.
A versão cartesiana do argumento ontológico de Descartes não serve para provar a existência de Deus, porque o conceito "Ente Infinito" não é um conceito objetivo apto daquilo que é "Deus"
Por isso Leibniz demonstra (?) que há um conceito objetivo apto (intrinsecamente possível) de Deus (percebe-se a influência em Leibniz da metafísica de B. João Duns Escoto, quem, antes de provar Deus como existente, prova Deus como possível).
Feito isso, Leibniz nos dá uma nova versão do argumento ontológico: Deus é possível, logo Deus existe.
b. A realidade de Deus em si mesmo.
Também no seio da realidade divina, a entidade intrínsecamente possível de Deus é o fundamento da sua entidade real (!!).
Deus é a sua própria razão de ser, quer dizer, o ser de Deus é a razão de si mesmo.
c. A ação criadora divina.
A ação criadora divina envolve, obviamente, o "Seja feito!" (Fiat!).
É claro que esse "Seja feito!" (Fiat!) concerne à Vontade de Deus: a criação é obra da Vontade de Deus que decide o "Seja feito!" (Fiat!).
Mas "Seja feito!" (Fiat!) o que? Evidentemente "Seja feito!" (Fiat!) aquilo que a Razão de Deus apresenta à Vontade de Deus, isto é, os "entes possíveis".
Quando Deus criou, portanto, o que fez simplesmente foi realizar o possível, quer dizer, conferir existência às essências (entes possíveis) que preexistiam na sua Razão (nisso consiste justamente o que os metafísicos medievais chamavam de "ciência divina de simples inteligência").
2. O homem.
a. É verdade que o homem é "animal racional", como já diziam os metafísicos clássicos; mas é preciso acrescentar que a razão humana é razão "analítica".
A razão humanana consiste exatamente na capacidade intelectiva humana de "análise", quer dizer, de decompor os elementos essenciais (requaesita) complexos dos conceitos objetivos da razão até chegar as elementos essenciais mais radicais e primários que são justamente aqueles que fazem possíveis as coisas (não esqueçamos que o matemático Leibniz desenvolveu o cálculo infinitesimal...).
Assim a razão analítica humana chega a conhecer exaustivamente (?) tudo o que há, que é justamente tudo aquilo que é possível.
b. Na sua razão, o homem possui de modo "inato" todas as verdades tanto "eternas ou necessárias" (aquelas que são verdade sempre e necessariamente) quanto "fáticas ou contingentes" (aquelas que são verdade só de fato ou eventualmente); quer dizer: todas as verdades são "verdades inatas" (!).
O homem, com efeito, é "espirito", ou seja, quando conhece coisas diferentes dele, na realidade o que está fazendo é conhecer-se a si mesmo, conhecer sua própria razão.
Nisso consiste justamente a reflexividade ou "apercepção" da razão humana: toda percepção humana de outras coisas é aperceptiva; quer dizer: ao perceber o diferente de si mesmo, a razão do homem se está percebendo a si mesma e, em si mesma, as verdades inatas (necessárias e contingentes) acerca de todas as coisas, que tem inatamente dentro de si mesma.
- A percepção sensível do homem a única coisa que faz é "despertar" as verdades inatas que há na razão do homem.
- Por exemplo, se vejo uma árvore, desperta em mim o conceito objetivo apto de "árvore" que inatamente esteve sempre na minha razão, e que é o verdadeiro conhecimento das árvores.
Em virtude da apercepção, ao pensar na sua própria razão (no seu próprio eu pensante), o homem está conhecendo tudo o objetivamente possível e, portanto, todas as coisas.
Assim é que o eu pensante é a possibilidade mesma do conhecimento de toda a realidade.
3. Os transcendentais.
a. Leibniz critica energicamente Descartes: a unidade transcendental razão-realidade não é contingente, mas intrinsecamente necessária.
A unidade razão-realidade (e, portanto, a certeza de que as coisas "são" como a minha razão as "concebe") não se funda na veracidade divina, mas na razão mesma, seja divina, seja humana.
Com efeito, os conceitos objetivos aptos da razão humana são essencialmente conjuntos com as idéias da Razão de Deus porque a razão humana é imagem da Razão Divina.
Por conseguinte, a verdade transcendental da razão humana acerca das coisas e a verdade transcendental da Razão de Deus acerca das coisas são uma única e idéntica verdade transcendental, a qual é tão intrinsecamente necessária quanto o Ser de Deus mesmo (!).
b. Isto significa, como já vimos, que o âmbito das coisas reais (entes reais) está fundamentado no âmbito da razão (entes possíveis), e que a razão repousa de modo intrínseco e necessário sobre si mesma; o racionalismo de Descartes era um "racionalismo voluntarista"; o racionalismo de Leibniz é o "racionalismo racionalista" mais ousado do pensamento ocidental!
c. A ordem dos transcendentais é, segundo Leibniz, a seguinte: verdadeiro, uno, ente, bom.
O primeiro transcendental (como para Descartes) é a verdade.
O segundo transcendental é o uno ("mónada").
- Efetivamente, a verdade não é evidência, como era segundo Descartes; a verdade, segundo Leibniz, é unidade.
+ Com efeito, o juízo consiste na identidade "sujeito predicado (conceito)"; por exemplo, "agua líquido, incolor e inodoro".
+ Pois bem, o juízo é verdadeiro quando o predicado é um conceito objetivo apto, isto é um predicado que contém todos os elementos essenciais (requaesita) que constituem a índole própria do sujeito.
+ Isso equivale a dizer duas coisas:
- Que o juízo é verdadeiro quando o predicado é idêntico à "unidade" (uno) intrínseca de todos os elementos essenciais do sujeito.
- Mas, sobretudo, que a índole própria do sujeito é primária e radicalmente uma unidade, um uno.
+ A verdade, portanto, se converte com a unidade, com o uno.
- A unidade da verdade (o uno) se baseia no "princípio de razão suficiente".
+ Para a metafísica clássica, o princípio de razão suficiente consiste simplesmente em algo óbvio: dada uma determinada coisa real, sempre há uma razão suficiente para que essa coisa exista.
+ Para Leibniz, o princípio de razão suficiente é muito mais: o ente possível (a essência) está determinado desde si mesmo a ter uma forma bem precisa de existência, quer dizer, está determinado a ser coisa real da forma determinada como é e de nenhuma outra forma.
- O uno, para Leibniz, é mais precisamente "mônada".
+ Para a metafísica clássica, como vimos, o ente é uno no sentido simplesmente de que o ente enquanto ente é "in-diviso".
+ Para Leibniz, grande matemático, a verdade e, portanto, o ente enquanto verdadeiro, é uno num sentido muito mais radical: é uma unidade radical e primária que se expande nos seus internos detalhes (elementos essenciais, requaesita).
+ Por isso, segundo Leibniz, cada coisa real é "una" neste sentido: é um "ponto metafísico", uma "mônada" (monás), que se expande nos seus elementos essenciais.
- Cada coisa real é uma mônada que tem nisus (apetite ou tendência ou impulso) a desdobrar internamente em elementos essenciais aquilo que ela é já radical e previamente enquanto mônada.
- Daí que cada coisa real ou mônada, como o ponto matemático, está como que "obturada" dentro de si mesma.
- Isto não quer dizer que cada mônada não tenha nenhuma relação com as demais mônadas; pelo contrário, cada mônada, no seu detalhe interno, é um pouco como são as demais mônadas que há no universo.
* Deus pôs de acordo todas as mônadas com uma harmonia pré-estabelecida.
* Cada mônada, sem sair de si mesma e não produzindo mais que o seu interno detalhe, é um "espelho" das demais, uma representação do universo desde o ponto de vista dela.
+ A mônada humana.
- A mônada humana está tão obturada dentro de si mesma quanto as demais mônadas; mas, pensando em si mesma, pensa em toda a ordem necessária das verdades identicamente a como pensam nela todas as demais mônadas humanas.
- Além disso, como essa ordem é o conteúdo da mente divina, o homem é não só espelho, mas "imagem" de Deus; as mônadas racionais (homens) são "pequenos deuses" (des petits dieux): veêm todas as coisas em Deus.
O terceiro transcendental é o ente, porque o uno se converte com o ente.
O quarto transcendental é o bom, aliás, o "melhor" (optimismo metafísico de Leibniz).
- Deus criou o mundo com razão.
- Isso quer dizer concretamente que Deus criou o mundo "conforme o intrinsecamente possível".
- Agora bem, o intrinsecamente possível é unitariamente duas coisas:
+ Uma unidade de elementos essenciais compatíveis entre si, isto é, não contraditórios.
+ Um permanente candidato à existência; todo o intrinsecamente possível, na sua unidade, é um "conato de existência" (conatus existendi).
- Portanto, cada uma das coisas que compoem o universo criado é uma concessão de existência, por parte de Deus, à candidatura de existência em que consiste intrinsecamente o possível.
- Para isso, Deus teve que fazer o mundo "calculando as possibilidades" (!), isto é, calculando a compatibilidade das candidaturas à existência.
+ Com efeito, os entes possíveis ou essências têm que ser compatíveis não só intrinsecamente, mas também extrinsecamente, quer dizer, com outros entes possíveis ou essências.
+ Pois bem, dentro do infinito número dos entes possíveis presentes perante a mente divina, só há um número muito amplo, mas finito, de entes possíveis compatíveis entre eles: esse é o mundo que Deus criou!
- Deus criou o mundo que tem maior possibilidade; podia ter feito mundos mais pobres, mas fez o mundo mais rico possível em entidade (toda esta operação teológico-metafísica só podia realizá-la o fundador da mecânica analítica...)
- Por conseguinte, como o ente se converte com o bom, aquilo que tem maior entidade tem a maior bondade.
- Portanto, ao querer a máxima entidade possível, Deus quis o melhor; o nosso mundo é o melhor mundo possível.
- Um século depois, o terremoto de Lisboa abalou todo o optimismo metafísico de Leibniz e obrigou Kant a escrever o folheto "Sobre o Optimismo"...
VI
A metafÍsica de Immanuel Kant
A. Crítica de Kant (Königsberg, Alemanha, 1724-1804) a toda a metafísica anterior: a razão humana não pode conhecer as "coisas tal como são em si mesmas"; o conhecimento da razão humana consiste apenas em "objetualidade".
1. Toda a metafísica anterior pensa que a razão humana pode conhecer as coisas tal como são em si mesmas ("coisas em si").
a. As coisas tal como são em si mesmas ("coisas em si") são as coisas tal como Deus Criador as criou, por um ato da sua Vontade em conformidade com a sua Inteligência.
b. A metafísica anterior pensa que a razão humana é capaz de conhecer as "coisas em si".
Os metafísicos clássicos pensam que a razão humana é capaz de conhecer as "coisas em si", porque o ser das coisas é intrinsecamente inteligível.
Descartes pensa que a razão humana é capaz de conhecer as "coisas em si", porque Deus, que é Veraz, criou as coisas em conformidade com a razão humana.
Leibniz pensa que a razão humana é capaz de conhecer as "coisas em si", porque a razão humana é imagem da Razão Divina e, portanto, conhece como Deus, ainda que limitadamente, as coisas tal como são em si mesmas.
2. Justamente por pensar que a razão humana pode conhecer as "coisas em si", a metafísica não se constituiu ainda em verdadeira ciência.
a. Depois de mais de vinte séculos, apesar de todo o seu presumível conhecimento das coisas em si por pura razão, a metafísica só deu voltas sem avançar em nada; a metafísica ainda não empreendeu o caminho seguro da ciência; por que?
b. Porque a metafísica ainda não compreendeu o seguinte:
É certo que a razão humana está carregada de questões acerca das coisas em si, que não pode eliminar, porque lhe são colocadas precisamente pela sua própria natureza.
No entanto, muito mais certo ainda é que a razão não é capaz de resolver essas questões acerca das coisas em si, porque transcendem absolutamente todo poder da razão humana.
c. O fato de que a metafísica ainda não tenha compreendido isso tem dado origem a toda espécie de discussões e disputas intermináveis cuja história é a história da metafísica...
3. Somente a Razão Divina conhece as coisas em si, porque as criou; a razão humana não, porque é "essencialmente diferente" da Razão de Deus.
a. A razão humana é "intrinsecamente finita".
Até agora, os metafísicos reconheceram que a razão humana é "extrinsecamente finita", quer dizer, que conhece "menos coisas e pior" que a Razão Divina.
O que não perceberam os metafísicos é que a finitude (Endlichkeit) da razão humana não consiste apenas na finitude do "âmbito do conhecido" pela razão humana (finitude extrínseca), mas na finitude do "modo de conhecer" da razão humana (finitude intrínseca).
- A Razão Divina conhece "infinitamente" as coisas, isto é, conhece as coisas tal como são em si mesmas, porque as criou.
- A razão humana conhece "finitamente" as coisas, quer dizer, tem perante ela as coisas que não criou e se propõe arduamente conhecer algo delas.
b. A intrínseca infinitude da razão humana consiste mais precisamente em que a razão humana é constitutivamente "receptiva".
A receptividade (Empfangen) constitutiva da razão humana consiste no seguinte: para poder conhecer algo, a razão humana primeiro tem que "receber" aquilo que as coisas "dão" de si mesmas à intuição sensível humana.
Dito de outro modo:
- As coisas são "dadas" à intuição sensível humana afetando-a impressivamente.
- Essa intuição sensível humana não é ainda "conhecimento" de nenhum tipo; intuir o dado pelas coisas não é em absoluto conhecê-lo.
- Quem conhece é a razão humana; mas, para conhecer algo, a razão humana depende necessariamente de "receber o dado" pelas coisas à intuição sensível humana.
A intuição inteligível humana de Leibniz, que intui o ser das coisas em si, é uma perfeita quimera.
- Para que existisse no homem uma intuição inteligível, essa intuição teria que ser "intuição originante" como é a Intuição Originante (Intuitus Originarius) de Deus que criou as coisas; obviamente, não é o caso.
- A única intuição que o homem tem é constitutivamente sensível, é afecção da sensibilidade humana por parte das coisas.
c. Dos dados recebidos da intuição sensível, a razão humana faz "objeto" (Gegenstand) de conhecimento.
Para "conhecer", a razão humana, do que lhe é "dado" pelas coisas em forma de afeccão da sensibilidade, tem que "fazer objeto de conhecimento".
Ser "coisa em si" (as coisas criadas pela Intuição Originante de Deus) e ser "objeto" (o dado à razão humana pelas coisas, em forma de afeccão da sensibilidade humana, e feito pela razão humana objeto de conhecimento) são "coisas" completamente distintas!!!
- Em primeiro lugar, porque obviamente há coisas que não têm por quê chegar a ser objeto do conhecimento humano; só faltaria!
- Mas, sobretudo, porque aquilo que faz possível as coisas como "coisas em si" não é o mesmo que faz possível que os dados das coisas sejam objeto do conhecimento humano.
+ Com efeito, aquilo que tem feito possíveis as coisas como "coisas em si" já cumpriu: efetivamente, aí estão as "coisas em si".
+ Pelo contrário, aquilo que faz possível que os dados dessas coisas que estão aí sejam feitos objeto de conhecimento humano depende da razão humana.
Portanto, perante a razão humana, as coisas não são primária e radicalmente su-jeitos, mas ob-jetos.
- Segundo Aristóteles e segundo toda a metafísica medieval, o carácter primário e radical das coisas é serem su-jeitos (ypokeímenon, sub-jectum, sub-stância).
- Mas isso, em todo caso, é um carácter das coisas em si mesmas e, portanto, algo que fica completamente fora do alcance da razão humana.
- Perante a razão humana, que é o único que importa à metafísica, o caráter primário e radical das coisas é serem ob-jeto (ob-jectum; Gegenstand), isto é, "jeto" (jectum) que está "ob", quer dizer, que está "perante a razão humana".
- O dogmatismo da toda a metafísica anterior consiste justamente em ter identificado sem mais os "objetos" da razão com os "sujeitos" reais, isto é, com as coisas em si.
- Perante a razão, o único "sujeito" propriamente dito é ela mesma, já que é o sujeito perante o qual estão as coisas como objetos.
B. Para Kant, como para toda a metafísica moderna, o primeiro transcendental é a verdade, mas entendida como "a objetualidade a priori do dado pelas coisas feita pelo Eu pensante".
1. A verdade é a síntese objetiva ou objetualidade feita pela razão humana do dado pelas coisas.
a. A razão humana não encontra a verdade já feita; para chegar a possuir a verdade, a razão humana tem que "fazer (Tun, Handlung) a verdade".
b. Agora bem, fazer a verdade é "fazer a objetualidade", ou seja, "fazer" do dado pelas coisas à intuição "objeto" de conhecimento.
A razão humana não faz o "conteúdo" do seu conhecimento; dizer o contrário seria simplesmente absurdo; a razão humana em si mesma é completamente "vazia" no que diz respeito aos conteúdos do seu conhecimento.
Por outro lado, o dado pelas coisas à intuição por si só não constitui conhecimento algum; já temos dito que a intuição não é conhecimento de nenhum tipo; a intuição, nesse sentido, é completamente "cega"; intuir não é conhecer.
Mas a razão humana recebe "o dado" pelas coisas à intuição e constitui esse conteúdo em "conhecimento", quer dizer, "faz" do conteúdo dado "objeto" de conhecimento, isto é, "faz a objetualidade".
c. Pois bem, fazer do dado objeto de conhecimento, ou seja, fazer a objetualidade, é mais precisamente "julgar" (Urteilen) acerca do dado.
Com efeito, fazer do dado objeto de conhecimento é fazer que o dado seja algo "inteligível".
Agora bem, fazer que o dado seja algo inteligível é precisamente fazer do dado termo de "juízos" que tentam dizer com verdade o que é inteligivelmente o dado.
Daí que a razão humana, enquanto faculdade que exerce essa função de fazer inteligível o dado pelas coisas à intuição, quer dizer, de julgar, seja exatamente "entendimento".
d. Os "juízos" da razão não são fundamentalmente juízos analíticos, mas "juízos sintéticos".
Leibniz pensou que a razão humana fosse essencialmente "analítica" e que, portanto, os juízos da razão fossem juízos "analíticos".
- O esquema dos juízos da razão é: "sujeito (conceito) predicado (conceito)"; por exemplo, "água líquido-incolor-inodoro-insípido".
- Pois bem, julgar é analisar ou decompor um conceito (água) nos conceitos que o formam (líquido-incolor-inodoro-insípido).
- Desse modo, exercitando progressivamente a sua função analítica, a razão humana chega a ver como, em virtude do princípio de razão suficiente, emerge da unidade de cada coisa o complexo de elementos essenciais que a fazem possível.
Isso não é assim; a razão humana é essencialmente "sintética"; os juízos da razão são fundamentalmente juízos "sintéticos", isto é, juízos que unem sinteticamente conceitos ao dado pelas coisas à razão através da intuição.
- Nos juízos analíticos da razão, o conceito-predicado está contido no conceito-sujeito; esses juízos, portanto, não acrescentam em nada o conhecimento da razão.
+ Assim, por exemplo, o juízo "os corpos são extensos".
+ Esse juízo não nos diz nada de novo; com efeito, o conceito-extensão está incluído no conceito-corpo, porque o conceito "corpo" é idêntico ao conceito "aquilo que tem extensão".
- Portanto, os juízos da razão que fazem progredir o conhecimento não são os juízos analíticos (aqueles que unem analiticamente conceitos com outros conceitos), mas os juízos sintéticos (aqueles que unem sinteticamente os conceitos da razão com o dado pelas coisas à razão através da intuição, o qual é anterior a todo conceito e está além de todo conceito).
+ Assim, por exemplo, o juízo "os corpos são pesados".
+ Esse juízo acrescenta algo novo ao conhecimento dos corpos, porque o conceito peso não está incluído no conceito "corpo", isto é, no conceito "aquilo que tem extensão", mas é um conceito dito da razão do dado pelos corpos à razão através da intuição.
e. Os juízos sintéticos da razão fazem "sínteses objetivas", porque fazem do dado pelas coisas "objeto" de conhecimento, fazem a "objetualidade" do dado pelas coisas.
Como temos dito, a síntese em que consistem os juízos sintéticos da razão não é uma síntese lógica, ou seja, uma síntese de conceitos contidos uns nos outros.
A síntese em que consistem os juízos sintéticos da razão também não é uma síntese subjetiva, ou seja, uma síntese psicológica na qual o sujeito associa as suas impressões sensíveis umas com as outras.
A síntese em que consistem os juízos sintéticos da razão é uma "sintese objetiva", ou seja, uma síntese que une efetivamente o âmbito inteiro dos conceitos da razão com aquilo que lhe é dado pelas coisas.
f. Essa síntese objetiva dos juízos sintéticos é verdadeira, contém verdade, se os conceitos da razão estão efetivamente no dado pelas coisas, ou seja, se aquilo que os conceitos da razão enunciam está efetivamente no dado pelas coisas.
Essa verdade, portanto, é a conformidade dos conceitos da razão com o dado pelas coisas; é uma verdade sintética que unifica os conceitos da razão e o dado pelas coisas.
Daí que a razão humana tenha que voltar uma e outra vez ao dado pelas coisas para fazer a verdade.
2. Mas a verdade transcendental ou objetualidade transcendental é a verdade necessária e universal dos juízos sintéticos a priori da razão humana.
a. A verdade dos juízos sintéticos a posteriori é mera verdade contingente ou de fato.
Os juízos sintéticos da razão descritos até aqui são juízos sintéticos a posteriori, porque dependem do "conteúdo" do dado pelas coisas.
Pois bem, é óbvio que, se as únicas verdades da razão humana fossem as dos seus juízos sintéticos a posteriori, as verdades da razão humana seriam meramente verdades contingentes, isto é, verdades de fato; mas isso não é assim.
b. Efetivamente, a razão humana tem umas verdades sintéticas absolutamente necessárias e universais, isto é, válidas para qualquer possível dado das coisas e em qualquer circunstância possível: é a verdade transcendental dos juízos sintéticos a priori.
A razão humana, ademais de enunciar com verdade contingente juízos sintéticos a posteriori (que constituem as diversas ciências positivas), é capaz de enunciar juízos sintéticos a priori (que constituem uma ciência absoluta e transcendental: a filosofia transcendental ou metafísica).
- Trata-se de juízos sintéticos, porque unem sinteticamente os conceitos da razão com o dado pelas coisas, isto é, fazem do dado pelas coisas objeto de conhecimento, fazem a objetualidade do dado pelas coisas.
- Mas trata-se de juízos sintéticos a priori, porque unem sinteticamente os conceitos da razão com qualquer possível dado das coisas, isto é, fazem do dado pelas coisas objeto enquanto tal de conhecimento, fazem a objetualidade enquanto tal do dado pelas coisas.
Isso quer dizer que as verdades dos juízos sintéticos a priori da razão humana são necessárias e universais, porque enunciam conceitos que não podem não estar no dado pelas coisas seja o que for, isto é, enunciam a verdade de todo possível objeto de conhecimento.
Daí que os juízos sintéticos a priori da razão humana sejam juízos trancendentais que enunciam verdades transcendentais, isto é, verdades absolutas e necessárias que se referem a todo possível objeto enquanto objeto.
c. A verdade transcendental ou objetualidade transcendental ("dedução transcendental") dos juízos sintéticos a priori é a síntese dos conceitos puros ou "categorias" da razão humana e de qualquer possível dado das coisas.
As categorias não acusam modos de ser, como pensou Aristóteles e com ele a metafísica medieval; as categorias ou conceitos puros da razão acusam modos de ser verdade, isto é, são formas que acusam os diversos modos de inteligibilidade, de objetualidade do dado para a razão humana.
A causalidade, por exemplo, não é uma propriedade das coisas (como pensou sempre a metafísica), mas é uma categoria da inteligibilidade para a razão humana do dado pelas coisas: nenhum dado das coisas é inteligível para a razão humana senão por via categorial ou conceitual pura de causas e efeitos.
Assim acontece com as 12 categorias que se manifestam na estrutura dos juízos da razão humana; fazer transcendentalmente verdadeiro ou inteligível qualquer possível dado das coisas é representá-lo conceitualmente segundo as doze categorias dos juízos da razão humana:
- Realidade, negação e limitação (juízos de qualidade).
- Unidade, pluralidade e totalidade (juízos de quantidade).
- Inerência/subsistência (acidentes/substância), causalidade/dependência (causa/efeito) e comunidade (juízos de relação).
- Possibilidade/impossibilidade, existência/inexistência e necessidade/contingência (juízos de modalidade).
A metafísica anterior, que pretendia inutilmente ter conhecimentos das coisas em si mesmas, tem que ceder o lugar a uma nova ciência: a filosofia transcendental ou metafísica que é a ciência transcendental da estrutura categorial a priori da Razão Pura.
- Os conceitos puros ou categorias que constituem o princípio de inteligibilidade do dado pelas coisas não procedem das coisas (como pretende toda a metafísica anterior, incluído o empirismo); pelo contrário, procedem da Razão Pura, do Eu pensante.
- A verdade transcendental, a inteligibilidade transcendental não é um caráter da entidade das coisas (como pensa a metafísica clássica), mas é algo feito, produzido, constituído pela razão humana sobre todo e qualquer possível dado a receber das coisas.
- A razão humana não produz as coisas (seria absurdo), mas produz a verdade transcendental, isto é, a inteligibilidade transcendental, a objetualidade transcendental dos dados das coisas, ao representá-los conceitualmente como substâncias, qualidades, causas, efeitos, etc.
- Mas atenção: fica claro que esta nova filosofia transcendental ou metafísica é absolutamente incapaz de determinar o "conteúdo" positivo, real e efetivo dos objetos de conhecimento da razão humana.
+ Alguém poderia pensar, com efeito, que representando conceitualmente segundo as doze categorias os possíveis dados das coisas vai chegar a determinar novos "conteúdos" positivos, reais e efetivos dos dados das coisas.
+ Pois bem, isso é perfeitamente ilusório; as categorias determinam a objetualidade de todo possível dado das coisas, mas jamais poderão determinar "conteúdos" positivos, reais e efetivos dos objetos do conhecimento da razão humana.
+ Dito de outro modo: por muitas voltas que a razão humana der aos doze conceitos puros ou categorias dela jamais chegará a determinar o conteúdo positivo, real e efetivo dum só objeto de conhecimento; chega unicamente a determinar transcendentalmente a objetualidade de todo e qualquer possível objeto de conhecimento da razão humana.
+ Ainda em outras palavras: contrariamente ao que pretendem os racionalismos, é absolutamente impossível por pura razão determinar um cisco do conteúdo positivo real e efetivo dos objetos de conhecimento; o conteúdo positivo real e efetivo dos seus objetos de conhecimento tem que ser-lhe dado à razão pelas coisas.
3. O Eu pensante é o princípio fundante da verdade transcendental.
a. O âmbito transcendental, constituído primária e radicalmente pela verdade transcendental, não repousa sobre si mesmo (como pensa Aristóteles e, em definitiva, toda a metafísica medieval), nem repousa em Deus (na veracidade divina, como pensa Descartes, ou na imagem da razão divina [a razão humana], como pensa Leibniz).
b. O âmbito transcendental, constituído primária e radicalmente pela verdade transcendental que é a objetualidade transcendental, repousa de modo absoluto sobre o "Eu pensante", isto é, sobre o subjectum transcendental que é a razão humana.
Deus é o criador das coisas em si, isto é, das coisas tal qual são em si mesmas; mas a inteligibilidade do dado à razão por essas coisas é criação do Eu pensante.
É o Eu pensante aquele que "faz" do dado pelas coisas objetos inteligíveis; o dado pelas coisas é inteligível somente porque o Eu pensante, com a sua função transcendental de julgar, constitui a inteligibilidade do dado pelas coisas, isto é, os objetos de conhecimento.
Pode haver infinidade de coisas que jamais chegarão a ser constituídas em objetos de conhecimento pelo Eu pensante (só faltaria!); mas é absolutamente impossível que haja dados das coisas que não chegem a ser feitos inteligíveis, a ser constituídos em objetos de conhecimento, pelo Eu pensante.
O Eu pensante, portanto, é o princípio fundante da verdade transcendental, porque constitui a inteligibilidade dos dados das coisas, constitui os dados das coisas em objeto de conhecimento; em outras palavras: o Eu pensante é o princípio da objetualidade transcendental, isto é, da objetualidade enquanto tal, quer dizer, é o princípio supremo da verdade transcendental.
C. Os dois tipos de objeto: empírico e moral.
1. O objeto empírico.
a. A síntese transcendental das categorias a priori e dos fenômenos das coisas constitui os objetos empíricos.
Fenômenos (do verbo grego phaínesthai, fazer-se ver, manifestar-se) são todos os dados das coisas que chegam à razão por via da intuição sensível; através da intuição sensível ou sensibilidade, as coisas se fazem ver, se manifestam como dados para a razão.
Agora bem, os fenômenos são submetidos necessariamente às duas condições transcendentais a priori da sensibilidade humana: o espaço e o tempo.
- O espaço e o tempo não são coisas nem dados das coisas.
- O espaço e o tempo são as duas condições transcendentais a priori da sensibilidade humana, isto é, as duas condições de possibilidade de que as coisas se façam ver, se manifestem ao sujeito sensível humano.
- Todos os dados das coisas que chegam à intuição sensível são submetidos necessariamente por esta às condições do espaço e do tempo.
b. A parte da ciência transcendental que estuda a síntese transcendental das categorias a priori e dos fenômenos é a Estética transcendental (do grego aísthesis, sensibilidade).
A síntese das categorias a priori e do fenomênico são os objetos empíricos.
A estética transcendental estuda essa constituição sintética transcendental dos objetos empíricos por parte da razão a partir dos fenômenos.
Essa síntese do categorial e do fenomênico é possível graças a que ambos têm em comum o momento de aprioridade.
- O fenomênico está submetido às condições a priori da sensibilidade do sujeito humano: o espaço e o tempo.
- O categorial são os conceitos puros a priori da razão humana.
Na mais modesta das percepções sensíveis humanas se constitui uma síntese transcendental do categorial e do fenomênico.
c. Pois bem, o sistema de objetos empíricos constituídos mediante a síntese transcendental do categorial e do fenomênico é a "experiência transcendental" ou "natureza", cujo conhecimento compete às ciências empíricas.
A ciência empírica certamente não faz o sol, por exemplo, (seria absurdo), mas constitui o conjunto dos fenômenos solares, submetidos ao espaço e ao tempo, num sistema de objetos empíricos de conhecimento, dotado de certas leis empíricas.
Isso significa que toda ciência empírica se faz necessariamente mediante a síntese transcendental de conceitos e de dados sensíveis das coisas.
d. A metafísica especulativa anterior há de ceder o lugar à única metafísica possível: a metafísica imanente.
Todo conhecimento científico é necessariamente síntese dos conceitos da razão e do dado.
Mas é possível um conhecimento científico que consiste na síntese dos conceitos da razão com o dado pela sensibilidade externa e interna, reduzido ao mínimo da sua enorme riqueza de detalhes: eis o conhecimento metafísico.
- Se a razão não tem em conta a riqueza insondável do dado pela sensibilidade externa (objeto da ciência física) e atende somente ao mínimo estritamente necessário e suficiente para que haja dado externo sem nenhum detalhe, isso dado fica reduzido a mera res corporea.
- Se a razão não tem em conta a riqueza insondável do dado pela sensibilidade interna (objeto da ciência psicologica do Eu, da psique) e atende somente ao mínimo estritamente necessário e suficiente para que haja dado interno sem nenhum detalhe, isso dado fica reduzido a mera res cogitans.
Pois bem, a síntese transcendental dos conceitos puros da razão e dos dados da corporeidade (natureza) e da cogitação (espírito humano) constituem a única metafísica possível: uma metafísica imanente que nunca excede do âmbito do dado, dos objetos empíricos.
- A metafísica especulativa anterior pretendia, mediante o sistema de conceitos puros da razão, poder ir além do dado pela sensibilidade, isto é, poder ir além dos objetos empíricos, e chegar a três objetos meta-empíricos ou transcendentes: o mundo, a alma e Deus.
+ O mundo.
- A totalidade das coisas que há no universo não é dada à razão pela sensibilidade; mas sim é dado à razão pela sensibilidade que umas coisas estão condicionadas a outras, estas a outras, etc.
- Então, a razão se eleva além da consideração de todas as coisas condicionadas e chega a um objeto meta-empírico incondicionado: o mundo, isto é, a totalidade absolutamente incondicionada das coisas condicionadas.
+ A alma: mediante um raciocínio análogo, a partir dos estados anímicos condicionados, a razão chega a outro objeto meta-empírico incondicionado: a alma, isto é, a totalidade absolutamente incondicionada dos estados anímicos condicionados.
+ Deus: mediante um raciocício supremo, a partir das duas totalidades incondicionadas (o mundo e a alma), a razão chega ao objeto meta-empírico por excelência: Deus.
- Pois bem, essa metafísica especulativa anterior é impossível; não passa de ser um "sonho da razão".
+ Em primeiro lugar, porque seria necessario que essas três totalidades incondicionadas fossem "dadas" à razão pela sensibilidade; não é o caso, obviamente.
+ Em segundo lugar, porque toda tentativa metafísica de chegar mediante um raciocínio a essos três objetos presumivelmente meta-empíricos ou transcendentes tem conduzido inexoravelmente a antinomias insolúveis.
- O mundo, a alma, e Deus não pertencem ao âmbito dos objetos empíricos; são apenas as três "idéias" reguladoras que dão forma de "sistema" ao conhecimento da razão.
+ Pertenceriam ao âmbito dos objetos empíricos, se mundo, alma e Deus, fossem algo dado à razão pela sensibilidade para que a razão pudesse constituí-lo em objeto empírico mediante a síntese transcendental com as suas categorias a priori; mas mundo, alma e Deus, não são algo dado pela sensibilidade.
+ Mundo, alma e Deus são, no melhor dos casos, objetos meramente "possíveis"; tentar montar sobre eles uma metafísica especulativa, isto é, pensar no mundo, na alma e em Deus como três realidades que correspondem às idéias "mundo", "alma" e "Deus" é apenas um sonho da razão que jamais constituirá conhecimento metafísico algum.
2. O objeto moral.
a. Ademais dos dados fenomênicos, a razão humana recebe da consciência interna um dado absoluto que impera por cima das duas condições a priori da sensibilidade (espaço e tempo): o dado moral, isto é, o "dever-ser" duma determinada forma e não de outra.
O dever-ser não é uma construção arbitrária do homem, mas algo rigorosamente "dado" que a razão encontra na consciência.
Além disso, o dever-ser não é um dado fenomênico (submetido, portanto, às condições a priori da sensibilidade, isto é, ao espaço e ao tempo); com efeito, o dever-ser não se refere ao homem enquanto que aparece no tempo e no espaço, que nasce, que tem uns pais, que tem uma biografia, que terá uma morte, etc., mas se refere ao homem enquanto incondicionalmente submetido a dever-ser duma determinada forma e não de outra.
Isso significa que o dado moral não é um dado fenomênico submetido ao espaço e ao tempo, mas um dado "coisa em si", isto é, um dado "homem-em si"!!!
b. A razão humana sintetiza transcendentalmente esse dado moral incondicional com os seus conceitos puros ou categorias a priori e constitui o objeto moral: a lei moral ou consciência moral ou "imperativo categórico" do dever pelo puro dever.
A moralidade humana não consiste numa espécie de sentimento ou de inclinação ao dever, nem numa série de mandamentos mais ou menos extrínsecos.
A moralidade humana consiste primária e fundamentalmente no "ditado objetivo" (imperativo categórico) da razão prática que determina a vontade ao dever de modo absoluto, isto é, ao dever por puro dever.
c. A auto-determinação absoluta moral do homem constitui o homem como autonomia moral ou liberdade transcendental ou pessoa.
A auto-determinação absoluta moral do homem não consiste em que cada homem dite a si mesmo a sua própria moral, quer dizer, os conteúdos da própria moral (este é o conceito usual atual de autonomia moral, que jamais passou pela cabeça a Kant).
A auto-determinação absoluta moral do homem consiste em que o homem se auto-determina absolutamente por puro dever; em virtude disso, o homem é autonomia moral ou liberdade transcendental ou pessoa.
d. O caráter não fenomênico mas absoluto do dado moral permite à razão a constituição duma objetualidade peculiar, a objetualidade moral, e, em virtude desta, a constituição duma metafísica transcendente que era impossível mediante a objetualidade empírica!!!
Até agora temos visto que a "causalidade" é uma categoria a priori da razão pura que sintetizada transcendentalmente com os dados fenomênicos nos dá apenas o seguinte: todos os objetos empíricos estão "determinados temporalmente", isto é, todo objeto empírico sucede temporalmente a outro objeto empírico (e ao invés: todo objeto empírico tem um objeto empírico que o antecede temporalmente).
Agora a razão encontra no dado moral uma "causalidade" real, isto é, uma determinação absoluta: a vontade humana que se auto-determina absolutamente, isto é, por puro dever.
Portanto, a divisão cartesiana das coisas em res extensa e res cogitans tem que ceder o lugar à divisão transcendental dos objetos em res (objeto empírico) e "pessoa" (objeto moral).
Agora bem, a inteligibilidade própria do dado moral exige necessariamente duas condições: a existência da alma imortal e de Deus!!!
- A alma imortal.
+ O imperativo categórico moral impera absolutamente por cima de todas as condições do tempo e do espaço.
+ Mas nenhum homem, por muito moral que for, pode realizar no tempo e no espaço esse imperativo categórico moral em toda a sua plenitude e integridade.
+ Daí que o imperativo categórico moral seria impossível se a vida do homem não tivesse um "progresso infinito".
+ Portanto, a inteligibilidade própria do dado moral (que é a "santidade"), exige necessariamente a condição de que haja no homem uma alma imortal.
- Deus.
+ O cumprimento do imperativo categórico moral tem como resultado que o homem consiga o "sumo bem" da sua vontade, ou seja, a "felicidade".
+ Mas nenhum homem é completamente feliz; nenhum homem consegue o sumo bem da sua vontade.
+ Portanto, é necessário que o sumo bem da vontade, a felicidade, tenha uma "causa" real: Deus.
Mas atenção: lembra que a alma imortal e Deus não são demonstráveis especulativamente; a alma imortal e Deus são apenas duas "exigências objetivas", isto é, dois "postulados" que estão objetivamente incluídos na inteligibilidade da liberdade transcendental, quer dizer, no imperativo objetivo moral da razão humana.
Agora bem, as duas condições de inteligibilidade da liberdade transcendental (a alma imortal e Deus) são a coincidência real entre a moralidade (objeto moral) e a natureza (objeto empírico).
- Com efeito, a alma imortal e Deus são exigidos objetivamente pela liberdade transcendental em virtude dum conflito que não pode existir entre a moralidade e a natureza: o imperativo categórico moral e a felicidade (moralidade) não podem ser plenamente realizados no transcurso duma vida finita (natureza).
- Por conseguinte, os postulados da razão prática (Deus e a alma imortal) são a coincidência real entre o moral (objeto moral) e o natural (objeto empírico).
- Não há contraposição entre objeto empírico e objeto moral, porque no fundo do objeto moral há uma res, Deus, que tem uma causalidade dotada de moralidade.
+ Deus é necessário porque sem ele não seria objetivamente inteligível a liberdade transcendental.
+ Deus é o "ôrgão" criador da sistematicidade ou teleologia do universo.
Deste modo, a razão prática alcança "realmente" aquilo que a razão pura havia alcançado como meramente "possível": o mundo, a alma e Deus; eis a única metafísica transcendente possível à razão humana: a metafísica transcendente da imanente pessoa humana.
- A razão, por meio da síntese transcendental dos conceitos puros e do dado moral, alcança a realidade objetiva da alma imortal, de Deus e do mundo.
- Ainda que a razão humana é absolutamente incapaz de ter conceitos "representativos" nem da alma imortal, nem de Deus, nem do mundo.
VII
A metafísica de GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL
A. O descobrimento radical de Hegel (Stuttgart, Alemanha, 1770-1831): a unidade Deus-coisas constitui o Absoluto ou o Tudo, e consiste na Razão Absoluta ou Espírito Absoluto (Fenomenologia do Espírito).
1. A unidade Deus-coisas constitui o Absoluto ou o Tudo.
a. Ate agora, a metafísica considerou que Deus criou as coisas desde o nada, mas que esse momento de "criação", em definitiva, não é algo constitutivo nem das coisas nem de Deus.
As coisas, uma vez criadas por Deus, simplesmente estão ai e são constitutivamente aquilo que são e mais nada.
O caráter de Criador não pertence à essencia constitutiva de Deus.
b. Isto é completamente improcedente; o momento de "criação" é constitutivo tanto das coisas quanto de Deus!!!
As coisas não são apenas aquilo que são; às coisas lhes pertence constitutivamente o caráter de ter sido criadas por Deus, quer dizer, o Deus Criador das coisas pertence à índole constitutiva das coisas.
À essência constitutiva de Deus pertencem as coisas das quais é Criador; Deus recebe a sua concreção em virtude das coisas que criou.
c. Por conseguinte, o princípio (Deus criador das coisas) e o resultado (Deus voltando a si mesmo desde as coisas) constituem uma unidade que é "o Absoluto" (das Absolute) ou "o Tudo" (das Ganze).
2. O Absoluto ou o Tudo consiste em Razão Absoluta ou Espírito Absoluto.
a. A metafísica há de ser o conhecimento da verdade racional do Absoluto, do Tudo.
b. Para conseguir isso, a metafísica deve necessariamente superar o dualismo radical coisas/razão que a perfurou até agora, e afirmar energicamente a identidade AbsolutoRazão (Razão Absoluta).
Até agora, a metafísica considerou sempre dualisticamente que, de um lado, estão as coisas verdadeiras e, do outro lado, está a razão que tenta conhecer com verdade essas coisas.
O resultado é o seguinte:
- Umas metafísicas dão preponderância à verdade das coisas sobre a verdade da razão: são as metafísicas "realistas".
- Outras metafísicas dão preponderância à verdade da razão sobre a verdade das coisas: são as metafísicas "idealistas" (a metafísica kantiana, por exemplo, não passa de um magno idealismo; confina-se na pura subjetividade e reduz a "coisa em si" a uma espécie de "fantasma"...).
Em contra disso tudo, ha que afirmar energicamente: a verdade é unitariamente "coisa e razão"; a verdade não consiste em que a coisa seja verdade nem em que a razão conheça a coisa com verdade, mas em que a verdade da razão seja unitariamente a verdade das coisas.
A respeito do conhecimento da verdade racional do Absoluto (metafísica), isso significa o seguinte: a razão não é o "instrumento" nem o "meio" para conhecer o Absoluto; a razão é o Absoluto e o Absoluto é a razão: o Absoluto é Razão Absoluta.
- Se a razão fosse apenas o órganon ou instrumento para conhecer o Absoluto, no melhor dos casos, a razão se apoderaria do Absoluto, lhe extrairia a verdade e obteria a elaboração do Absoluto feita por ela mesma, mas jamais teria o Absoluto.
- Se a razão fosse apenas o meio no qual conhecemos o Absoluto (como a luz na qual conhecemos as coisas), no melhor dos casos, conheceríamos o Absoluto na razão (como as coisas na luz), mas jamais conheceríamos o Absoluto.
- Por conseguinte, não existe dualismo algum: a Razão (o conhecimento verdadeiro do Absoluto) é o Absoluto (o Absolutamente verdadeiro); o Absoluto é a sua própria verdade absoluta, é a Razão Absoluta.
c. A identidade da Razão Absoluta (certeza verdadeira absoluta da razão) e do Absoluto (verdade absoluta da realidade) é o "conceito".
Dizemos que a nossa certeza acerca das coisas é absolutamente verdadeira quando responde na sua interna estrutura ao "conceito" que temos do que tem que ser uma certeza verdadeira; dizemos que as coisas são absolutamente verdadeiras quando respondem à sua própria essência ou "conceito".
Por conseguinte, a verdade transcendental, quer dizer, a identidade da verdade absoluta da realidade (o Absoluto, o Tudo mesmo na sua verdade) e da verdade absoluta da razão (Razão Absoluta) é o "conceito".
O Absoluto ou Razão Absoluta é a sede do conceito; dito de outro modo: o conceito é a certeza de que a razão é toda a realidade!!! Isso significa que há que afirmar duas coisas:
- O conceito é unitariamente conceito formal-objetivo.
+ O conceito não é a re-presentação intelectiva das coisas (como circula por toda a filosofia incluído Kant), porque aqui não se trata dum conceito "sobre" o absoluto, mas dum conceito absoluto em si mesmo.
+ O conceito não é separadamente o "conceito objetivo" e o "conceito formal" da filosofia tradicional; lembra:
- Conceito objetivo, por exemplo, é o conceito duma circunferência, conceito que é idêntico no essencial em todos os geômetras do planeta.
- Conceito formal é o ato concebente da razão no qual concebe, por exemplo, o conceito duma circunferência, ou qualquer outro conceito objetivo.
+ O conceito é unitariamente o conceito objetivo e o conceito formal.
- O conceito é a atividade que concebe (conceito formal) o concebido (conceito objetivo), isto é, o conceito objetivo emergendo do conceito formal ou o conceito formal produzindo o conceito objetivo.
- O conceito é uma unidade viva cuja atividade é conceber o concebido.
- Daí que a razão seja a vida do conceito, a qual não consiste tão só em enunciar caracteres abstratos no ato apreensivo, mas num "esforço interno vital de conceber o concebido".
- A verdade transcendental não é a verdade das proposições lógicas da razão, mas a verdade das proposições "especulativas" da razão.
+ A verdade "penúltima" das proposições lógicas da razão consiste no seguinte:
- Nas proposições lógicas ("sujeito é predicado"), a razão, colocando-se fora do sujeito, atribui um predicado ao conteúdo do sujeito.
- Assim, por exemplo, na proposição lógica "o cachorro é vivente", a razão afirma que a vida é uma propriedade do cachorro.
+ A verdade "transcendental" das proposições especulativas da razão consiste, ao invés, no seguinte:
- Nas proposições especulativas ("predicado é sujeito"), a razão, colocando-se de cheio dentro do predicado, trata de averiguar, por um movimento interno do predicado (a vida do conceito!), como o predicado constitui o sujeito.
- Assim, por exemplo, na proposição especulativa "vivente é o cachorro", a razão afirma que o vivente hic et nunc é este cachorro, isto é, que o sujeito (cachorro) é aquilo que é "graças precisamente" a que o predicado (vivente) o determina internamente.
- Por conseguinte, nas proposiçõees especulativas, os predicados constituem o sujeito, são a vida "conformante" da realidade mesma do sujeito.
- Isto tem um precedente nada menos que em S. Tomás!
* S. Tomás diz que os transcendentais não se dividem, mas que se "contraem" em cada uma das coisas.
* Para Hegel, isto acontece com todo conceito: contrai-se por outros conceitos e por outras determinações a ser de modo determinado o sujeito que tenho diante.
- Por isso a verdade das proposições especulativas é verdade transcendental, porque é uma verdade que conforma as coisas.
* A verdade do concreto (coisa) é sempre o geral (conceito), quer dizer, o concreto (coisa) está constituído pela vida interna do geral (conceito), isto é, pela mútua síntese dos conceitos.
* A razão é a vida interna do conceito (atividade concebente do concebido), o qual envolve unitariamente a certeza verdadeira e a realidade verdadeira.
d. Em virtude dos seis estádios da "dialética da experiência da consciência", a consciência humana se autodescobre finalmente como Razão Absoluta ou Espírito Absoluto ou Absoluto ou Tudo.
Primeiro estádio: "a consciência direta ou consciência-de".
- O homem individual tem consciência-de as coisas, isto é, dá-se conta de que percebe que tem efetivamente diante dele algumas coisas com propriedades determinadas.
- Por exemplo, eu tenho consciência-de este copo d'água, isto é, dou-me-conta-de que percebo este copo d'água existindo perante mim e tendo determinadas propriedades, como forma, brilho, cor, temperatura, dureza, etc.
Segundo estádio: "a auto-consciência".
- Mediante um processo interno, a configuração interna da consciência pode voltar-se sobre si mesma: é a reflexão ou auto-consciência.
- Na autoconsciência já não aparecem para nada as coisas; só aparecem os meus pensamentos acerca das coisas, quer dizer, apareço "eu" com os meus pensamentos e mais nada.
- Mas este eu-pensante ou auto-consciência (sobre o qual está montada a filosofia desde Descartes até Kant) é ainda muito superficial.
+ Com efeito, é uma "cosificação" do eu-pensante, já que consiste em ter-se a si próprio (pensamentos, certezas, dúvidas, etc.) como objeto, do mesmo modo que o copo d'água é objeto da consciência direta.
+ Deste eu-pensante-objeto pode dizer-se tudo o que já disseram as filosofias montadas sobre a "apercepção" (Leibniz, Kant): é um "eu" que acompanha todas as minhas percepções e que se mantém sempre idêntico a si mesmo em todas elas.
- Agora bem, se tiramos do eu-pensante-objeto todos os atos montados sobre ele ficaremos pura e simplesmente com a forma radical e geral da identidade do eu-pensante consigo mesmo: eis a filosofia de Johann Gottlieb Fichte (Rammenau, Alemanha, 1762-1814).
+ Arranca da identidade "A é A", quer dizer, do eu-pensante idêntico a si mesmo, e, a partir duma série de divisões, quer obter a identidade "A é não-A", quer dizer, o eu-pensante é o não-eu-pensante, ou seja, o mundo inteiro.
+ Mas, em cada divisão, vai-se abrindo a escisão, de tal modo que Fichte nunca chega a reconquistar a identidade postulada no princípio, porque a identidade "A é A" é vaga e formalista.
+ Fichte não percebeu, com efeito, que desde o princípio os pensamentos do eu-pensante são unitariamente pensamentos do eu-pensante e pensamentos das coisas, porque com os seus pensamentos pensa as coisas com verdade.
- Seja como for, a consciência (consciência-de e auto-consciência) é apenas o "fenômeno" da Razão Absoluta; é só a maneira como a Razão Absoluta "aparece"; é só a Razão Absoluta "aparecendo" em forma de consciência.
- Nos estádios sucessivos da dialética da experiência da consciência, esta vai chegar desde o "aparecer" da Razão Absoluta (o saber que envolve a unidade da razão e das coisas) ao "ser" da Razão Absoluta (o saber que sabe que é a unidade da razão e das coisas).
Terceiro estádio: a razão como "identidade da certeza verdadeira e da verdade das coisas".
- A auto-consciência descobre que não é apenas que as coisas sejam em si e que o eu-pensante seja uma coisa em si a mais que as conhece com verdade, mas que as coisas são verdadeiras para o eu-pensante na medida em que são conhecidas com verdade pelo eu-pensante.
- A auto-consciência se descobre a si mesma como razão, isto é, como identidade da certeza verdadeira e da verdade das coisas; essa identidade é justamente a essência da razão.
Quarto estádio: a razão como "unidade viva" da certeza verdadeira e da verdade das coisas.
- A identidade certeza-verdadeira-verdade-das-coisas não é uma identidade morta como se a razão, tendo, de um lado, as coisas que são em si e, de outro lado, o eu-pensante que é em si e para si, fosse capaz de criar um conceito abstrato que abrange as coisas e o eu-pensante.
- A identidade certeza-verdadeira-verdade-das-coisas é uma unidade viva, é a vida real interna do conceito.
- A possível ulterior dualidade abstrata coisas/eu-pensante emerge da anterior índole unitária viva interna do conceito.
Quinto estádio: a razão como "espirito".
- A razão enquanto "vida", isto é, enquanto unidade viva interna do conceito, é justamente "espírito".
- Espírito é aquilo cujo ser é atividade própria (atuosidade) que consiste num processo absoluto.
Sexto estádio: a razão como "Razão Absoluta ou Espírito Absoluto ou o Absoluto ou o Tudo".
- Ao final dos cinco estádios anteriores, a razão ou espírito passa do "fenômeno" ao "ser", ou seja, transcende as diversas formas de "aparição" da Razão Absoluta e se descobre a si mesma como aquilo que "é" em realidade: a Razão Absoluta ou Espírito Absoluto ou o Absoluto ou o Tudo.
- Quer dizer, neste último estádio, a razão ou espírito se descobre a si mesma sendo o Conceito Absoluto de si mesma.
- A verdade transcendental não é o conceito objetivo analítico (Leibniz), nem o conceito objetivo sintético (Kant); o princípio da verdade transcendental não é o eu-pensante (toda a filosofia moderna); a verdade transcendental é o seu próprio princípio: a Razão Absoluta, isto é, a vida interna do Espírito Absoluto.
- Neste contexto estão as tremendas expressões de Hegel:
+ "Ser é pensar", quer dizer, ser significa ser pensado, ser conceituado; não há diferença alguma entre o conceito e o ser: as coisas são a realização de pensar concebentemente o concebido.
+ "Em realidade, as formas do conceito são o espírito vivo do real", quer dizer, só é real aquilo que é verdadeiro pela força das formas do conceito, ou seja, aquilo que é concebido; o resto será um caos, mas não algo real.
+ "A razão lógica é o substancial ou o real", quer dizer, na visão do ser e da realidade tomados simplesmente desde o pensar concebente do ser e da realidade, o ser e o real são o concebido pela razão.
B. A estrutura interna da razão (A ciência da Lógica).
1. Caracteres essenciais da razão.
a. A essência da razão, ou seja, a unidade do objetivo (verdade das coisas) e do sujetivo (certeza verdadeira), não é uma unidade morta, mas "viva".
Unidade "morta" é, por exemplo, a unidade de indiferença, tão cara a Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (Leonberg, Alemanha, 1775-1854), segundo a qual, natureza e espírito, permanecendo distintos, são o mesmo porque são subsumidos por um ato de abstração na unidade dum conceito geral indiferente a ambos.
Duma unidade morta, como a unidade indiferente, nunca sairá nada: é uma unidade ou identidade "vazia" como a noite em que todos os gatos são pardos...
A unidade do objetivo (verdade das coisas) e do sujetivo (certeza verdadeira) é uma unidade "viva", porque é uma unidade que pela sua própria e interna índole faz di-ferir desde ela mesma os termos (distintos, mas não separados) em que se diferencia.
b. A essência da razão, ou seja, a unidade viva do objetivo (verdade das coisas) e do sujetivo (certeza verdadeira) é o conceito ou logos.
A lógica moderna que trata das formas lógicas ignorando completamente os conteúdos dessas formas é uma ciência perfeitamente quimérica e falsa.
A lógica clássica que afirma a mesmidade (tautón) do logos e das coisas, mas deixando fora dessa mesmidade a realidade (ser) do logos enquanto logos e das coisas enquanto coisas, é completamente insuficiente.
Há que afirmar energicamente que a razão subjetiva (lógica da razão) e a realidade objetiva (lógica das coisas) são dois momentos que emergem do desenvolvimento da mesmidade, do tautón, em que consiste a unidade viva interna do conceito ou logos.
Daí que a Lógica, como ciência do logos, pertença formalmente à Metafísica, porque é um momento formal da realidade mesma.
Aristóteles tem responsabilidade nesta conceituação hegeliana... Aristóteles não ve o logos como algo externo ao âmbito transcendental do ser; ao contrário, segundo ele, a estrutura do logos pertence em certo modo à estrutura do ser...; esta idéia aristotélica dá em Hegel o seu fruto maduro...
c. A essência da razão, ou seja, a unidade viva do objetivo (verdade das coisas) e do sujetivo (certeza verdadeira), que é o conceito ou logos, consiste em "movimento".
A vida própria e formal do logos consiste no movimento interno do conceito (movimento unitário do objetivo e do subjetivo) que constitui e conforma ativamente a realidade, partindo de determinações que expressa em predicados.
- O logos ou conceito afirma que um predicado (vivente, por exemplo) constitui hic et nunc um sujeito (cachorro, por exemplo).
- Mas esse sujeito (cachorro) é outros muitos predicados que não são o predicado afirmado (vivente); esses outros muitos predicados em certo modo negam ou contradizem ou refutam aquilo que o sujeito (cachorro) é como predicado (vivente).
Daí que todo conceito ou logos, em virtude da sua própria índole, seja internamente auto-movente e constitutivamente in-quieto.
O logos ou conceito está em constante movimento porque nunca realiza plenariamente aquilo que é, porque nenhum sistema de predicados constitui adequada e totalmente a realidade do sujeito, porque o pensar concebente nunca chega ao termo final do concebido e da sua conceituação.
d. A essência da razão, ou seja, a unidade viva do objetivo (verdade das coisas) e do sujetivo (certeza verdadeira), que é o conceito ou logos, consiste em movimento "dialético".
O movimento interno do logos ou conceito é a unidade dinâmica dum processo.
- O logos só é algo estático quando é considerado como algo concluso, fixo, chegado ao repouso; mas isso é uma abstração que o movimento interno do logos faz de si mesmo para fixar em termos estáticos aquilo que é: a unidade "dinâmica" dum processo.
- Consideremos um exemplo.
+ O logos afirma que os predicados bolota, flor, árvore, carvalho, etc., constituem hic et nunc um sujeito.
+ Cada predicado refuta, nega, contradiz, o anterior por insuficiente.
+ Mas no fundo disso tudo há uma unidade dinâmica, o processo lógico carvalhino, que dá lugar à bolota, à flor, à árvore, ao carvalho, etc.
+ Nessa unidade dinâmica não há refutação alguma: o verdadeiro é o tudo, isto é, a idêntica unidade processual em que consiste o logos ou conceito como pensar concebente.
+ Só há apariência de estaticidade se considerarmos abstratamente (como termos resultantes e desglossados do movimento) os termos que existem no movimento .
A unidade dinâmica processual em que consiste o movimento interno vivo do logos ou conceito é "dialética".
- Consideremos um exemplo.
+ O logos, o pensar concebente, no seu movimento interno vivo, concebe um conceito: o conceito de "ser".
+ Mas, no movimento interno vivo do seu pensar concebente, o logos vai encontrando o seguinte:
- O ser não é isto nem aquilo (não é pesado, não é quente, não é corado, não é sonoro, não é triangular, não é bom, não é mau, etc.).
- Por conseguinte, o ser é absolutamente indeterminado.
- Mas, então, pensar o ser equivale a não pensar em nada: o ser e o nada são o mesmo.
- No entanto, isso é impossível; portanto, o conceito em que o logos tem concebido o ser tem que reassumir de alguma maneira o momento que chamamos nada.
- O resultado, por assim dizer, dessa reassunção é o conceito de "devir".
- Pois bem, o movimento interno vivo do logos justamente enquanto devir é a estrutura "dialética" do logos.
- A dialética do logos não é a dialética clássica nem a dialética kantiana.
+ Não é a dialética classica.
- A dialética clássica é uma discussão ou enfrentamento de duas posições antinômicas que tentam suprimir-se reciprocamente, porque cada uma considera verdadeira a própria e falsa a contrária.
- Pois bem, a dialética do logos -como vamos ver- não consiste em eliminar como falso um dos dois termos antinômicos e em ficar como verdadeiro com o outro.
+ Não é a dialética kantiana.
- A dialética kantiana é a atitude intelectual que fica nas antinomias às que conduz o que Kant chama de "sonho da razão", isto é, a metafísica especulativa da razão pura, porque as considera insolúveis (por exemplo: mundo finito ou infinito, mundo com começo no tempo ou sem começo no tempo, matéria divisível ao infinito ou não divisível ao infinito, etc.).
- Pois bem, a dialética do logos -como vamos ver- não fica na antinomia.
- A dialética do logos consiste justamente não em suprimir a antinomia eliminando um oposto, nem em ficar na antinomia, mas justamente em "sair-se-de" (Aufheben) a antinomia "superando por elevação" (síntese) os dois aparentes opostos antinômicos (tese e antítese).
+ A tese é sempre insustentável porque é uma determinação do logos necessariamente inadequada.
+ Aí intervém a antítese, o momento do não-ser, a negatividade do real, o monstruoso poder do negativo, que força o logos a continuar o seu processo concebente.
+ Mas essa espécie de contradição tese/antítese é só a expressão da radical e constitutiva inquietude do movimento vivo interno do logos em si mesmo.
- A contradição só aparece quando os diversos passos desse movimento dinâmico do logos são considerados estaticamente.
- É algo assim como o que acontece com os famosos paradoxos de Zeno de Eléia (Eléia, Itália Meridional, 490-430 aC).
* Pensava Zeno, por exemplo, que fosse impossível ir dum ponto a outro num contínuo, porque antes era preciso passar pelo ponto meio, e antes ainda por outro ponto meio entre este e o inicial, e assim ao infinito, de tal modo que não se chega jamais.
* Pois bem, este paradoxo de Zeno aparece justamente ao identificar a continuidade dinâmica do movimento com a soma estática dos infinitos pontos do contínuo da trajetória desse movimento.
- Do mesmo modo, a contradição tese/antítese só aparece no movimento do logos quando considero como termos quiescentes e estáticos aquilo que são apenas aspectos ou momentos do movimento do logos.
+ A síntese do logos não é nem dedução nem associação (síntese dialética de Platão) nem reunião (síntese transcendental de Kant), porque não é a "resultante" da tese e da antítese, mas uma síntese "originaria e originante".
- A síntese do logos não é uma síntese dedutiva, ou seja, não consiste em tirar uma conclusão (síntese) de duas premissas (tese e antítese).
- A síntese do logos não é a síntese associativa ascendente da qual nos fala Platão.
* Diz que há dois modos de "inteligir" as Idéias separadas:
¬ Dianoeîn, ou seja, descer desde as Idéias separadas ao mundo sensível para ver como as Idéias separadas são os supostos primários (hipó-teses) desde os quais são inteligidas as coisas reais.
¬ Dialégein, ou seja, ascender desde a multidão das Idéias separadas àquilo que constitui a unidade associativa primária, radical e suprema (absoluta) dessas Idéias.
* Pois bem, a síntese dialética do logos não consiste em ascender desde a tese e a antítese a uma unidade associativa de ambas; pelo contrário, a síntese dialética do logos é descendente-ascendente, como vamos dizer.
- A síntese transcendental de Kant, como sabemos, é, em definitiva, uma "reunião" do categorial e do dado; mas a síntese dialética de logos jamais é o resultado duma reunião da tese e da antítese.
- A síntese dialética do logos é "originária e originante", ou seja, uma espécie de unidade larvada "prévia" que se expande naturalmente em dois termos, os quais, considerados estática e quiescentemente parecem-nos antitéticos.
* Não se trata-se de que, por uma espécie de truque, a unidade esteja oculta em baixo dos dois termos antitéticos.
* Trata-se de que esses dos termos antitéticos são absolutamente necessários para que a unidade sintética originária exista formalmente como tal.
+ É que o pensamento de Hegel não é um pensamento linear, mas "circular" (sem ter em conta isto é impossível entendê-lo); lembremos que parte de que o Absoluto é ao mesmo tempo princípio e resultado...
- A síntese é princípio: é o princípio primário originante da diversidade da tese e da antítese.
- Mas a síntese é resultado: desde e através da tese e da antítese, o movimento dialético do logos volta à síntese de modo que resulta não algo que antes não havia, mas algo que é mais plenamente aquilo que já era: o "resultado de si mesma".
- A síntese do movimento dialético entendida como princípio e resultado é justamente a quinta-essência de toda a metafísica de Hegel.
+ O movimento dialético do logos é uma espécie de gigantesco auto-morfismo no qual uma forma vai autoconformando-se de tal modo que não é o resultado dos termos em que se conforma, mas sem eles não teria a plenitude do que efetivamente é.
+ Neste sentido entende Hegel a entelékheia (ato) de Aristóteles: o movimento dialético do logos é um télos (acabamento) que estava já incluído no arkhé (princípio); por conseguinte, todo o movimento dialético consiste simplesmente em "ex-plicitar" e "ex-por" o caráter entelégico que tem a plenitude da síntese originante.
+ A dialética do logos é a essência do movimento vivo interno da Razão Absoluta: pôr constantemente dois termos distintos que, por diferenciação da unidade, vão aparecendo em forma de tese e antítese, e que ficam superados em aquilo do qual nunca se separaram: a unidade primária e primigênia da que procediam.
+ Por isso, pode-nos dizer Hegel que ser e nada são apenas duas abstrações, já que o único concreto é o devir!
+ Hegel é um dos poucos pensadores da história que foram capazes de viver em puro pensamento concebente; viveu seguramente num perpétuo "festim" intelectivo, porque em cada momento devia ter a íntima e irrefragável "fruição" de inteligir... Que erre... essa é outra questão...
2. O marcha processual da razão desde o ser até à Idéia.
a. A Lógica.
A Lógica é marcha processual da razão enquanto Razão Absoluta, ou seja, enquanto o Absoluto.
O Absoluto, a Razão Absoluta, pode revestir diversas formas, mas sempre, ainda que nem sempre o tinha sabido, é o Absoluto, a Razão Absoluta.
Por isso a Lógica, em definitiva, não é outra coisa senão a ex-posição do Espírito de Deus!
b. O princípio da Lógica: ser, não-ser, devir.
No princípio da Lógica, a razão concebe algo que "é", quer dizer, o "ser".
Isto conduz à razão a dizer que o ser é o mesmo que o "nada", não porque sejam formalmente idênticos (seria absurdo), mas porque ser e nada são dois termos abstratos que ficam superados na única concreção que é o "devir".
Da dialética do ser e do não-ser, da concreção interna e dialética do devir, saem todos os conteúdos da metafísica clássica ou ontologia.
c. O decurso da Lógica.
Por um movimento interno e dialético de "interiorização" do conceito, chega um momento em que o conceito objetivo (o mundo inteiro, o ser, a essência, a reflexão, etc.) se apresenta à razão em forma de conceito subjetivo (mundo subjetivo).
Nesse movimento interno e dialético de interiorização ou lembrança (Er-innerung), o conceito subjetivo se manifesta como algo que primitivamente era, mas que ainda não apreende na sua totalidade; daí que tenha que proseguir o seu movimento dialético até alcançar o seu termo final.
d. O termo final da Lógica.
O conceito que se sabe adequadamente a si mesmo é a Idéia, isto é, o conceito que sabe adequadamente ser a identidade da verdade das coisas e da certeza verdadeira.
- Pedro da Fonseca (Cortizada, Portugal, 1528-1599) e Francisco Suárez dizem que o conhecimento de todas as coisas possíveis e reais num só conceito formal é algo exclusivo de Deus.
- Exatamente essa é a Idéia da Razão Absoluta de Hegel: a razão que se sabe a si mesma como ato formal concebente da realidade de si mesmo e das coisas.
Desde este ponto de vista, a metafísica de Hegel envolve um momento de identidade da razão humana com a divina, mas também um momento de diversidade: a finitude da razão humana está em que ainda não é a Idéia; tem uma manifestação da Idéia em forma de consciência, e chega à Idéia penosamente num ato de intelecção.
e. A Lógica é Metafísica e Teologia.
A Lógica envolve a estrutura última e radical do ente e da razão na sua unidade absoluta, que é o conceito; esta é a Metafísica que sempre pretendeu constituir-se em ciência absoluta, mas que sempre esteve em aporia.
Hegel apóia na história esta sua conceituação da Metafísica.
- Hegel é o primeiro filósofo que fez uma história da filosofia e o primeiro que fez da história da filosofia parte do seu próprio sistema filosófico.
- A Metafísica começou com o espírito de Tales e finalmente, depois de 2.500 anos de trabalho, o Espírito Absoluto chega a conhecer-se a si mesmo.
A Lógica, em definitiva, é Teologia.
C. A realização da razão (Enciclopedia das ciências filosóficas).
1. A realização da razão ou determinação da Idéia pode seguir três caminhos diferentes.
a. O primeiro, que temos já visto, é a "Lógica devindo", ou seja, a razão que vai se descobrindo a si mesma como Idéia, como Espírito Absoluto, ou seja, como identidade da realidade e da subjetividade.
b O segundo e o terceiro são os que temos que ver agora:
O segundo é a razão realizando-se "fora de si mesma", ou seja, a criação ou natureza.
O terceiro é a razão voltando "para si mesma" desde a posição das coisas, ou seja, o espírito.
2. A criação ou natureza, quer dizer, a razão realizada fora de si.
a. Os três conceitos básicos da conceituação hegeliana da criação: posição, alienação, mediação.
A criação não é estritamente produção de algo, mas "posição" de algo.
A criação é "alienação".
- A razão, a Idéia, o Espírito Absoluto, não deixando de ser quem é, põe algo outro "fora de si"; a criação, portanto, é uma "exteriorização", uma espécie de realização ad extra do Espírito Absoluto.
- Mas isso não é suficiente (!); pelo seu ato de posição de algo outro fora de si, o Espírito Absoluto mesmo se converte em "outro frente a si mesmo"; a criação é rigorosa "alienação" do Espírito Absoluto (!): a essência do Espírito Absoluto fica alienada em aquilo que põe fora de si.
A criação é "mediação".
- A alienação criativa não fica às costas do Espírito Absoluto, mas é uma ação que executa o Espírito Absoluto para (mediação) poder entrar em si mesmo e ser si mesmo para si mesmo.
- Resulta, então, que, com a criação, o Espírito Absoluto o único que faz é entrar em si mesmo desde fora de si mesmo.
b. A natureza é o Espírito Absoluto convertido em outro.
A natureza é a razão, mas no seu ser outro.
Uma parede, por exemplo, não é "formalmente" a razão divina nem a minha razão, mas é essa razão "feita outro", "convertida em outro".
c. A natureza é "Idéia intuinte divina".
Hegel recebe a distinção da teologia tradicional de dois tipos de intelecção divina:
- Ciência de simples inteligência: ao conhecer-se a si mesmo, Deus conhece todas as coisas que podiam ter sido, que estão como possíveis na sua inteligência.
- Ciência de visão: Deus conhece as coisas que efetivamente quis criar.
Este "ver" divino, carregado de idealismo, constitui para Hegel a "idéia intuinte divina": a natureza é a Idéia intuinte divina, ou seja, a Razão Absoluta de Deus vendo-se a si mesmo fora de si mesmo.
d. A natureza, enquanto termo da Idéia intuinte divina, é "exterioridade".
A natureza, termo da Idéia intuinte divina, não é um "objeto" que esta "fez", mas alguma entidade deve ter para poder ser termo da Idéia intuinte divina; pois bem, essa entidade é "exterioridade".
Agora bem, como se compagina esta exterioridade com a ciência a priori da razão? A resposta de Hegel aproveita a filosofia de Kant.
- Kant dizia:
+ A nossa intuição sensível nos dá algo que não somos nós.
+ Mas, para isso, é necessária a nossa estrutura intuinte a priori que são as formas do tempo e do espaço (intuição pura).
+ O espaço a priori, por conseguinte, tem dois momentos:
- Enquanto espaço, envolve uma exterioridade do objeto a respeito do sujeito e das objetos entre si.
- Enquanto a priori, a unidade do espaço está "posta" pela intuição pura.
- Hegel diz: o espaço é uma espécie de matéria inteligível posta a priori pelo próprio espírito; nisso consiste a natureza enquanto exterioridade.
+ A Idéia intuinte divina põe desde si mesma a multiplicidade real em que consiste a exterioridade.
+ O espaço e todos os dados da intuição são a matéria que põe a Idéia intuinte divina como algo fora de si; isso é a natureza.
e. A natureza pode ser considerada desde três pontos de vista.
Singularidade (isolamento): é o momento da natureza enquanto exterioridade dumas partes a respeito das outras; é a natureza como sistema de singularidades (objeto da Mecânica).
Individualidade (determinação): é o momento da natureza pelo qual cada singularidade tem uma peculiaridade interna (objeto da Física).
Organismo: é o momento da natureza como uma atividade que reverte sobre si mesma (objeto da Física Orgânica).
f. A natureza não se opõe nem ao artificial nem ao fortuito nem a Deus; a natureza enquanto exterioridade se opõe ao espírito, que é interioridade.
A metafísica grega opõe o natural ao artificial.
- Natureza (physis) é a substância dotada dumas capacidades internas para ter moções internas; os seres que possuem essa physis são physei ónta (seres naturais).
- O natural se opõe ao artificial que é a realização duma idéia que não está na matéria mesma, mas na mente do artífice; é um ser, mas um ser artificial (tekhne ón), ou seja, entes que produz o homem e que não têm aquelas capacidades naturais.
A metafísica, de Galileu Galilei (Pisa, Itália, 1564-1642) a Kant opõe o natural ao fortuito.
- Natureza é o sistema de leis (leges naturae) pelas que, dados uns antecedentes, pode-se enunciar quais vão ser os conseqüentes.
- O natural, portanto, opõe-se ao fortuito, ao azaroso.
A metafísica medieval opõe a natureza a Deus.
- A natureza, enquanto atividade total do mundo pela que vão se produzindo cada uma das coisas naturais é natura naturans.
- A natureza, enquanto conjunto de entes, é natura naturata.
- Em ambos os sentidos, a natureza se opõe a Deus.
- Algumas metafísicas medievais fazem de Deus natura naturans, mas ainda assim há diferença entre ambos, porque Deus é Deus sem ser natura naturans.
Tudo isso é insuficiente; a natureza, enquanto exterioridade, se opõe ao espírito, que é interioridade; mas só há uma única realidade: o Espírito Absoluto que sai de si mesmo (exterioridade ou natureza) para entrar em si mesmo (interioridade ou espírito).
3. A espírito, quer dizer, a razão voltando a si.
a. O espírito é liberdade.
Espírito é liberdade, ou seja, possuir-se a si mesmo estando dentro de si mesmo.
A liberdade ou espírito não é algo que está "junto" à natureza, mas algo que é justamente "por" a natureza, no sentido de que a natureza é a mediação para que possa existir o espírito.
O espírito existe primariamente como libertação da natureza, da exterioridade; com isso aparece imediatamente a entrada do espírito em si mesmo como interioridade.
b. Os três estádios da evolução do espírito.
O espírito finito subjetivo (alma).
- Espírito finito subjetivo é o espírito na forma duma relação consigo mesmo.
- Começa a brotar no seio da natureza como uma libertação dela.
- Na sua função suprema, se dá conta de que não é propriamente natureza: aparece a sua própria realidade e a realidade das coisas nisso que chamamos "consciência".
O espírito finito objetivo (a grande criação hegeliana).
- Espírito finito objetivo é o espírito na forma da realidade que o espírito tem no mundo, portanto, algo distinto e superior ao espírito subjetivo.
+ Não é uma espécie de consciência social ou pública; consciência só a têm os indivíduos; a consciência do espírito objetivo a tem cada um dos sujeitos que estão dentro dele.
+ Por todas as suas dimensões (e não só pela consciência), os indivíduos são o suporte do espírito objetivo; mas este não é determinado por aqueles, ao contrário.
- O espírito objetivo não está fora dos indivíduos, mas também não emerge deles.
- Os indivíduos fazem aparecer dialeticamente ad extra o que é o espírito objetivo.
- Daí que os indivíduos, que compoem o espírito objetivo como suportes dele, são os acidentes do espírito objetivo que é o substancial. (Isto pode parecer terrível, mas é o pivote de toda a filosofia de Hegel acerca do espírito!)
+ O espírito objetivo é a manifestação do Espírito Absoluto (que é em si e para si) sem ter entrado ainda na sua dimensão de "para si", ou seja, que só existe ainda "em si".
+ O espírito objetivo é a manifestação (por alienação e mediação) do Espírito Absoluto em que Deus consiste; é o espírito universal, o conceito objetivo que Deus tem de si mesmo.
+ Na medida em que esse espírito universal sofre determinações geográficas e temporais distintas, dá lugar ao "espírito do povo".
- A dialética interna e estrutural do espírito objetivo: a história.
+ O espírito objetivo enquanto que está realizado "ad extra" em cada um dos indivíduos, faz que brote a forma objetiva do espírito dentro de cada qual; esta dialética é o que formalmente constitui a "história".
+ A história é o processo temporal do espírito objetivo, o qual tem três caracteres:
- Variação: o espírito objetivo está em constante inquiescência, se não seria natureza morta.
- Rejuvenescimento.
* Em todas essas variações, o espírito objetivo, que parece morrer, renasce de si mesmo num processo de "rejuvenescimento".
* A morte natural do espírito dum povo consiste na sua nulidade política.
* Mas, como ave Fénix, o espírito objetivo sempre renasce das cinzas e a história continua sua marcha noutro lugar.
- Razão.
* A dialética histórica é a razão (pensar concebente) do tempo.
* A razão domina a história, mas não desde fora; a razão é interna e intrínseca à história mesma; a história é a razão mesma convertida na forma objetiva de história; a história é a história interna que consiste na razão que se realiza temporalmente.
* Para este conceito de razão na história, Hegel serviu-se de duas tradições filosóficas reelaboradas por ele: a idéia da razão providente e a idéia da razão teleológica.
¬ A providência é uma razão que governa o mundo; mas, dito assim, é uma razão subjetiva, ou seja, a razão que tem o sujeito chamado Deus por ter feito o mundo e uns homens dirigidos por Ele duma forma determinada; a verdadeira razão providente é a razão inscrita no seio mesmo do mundo.
¬ A razão é o télos (acabamento) do mundo; em virtude disso, a dialética da história do mundo é o caminho para a entelékheia (ato) do espírito, que é justamente o Espírito Absoluto.
* A história parte dum núcleo germinal e é evolução (não biológica); esta evolução é obra da razão; todas as grandes criações da história estão pré-incluídas no germe do qual saem dialeticamente; na história não se produz nenhuma inovação radical!
- Acerca da relação do espírito objetivo com o espírito subjetivo, Hegel lança afirmações que fazem tremer.
+ Quando e espírito objetivo se põe em marcha, o espírito subjetivo nada tem a fazer...
+ Os indivíduos se conservam simplesmente como lembranças na história...
+ Os indivíduos por si só não fazem a história; a fazem transportados pelo história, pelo espírito objetivo...
+ A história inteira poderia escrever-se sem pronunciar um só nome próprio.
+ A história não pode ser feita sem os indivíduos; por isso a razão faz-lhes crêr (o ardil da razão) que trabalham pelo seu interesse individual, quando em realidade trabalham para o espírito objetivo...; o mesmo acontece com a geração: os indivíduos se lançam a gerar por razões subjetivas; em realidade a natureza persegue a conservação da espécie...
O Espírito infinito absoluto é o espírito acabando de entrar em si mesmo e existindo eternamente consigo mesmo e para si mesmo.
- Neste chegar a ser si mesmo consiste a própria infinitude do Espírito absoluto.
- Mais uma vez, o princípio enquanto princípio é o resultado.
- Neste caráter cíclico está o devir em que consiste a entidade mesma do Espírito absoluto.
- A dialética da infinitude é a vida mesma da Idéia, do Espírito absoluto.
D. A chave de toda a metafísica de Hegel é a identidade de panteísmo e de idealismo.
1. Eis algumas afirmações panteístas de Hegel.
a. Se a essência de Deus não fosse a essência do homem e da natureza, a essência de Deus seria justamente uma essência que não é nada.
b. Deus está presente em todas partes, está em cada um dos homens, aparece na consciência de cada qual; este é o espírito universal.
c. A história universal é a representação do processo absoluto divino do espírito nas suas supremas configurações, nessas gradações pelas quais Deus certamente adquire a verdade sobre si mesmo.
2. Mas a peculiaridade do panteísmo de Hegel consiste precisamente na sua identidade com o idealismo.
a. Podemos plasmar a metafísica de Hegel nesta frase: a pura atuosidade do Espírito Absoluto põe na atividade subjetiva algo objetivo que, no entanto, só tem realidade pela posição do sujeito.
b. Pois bem, se considerássemos isoladamente a vertente objetiva ou a vertente subjetiva, a metafísica de Hegel não seria rigorosamente panteista.
c. Agora bem, a metafísica de Hegel é perfeitamente panteista porque o objetivo é justamente um produto racional do pensar subjetivo (idealismo).
d. Dito de outro modo: o panteismo de Hegel é precisamente o panteismo da atividade racional (idealismo) em que Deus consiste.
Deus é autofieri. (auto-conformação).
Que o autofieri em que Deus consiste seja de caráter "racional" é o que define o idealismo de Hegel.
Que o autofieri em que Deus consiste seja "toda a realidade" é o que define o panteismo de Hegel.
e. Daí que, para Hegel, o Absoluto seja justamente a identidade entre idealismo e panteismo, e a história inteira seja uma autoconformação do Absoluto.
f. Desde a Lógica, a metafísica de Hegel se resolve no "idealismo" (a realidade última é Idéia); desde o processo da criação, a metafísica de Hegel se resolve no "panteismo" (a Idéia é Toda a realidade).
VIII
Os dois erros graves da metafísica ocidental, segundo Xavier Zubiri:
A logificação da inteligência
e a entificação da realidade
A. Da logificação da inteligência à inteligificação do logos.
1. A metafísica ocidental é um gigantesco processo de logificação da inteligência, cada vez mais acentuado.
a. O problema radical que subjaz em toda a metafísica ocidental é o problema da inteligência.
b. Pois bem, nesse aspecto, a metafísica ocidental é simplesmente a história da logificação, cada vez maior, da inteligência: com efeito, a metafísica ocidental começou, na Grécia, falando da inteligência como inteligência sensível "concebente", e acabou por falar da inteligência, em Hegel, como "razão absoluta".
2. É preciso reconduzir a razão absoluta à inteligência concebente, e conduzir a inteligência sensível concebente à inteligência senciente que ulteriormente se desdobra em logos e razão.
a. Da razão absoluta, isto é, da razão que repousa sobre si mesma, à inteligência.
A razão absoluta de Hegel, quer dizer, o pensar concebente montado sobre si mesmo, que é unitariamente a certeza verdadeira e a realidade verdadeira, recolhe em boa parte a herança de Kant, isto é, a razão que com as suas categorias a priori cria os objetos a partir dos dados das coisas.
Ambas conceituações da inteligência como razão que repousa realmente sobre si mesma (bastante com Kant e totalmente com Hegel) são completamente inadmissíveis.
- Com efeito, sem termo real perante a razão, não há razão.
+ Hegel pretende uma espécie de geração dialética por conceitos da razão; mas geração de que?; dum termo real que está aí diante?; não; o termo real, nos diz Hegel, não está aí diante.
+ Mas, se o termo real não está aí diante, o que é aquilo que dá direção, marcha, adequação ou inadequação ao movimento interno da razão na elaboração de seus conceitos?; uma espécie de inquietude interna, nos diz Hegel, que produz o movimento interno da razão por si mesmo.
+ Pois bem, essa inquietude que conduz o movimento interno da razão a superar as etapas dialéticas de suas determinações progressivas não é concebível se não há um termo real diante.
- Se temos diante um cahorro, por exemplo, podemos fazer uma dialética do que for, por exemplo, das substâncias viventes caninas, e teremos um pensar concebente.
- Mas se não temos cachorro, donde sai o termo desse movimento dialético da razão no qual está a suma concreção enquanto todo o resto são momentos abstratos?
+ Nesse mesmo problema de Hegel tinha já atolado Platão.
- Com a sua dialética das idéias separadas pretendia chegar mediante divisões e subdivisões até o indivíduo concreto que está aí diante.
- No entanto, nunca conseguiu passar da última espécie, do átomon, do eidos.
- Agora bem, daí até o indivíduo concreto que está aí na frente falta um bom trecho...; por isso o seu discípulo Aristóteles já disse que o indivíduo não se pode captar por meio de idéias: está aí, perante a vista.
+ Pelo menos Platão queria chegar a um objeto que tinha diante; para Hegel, a dialética fica essencialmente suspendida sobre si mesma porque não há termo real anterior a ela...; isso é simplesmente absurdo.
- A razão não repousa sobre si mesma porque, ao menos, repousa sobre a inteligência.
+ A razão, para Hegel, se opõe à inteligência, isto é, a razão absoluta se opõe à consciência-de as coisas.
+ Admitimos, certamente, não uma oposição, mas sim uma estrita distinção entre inteligência e razão.
- Com a inteligência o homem "está" inteligindo as coisas do mesmo modo que "está" vendo-as com os olhos e ouvindo-as com os ouvidos.
- A razão, efetivamente é algo distinto da inteligência.
* Não porque a razão seja, como pretende Hegel, razão absoluta que consiste em conceber o termo real sem termo real diante dela, coisa inadmissível, como temos dito.
* Mas porque a razão é inteligência "inquirente" (intellectus "quaerens").
¬ A razão é algo que "vai para", é um ir, uma marcha, não algo em que se está, mas algo em que "nos movemos para".
¬ Kant viu claramente algo disto quando disse que há que determinar o interesse (?) que move à razão a transcender a inteligência.
¬ A razão é intrínseca, essencial e constitutivamente um inteligir "quaerens", um inteligir que busca, uma "inteligência inquirente".
+ Por conseguinte, a razão não repousa sobre si mesma, repousa pelo menos sobre algo prévio e mais radical que é a inteligência.
b. Da inteligência sensível concebente à inteligência.
A inteligência, à qual nos remite a razão, foi entendida sempre pela metafísica clássica como "inteligência sensível concebente", ou seja, como inteligência que concebe idéias ou conceitos das coisas presentadas no sentir; toda a metafísica ocidental, em definitiva, considera como inconcusso que o orto da inteligência humana está no orto do logos (conceito e juízo).
- Os sentidos nos presentam as coisas.
- A inteligência, depois, elabora, constrói, concebe, re-presenta idéias ou conceitos das coisas presentadas nos sentidos.
Pois bem, onde está dito que a função primária e radical da inteligência seja forjar conceitos e juízos?; esta conceituação clássica da inteligência como inteligência sensível concebente é radicalmente insuficiente porque conceber não é a função primária e radical da inteligência.
- Seria-o se conceber fosse algo parecido a passear a inteligência, a modo dum espelho, diante da realidade e obter assim uns conceitos do mesmo modo que a vista percebe umas cores e o ouvido uns sons.
- Mas isto não é assim.
+ Os conceitos, até os mais rudimentares, são algo que a inteligência forja, conquista e cria "em movimento", na intelecção dinâmica em que consiste o "logos".
+ Conceber não é a função primária do inteligir, mas um modo ulterior da inteligência para inteligir as coisas.
- Alguém poderia objetar que a humanidade sempre utilizou conceitos, ainda que sem sabê-lo; é certo, mas há um longíssimo trecho entre o que podia ser um conceito em tempo de Hammurabi ou de Abraão (século XIII aC), e a confiança extrema na conceituação lógica que impera no mundo ocidental desde os gregos...
- Alguém poderia objetar ainda que pelo menos há um conceito não forjado pela inteligência: o conceito do ente, o conceito de "o que é"; mas justamente aí está o grande problema.
+ Onde está dito que o conceito de ente seja algo "dado" e não "elaborado" como todos os demais conceitos que forja a inteligência?
+ A operação do logos (modo ulterior de inteligência) para conceituar o ente está montada sobre a apreensão primordial do ente pela inteligência; para que a inteligência possa conceituar o ser, "primeiro" tem que apreendê-lo de alguma maneira.
Portanto, a intelecção sensível concebente, à qual nos remite a intelecção racional, por sua vez nos remite ao ato primário da inteligência; em lugar de logificar a inteligência, ha que inteligificar o logos.
c. Solução ao problema radical da inteligência: a conceituação da inteligência não como inteligência sensível, mas como inteligência senciente (ver Curso de Filosofia da Intelecção).
A história da metafísica ocidental é a história das vicissitudes filosóficas da oposição sentir/inteligir.
Agora bem, onde está dito que a inteligência apreende a realidade "a partir dos dados sensíveis", isto é, que a inteligência é formalmente "inteligência sensível"?
E se fosse que a inteligência apreende realidade "no sentir" mesmo, isto é, num único ato de sentir e inteligir que é "sentir intelectivo" ou "inteligência senciente"?
Isto é justamente o primeiro que ter-se-á que discutir!
B. Da entificação da realidade à reificação da entidade.
1. A história da metafísica ocidental é a história das vicissitudes filosóficas do ser.
a. A metafísica ocidental começou com os jônicos afirmando que o mais profundo e radical de todas as coisas é o princípio, o arkhé, que há nelas e do qual todas nascem, e que, portanto, as coisas são natureza (physis).
b. Parmênides considerou que esse arkhé ou physis fosse ainda algo penúltimo, porque o mais profundo e radical de todas as coisas consiste pura e simplesmente em "ser".
c. A partir daí, a história da metafísica ocidental é a história das vicissitudes filosóficas do "ser".
Para gregos e medievais, o mais profundo e radical de todas as coisas (Deus incluído!) é o ser "enquanto ser".
A partir de Descartes, para os modernos, o mais profundo e radical de todas as coisas é "ser verdade" (ser verdade evidente [Descartes]; ser verdade objetiva analítica [Leibniz]; ser verdade objetiva sintética [Kant]; ser verdade absoluta [Hegel]).
2. É preciso reconduzir o ser verdade à verdade real e o ser à realidade que ulteriormente "é".
a. Para que a verdade consista primária e radicalmente em ser verdade, seria necessário, em primeiro lugar, que a inteligência fosse primária e radicalmente razão montada sobre si mesma ou inteligência concebente; mas isso é falso.
Como acabamos de dizer e como se explica demoradamente no Curso de Filosofia da Intelecção, a inteligência é primária e radicalmente inteligência senciente.
Pois bem, desde a inteligência senciente, aparece como verdade primária e radical a "verdade real".
b. Em segundo lugar, seria necessário que o mais profundo e radical das coisas consistisse em ser; mas onde está dito isso?; e se fosse que "realidade" não é uma qualidade de certos seres (os seres reais), mas, ao invés, que "ser" fosse algo próprio de certas realidades (as realidades mundanais)?; isso é justamente o primeiro que ter-se-á que discutir.
Atendamos, com efeito, à célebre frase de S. Tomás: "ente é aquilo cujo ato consiste em ser" (est ens id cujus actus est esse).
- Existe uma identidade entre "aquilo" (id), isto é, o sujeito do qual é o ato de ser, e o "ato de ser"? Então a frase seria simplesmente tautológica e, portanto, sem valor algum.
- Se não há identidade entre "aquilo" (id), isto é, o sujeito do qual é o ato de ser, e o "ato de ser", o que é esse "aquilo" (id) cujo ato é ser e que parece estar fora do ser?
- Não pode ser o nada, porque então o ser não seria ato; então é algo que não consiste em ser, mas algo de quem é o ser.
- Nesse caso, o último e radical das coisas não é ser entes, mas aquilo em que consiste o "id"; haverá que descobrir, portanto, em que consiste esse "id".
- E se esse "id" fosse pura e simplesmente "realidade"?; a metafísica ocidental seria, então, uma gigantesca ilegítima entificação da realidade!
- Acontece que, para S. Tomás, como para toda a metafísica ocidental, que "coisa" e "ente" sejam sinônimos é algo inconcusso e basta.
- Mas isso não está claro para nada; é preciso que a metafísica se coloque esta questão fundamental e prévia:
+ Os caracteres entitativos das coisas são efetivamente algo tão primário e radical como a metafísica ocidental acredita?
+ Não será, pelo contrário, que o ser é um caráter que está fundado sobre uma dimensão mais profunda das coisas?
- É urgente reificar a entidade!
A entificação da realidade, com efeito, é mais grave ainda quando se extende ao próprio Deus.
- Em nenhuma página do NT ou dos primeiros teólogos cristãos existe tal entificação da realidade divina; unicamente aparece quando a apelação ao platonismo tem podido influir nas interpretações da realidade de Deus feitas por alguns Apologistas e Padre Gregos.
- Trata-se, portanto, duma interpretação que, como tal, deixa a porta aberta a outras conceituações.
+ Temos efetivamente apontado algumas, dentro da própria teologia medieval: Mário Vitorino que interpreta Deus como pre-ente e Mestre Eckhart que nega que Deus tenha razão formal de entidade.
+ Essas interpretações nem de longe contradizem a idéia cristã da realidade de Deus; não pensemos, pois, que com a metafísica tomista e com as bases de sua teologia racional ficou esgotado para sempre o problema das coisas, da Criação e de Deus; pelo contrário, a porta fica aberta...
IX
A metafísica da realidade de Xavier Zubiri
A. Formalidade de realidade das coisas na apreensão e formalidade de realidade das coisas.
1. Formalidade de realidade e formalidade de estimulidade na apreensão.
a. Toda coisa, ao ser apreendida em impressão, tem formalidade de alteridade, ou seja, é apreendida como algo "outro" (autônomo ou independente) que as demais coisas e que o apreensor.
b. Essa formalidade de alteridade da coisa apreendida é distinta segundo o apreensor.
c. Com efeito, quando o apreensor é um mero animal, a formalidade de alteridade da coisa apreendida é formalidade de "estimulidade".
Estimulidade significa que os caracteres da coisa são apreendidos como outros, mas tão só como signo de resposta.
Por exemplo, para um cachorro, o calor "esquenta", isto é, impõe-lhe um modo de conduta (aproximar-se, fugir, etc.).
d. No entanto, quando o apreensor é um animal humano, a formalidade de alteridade da coisa apreendida é formalidade de "realidade".
Realidade significa que os caracteres da coisa são apreendidos como outros, mas como pertencentes à coisa "de seu", em próprio.
Por exemplo, para o homem, o calor, antes de tudo, "é quente", quer dizer, os caracteres térmicos do calor pertencem "de seu", em próprio, ao calor mesmo.
Nota: esse "é" de "é quente" não é (em princípio!) um "é" entitativo, mas só um "é" copulativo.
2. Realidade como formalidade das coisas na impressão humana e como formalidade das coisas.
a. A formalidade de realidade ("de seu") é o momento segundo o qual o apreendido é "já" o que está apreendido.
b. Este "já" expressa a anterioridade formal do apreendido a respeito do seu estar apreendido: a coisa fica como real na impressão, sendo real "antes" (prius) do seu ficar.
c. Em virtude desse prius, a formalidade de realidade nos instala no apreendido como realidade em si mesma e por si mesma; realidade é assim formalidade da coisa mesma enquanto "de seu".
d. Realidade é o mais radical da coisa mesma: é ela mesma enquanto "de seu"; é o "de seu" (realidade) não só como modo de estar presente a coisa (formalidade de realidade da coisa na apreensão), mas como algo que pertence à coisa na sua própria radicalidade (formalidade de realidade da coisa).
3. Realidade das coisas não é nem sentido, nem existência, nem além da apreensão.
a. Realidade não é sentido.
Coisa-realidade não é o mesmo que coisa-sentido.
- Coisa-realidade.
+ Desde o ponto de vista da apreensão, coisa-realidade é o apreendido estritamente como "de seu", como sendo "de seu" aquilo que é.
+ Desde o ponto de vista da atuação, coisa-realidade é o que atua sobre as demais coisas o sobre si mesmo formalmente em virtude dos caracteres que possui "de seu".
- Coisa-sentido.
+ Desde o ponto de vista da apreensão, coisa-sentido é o apreendido tão só como momento ou parte da vida humana.
+ Desde o ponto de vista da atuação, coisa-sentido é o que atua como tal só em virtude de ser momento ou parte da vida humana.
Exemplo de coisa-sentido: uma mesa.
- Uma mesa enquanto mesa não é coisa-realidade porque nada é "de seu" mesa.
- Mesa é coisa-sentido porque é mesa só em virtude de formar parte da vida humana; só tem função ou sentido de mesa como momento, como possibilidade, da vida humana.
- Como coisa-realidade uma mesa é meramente uma constelação de caracteres que tem "de seu" tal color, peso, densidade, solidez, humidade, composição química, forma, etc.
Articulação entre coisa-realidade e coisa-sentido.
- Coisa-sentido é sempre e só uma coisa-realidade que tem capacidade para ser coisa-sentido.
- Esta capacidade duma coisa-realidade para ser coisa-sentido é o que constitui a "condição".
- Exemplo: a madeira tem condição para ser mesa; a água não a tem.
b. Realidade não é existência.
Realidade não coincide "formalmente" com existência.
- Poder-se-ia pensar que algo é real se é existente, e que se não existe, não é real; realidade coincidiria assim com existência.
- Isto é falso.
+ Certamente aquilo que não existe não é real, e aquilo que existe é real; há, portanto, uma coincidência material (por assim dizer) entre realidade e existência.
+ Mas a questão é: a coisa é real porque é existente, ou é existente porque é real?
+ A questão está justificada, porque a coisa não só não é real se não tem existência, mas tampouco se não tem notas determinadas...
+ Acontece que tanto a existência quanto as notas concernem ao "conteúdo" do real, não ao real enquanto real.
- Certamente a existência não é uma nota a mais do conteúdo.
- Mas, ainda assim, a existência é um momento que concerne formalmente ao conteúdo do apreendido.
+ Que esse conteúdo seja real é algo "anterior" à sua existência e às suas notas: só sendo real tem a coisa existência e notas.
Realidade é formalmente "anterior" à existência.
- Não se trata duma anterioridade de sucessão temporal, quer dizer, de que a coisa seja real antes de ser existente (isso seria absurdo), mas duma anterioridade de fundamentação formal, quer dizer, de que a coisa enquanto real é formalmente anterior à coisa enquanto existente.
- Com efeito, a existência compete à coisa "de seu": a coisa real é existente "de seu".
- Isso significa que, numa coisa real, o momento de existência está fundado no seu momento de realidade, e não ao invés.
+ Por isso dizemos às vezes com perfeita exatidão que uma coisa tem "existência real", quer dizer, que a existência compete "de seu" à coisa.
+ Se assim não fosse, não teríamos realidade, mas espectro de realidade (é a chave para interpretar a metafísica do Vedanta).
- Existência é tão só um momento da realidade, e não a realidade um momento da existência.
+ Algo não é formalmente real por ser existente; o que constitui formalmente a realidade não é o existir, mas existir "de seu".
+ Para isso é indiferente como se conceitue a existência: S. Tomás (ato da essência); S. Duns Escoto (modo da essência); Suárez (existência e essência se identificam "in re").
+ Nem sequer é evidente que haja isso que chamamos de existência como momento realmente distinto das notas da "coisa existente"...
- Toda metafísica da realidade como existente e como possuidora de notas próprias, há de fundar-se inexoravelmente na formalidade mesma de realidade, no "de seu".
c. Realidade não é além da apreensão, mas formalidade de realidade seja na apreensão seja além da apreensão (ver curso de Filosofia da Intelecção).
B. Unidade substantiva (estrutural e dimensional) do real.
1. Unidade substantiva do real: a substantividade.
a. Notas.
Definição de nota.
- Todo o real está constituído por certas "notas".
- Nota é tudo aquilo que pertence a uma coisa ou forma parte dela "em propriedade", como algo "seu".
- Nota equivale a propriedade no sentido etimológico amplíssimo do termo propriedade, mas não no seu sentido restringido.
+ Propriedade em sentido restringido (ídion [Aristóteles], proprium [escolásticos]) é algo que tem uma coisa já previamente constituída enquanto tal; por exemplo: o homem está constituído por caracteres genéricos, específicos e individuantes; já constituído assim, tem propriedades, por exemplo, a bipedestação.
+ Propriedade em sentido amplo são todos os momentos que possui uma coisa incluído o que forma "parte" própria dela; por exemplo, são notas dum homem: a matéria, a sua estrutura, a sua composição química, as faculdades do seu psiquismo, as células, a psique mesma, etc.
- O termo "nota" designa unitariamente dois momentos da coisa:
+ A nota pertence à coisa (por exemplo, o calor é uma nota da coisa).
+ A nota nos notifica o que é a coisa segundo essa nota (por exemplo, o calor nos notifica o que segundo o calor é a coisa).
Classes de notas.
- Adventícias: são as notas da coisa que se devem à interação dessa coisa com outras.
- Formais: são as notas que pertencem à coisa pelo que ela é "de seu", são as "suas" notas.
+ Constitucionais: são as notas formais fundadas em outras notas formais (exemplo: todo gato branco de olhos azúis é surdo; essas notas constitucionais se fundam nos genes).
+ Constitutivas: são as notas formais que não estão fundadas em outras, mas que repousam sobre si mesmas (exemplo: os genes).
b. Sistema.
As coisas reais têm uma multidão de notas que formam uma "unidade".
- Esta unidade não é aditiva (a coisa não é verde, mais pesada, mais quente, etc.), mas intrínseca: é uma unidade sistemática ou sistema.
- Esta unidade consiste em que cada nota é "nota-de" todas as demais notas (a glucose tem realidade própria, mas no meu organismo é "glucose-de" o meu organismo).
- Cada nota não é um elemento "em" o conjunto, mas um elemento "de" o conjunto.
Toda nota enquanto nota é então formalmente "nota-de": é o que chamamos de estado "construto" ou unidade "construta" de notas.
- O estado construto é um elemento lingüístico próprio, por exemplo, do hebreu; indica justamente o caráter de "nota-de" das notas de algo.
+ As línguas românicas (refletindo a mentalidade aditivista de que procedem) dizem, por exemplo, "'palavra' 'de' 'Deus'"; a unidade da nota àquilo de que é nota é expressada muito extrinsecamente por um terceiro termo, que é a preposição "de".
+ O latim expressa a mesma idéia, mas com a afecção genitiva daquilo ("Deus") de que o "verbum" é nota: "verbum 'Dei'".
+ O hebreu expressa a pertença da nota ("dabar") à unidade ("Yahveh"), pela qual a nota é "nota-de", com a forma de estado construto: "'d(e)bar'-Yahveh"; a palavra de Deus já não é palavra, mas "palavra-de".
- Estado construto físico.
+ Consiste em que cada nota é um momento construto "de" o conjunto: é "nota-de" o conjunto (ou seja, de todas as demais notas).
+ Não se trata duma espécie de misteriosa adesão do conteúdo dumas notas da coisa às outras, mas de que toda nota é real enquanto nota tão só na unidade com outras notas reais enquanto notas.
O "de" da "nota-de" impõe a cada nota um modo próprio de ser "de" todas as demais: cada nota tem uma "posição" perfeitamente definida dentro do sistema.
Com isso, o conjunto já não é mero conjunto, mas a unidade posicional e construta de suas notas: é o que constitui formalmente um "sistema".
- O momento do "de" é um momento físico, no sentido de real a diferença de meramente conceptivo: o "de" pertence à coisa "de seu", é um momento da sua realidade.
- O "de" expressa a unidade das notas e nesta unidade consiste o sistema enquanto tal.
- O sistema tem assim uma sistematização que é cíclica (clausurada) e nao linear.
c. As notas formais duma coisa real são "suas" notas, quer dizer, "constituem" essa coisa real, são a "constituição" dessa coisa real.
d. O sistema de notas tem capacidade suficiente para ser algo "de seu", quer dizer, tem capacidade suficiente de constitucionalidade, ou seja, tem "suficiência constitucional".
e. Substantividade.
O sistema de notas que tem suficiência constitucional, ou seja, suficiência para ser algo "de seu", possui, em virtude disso, um certo caráter de autonomia ou independência: possui "substantividade".
O real, enquanto constitucionalmente suficiente, é o que chamamos de realidade substantiva, de "substantividade".
Substantividade não é nem a "stancialidade" parmenideana, nem a "substancialidade" aristotélica, nem a "ob-stancialidade" da filosofia moderna.
- Jectum, sub-jectum e ob-jectum.
+ Parmenides pensou que as coisas fossem jectum (keímenon), quer dizer, algo que jaz aí; isso deu origem à idéia do "átomo" de Demócrito.
+ Aristóteles deu um passo a mais: as coisas não são jectum, mas sub-jectum (hypo-keímenon), quer dizer, são sub-stâncias.
- Ser substância é ser sujeito de propriedades antes de tudo essenciais.
- As notas são "acidentes" inerentes (algo que sobrevém) ao sujeito substancial, ou seja, são realidades insubstanciais.
+ Segundo a filosofia moderna, as coisas enquanto inteligidas são ob-jectum; as notas do objeto são predicados objetivos; o único subjectum seria o "eu".
- Pois bem, as coisas não são nem jectum, nem sub-jectum, nem ob-jetum, mas realidades substantivas.
+ Jectum, sub-jectum e ob-jectum são três caracteres do real desde a conceituação da inteligência como inteligência concebente.
+ Mas a inteligência não é formalmente concebente, mas senciente; desde a inteligência senciente a conceituação do real muda radicalmente.
- As coisas não são nem jectum, nem sub-jectum (substância), nem ob-jectum, mas realidades substantivas.
- As notas não são acidentes "in-erentes" a um sujeito substancial, nem predicados dum objeto, mas momentos "co-erentes" dum sistema construto substantivo.
+ A respeito de substancialidade aristotélica concretamente.
- Aristóteles não pensou que há substâncias insubstantivas como, por exemplo, todas as substâncias que compoem o meu organismo.
- No meu organismo só há uma substantividade: a substantividade do meu organismo como sistema.
- Todas as substâncias do meu organismo (por exemplo, a glucose) têm en si e por si mesmas substancialidade, mas não têm substantividade; são meras "nota-de" o meu sistema orgânico substantivo.
Só há uma única substantividade sistemática estrita: a substantividade do cosmos.
- Cada nota em si e por si mesma tem "provisoriamente" suficiência constitucional: é uma "substantividade elementar", por assim dizer.
- Mas essa substantividade elementar carece de estrita suficiência constitucional; daí que a substantividade concerna propriamente à unidade do sistema clausurado-total de notas, quer dizer, à "substantividade sistemática".
- Agora bem, a provisoriedade substantiva afeta, em definitiva, a todas as substantividades sistemáticas; só há uma substantividade sistemática estrita e rigorosa: a "substantividade do cosmos inteiro".
f. Essência.
As notas constitutivas constituem o subsistema radical da substantividade, ou seja, a "essência" da substantividade.
A essência não é nem o correlato real duma definição (Aristóteles), nem o conceito objetivo (Descartes, Leibniz, Kant), nem o conceito formal (Hegel), nem o sentido (Edmund Husserl, Prossnitz, Chéquia, 1859-1938).
A essência é o princípio estrutural da substantividade, isto é, o subsistema de notas necessárias e suficientes para que uma realidade substantiva tenha as demais notas constitucionais e inclusive adventícias.
2. Unidade estrutural e dimensional do real.
a. Interioridade e exterioridade do real.
Interioridade do real.
- Na substantividade sistemática, a unidade do sistema (o "de") constitui o seu in, o seu intus, a sua interioridade, que é o momento primário dela.
- Interioridade não significa algo oculto por baixo das notas, mas tão só a unidade mesma do sistema de notas.
Exterioridade do real: as notas por si mesmas são a projeção ad extra da unidade da coisa, são o seu ex, o seu extra, a sua exterioridade.
Interioridade e exterioridade, portanto, são dois momentos físicos do construto de toda coisa; toda realidade é um in ou interioridade (como sistema, a coisa é realidade interna ou interior) e um ex ou exterioridade (como projeção de notas, a coisa é realidade externa ou exterior).
b. A projeção da unidade (interioridade) em suas notas (exterioridade) tem dois aspectos: estrutura e dimensão.
Estrutura (plasmação).
- A projeção da unidade em suas notas é uma "plasmação" da unidade (interioridade) em suas notas (exterioridade).
- Neste aspecto, as notas são a "estrutura" do construto, a estrutura do in.
Dimensão (atualização).
- A projeção da unidade em suas notas é também uma "atualização" da unidade (interioridade) nas notas (exterioridade) em que se plasma.
- "Dimensões" são os diversos respectos formais segundo os quais o in (a unidade do sistema) está atualizado em todos ou em alguns grupos de suas notas estruturais.
- São dimensões porque em cada dimensão está "mensurada ou medida" a unidade total do sistema.
c. O real, portanto, é unidade substantiva estrutural e dimensional.
3. Três dimensões do real como substantividade estrutural-dimensional.
a. Totalidade: se apreendemos qualquer coisa real, por exemplo, uma pedra, um cachorro, um astro, etc., essa coisa real fica na apreensão em primeiro lugar como um "tudo", como um totum.
b. Coerência: este tudo não é um mero conjunto de notas; o tudo, precisamente porque cada nota, enquanto nota, é "nota-de", tem uma "coerência" no seu próprio "de", é um "tudo coerente".
c. Duratividade: este tudo coerente tem uma espécie de "dureza" pela qual dizemos que é "durável", quer dizer, que "está sendo", que é um "tudo coerente durável".
C. Carácter transcendental do real.
1. A formalidade de realidade é transcendental.
a. Desde o ponto de vista negativo, a formalidade de realidade é "inespecífica".
Todas as coisas reais têm um conteúdo qualitativo próprio sempre muito especificado (esta cor, este som, este peso, esta temperatura, etc.).
A formalidade de realidade das coisas reais, no entanto, não é uma qualidade a mais: é sempre "inespecífica".
b. Desde o ponto de vista positivo, isso significa que a formalidade de realidade "transcende" todo e qualquer conteúdo, mas "em" o conteúdo mesmo, quer dizer, que é transcendental.
A formalidade de realidade não é transcendente.
- A formalidade de realidade do conteúdo está além (trans) do conteúdo, mas não no sentido de que esteja "fora" dele.
- A coisa real, pela formalidade de realidade, é "mais" do que é como corada, sonora, quente, etc., mas não "fora" daquilo que é como corada, sonora, quente, etc.
A formalidade de realidade é transcendental.
- A formalidade de realidade do conteúdo está além (trans) do conteúdo, mas no sentido de que está além do conteúdo "em" o conteúdo mesmo.
- A coisa real, pela formalidade de realidade, é "mais" do que é como corada, sonora, quente, etc., mas "em" aquilo que é como corada, sonora, quente, etc.
2. A conceituação da transcendentalidade e da metafísica na história da filosofia.
a. Exposição.
Filosofia grega e medieval.
- Dois pontos fundamentais:
+ Transcendentalidade é "comunidade de ser"; o "trans" ou o "mais" da transcendentalidade consiste no momento de ser em que coincidem todas as coisas.
+ Metafísico é o que está "além do físico" (trans-físico); o transcendental é o transcendente ao físico (metafísica "ultra-física" ou "trans-física").
- Filosofia grega.
+ Os vocábulos "transcendentalidade" e "metafísica" não são gregos, mas medievais; o designado por esses vocábulos, porém, é grego.
+ Parmenides é o primeiro em afirmar que todas as coisas concidem em "que são" (em "ser"); por isso, inteligir algo é necessariamente inteligir que "é".
+ Platão.
- Transcendentalidade é comunidade participativa no Ser.
* Comunidade, participação, gênero supremo (Idéia) são os três momentos que constituem o primeiro esboço filosófico do que chamamos transcendentalidade.
¬ A coincidência de todas as coisas no ser é "comunidade" (koinonia) no ser.
¬ Esta comunidade de todas as coisas no ser é "participação" (méthexis) de todas elas no ser; nada é "o" ser, mas tudo participa do ser.
¬ Esta participação é uma diferenciação progressiva dum "gênero" supremo (Idéia) que é "o" Ser: as coisas são galhos dum trans comum: "o" Ser.
* Com o Ser há outros quatro gêneros igualmente supremos: movimento, repouso, o mesmo e o outro.
- Além do físico está o metafísico.
* As coisas inteligíveis ("Idéias") estão "além" e "separadas" (khoristá) das coisas sensíveis.
* Debateu-se esforçadamente (sem sucesso) para conceituar esta separação de modo que a intelecção da Idéia permitisse inteligir as coisas sensíveis.
¬ As coisas são "participação" (méthexis) da Idéia.
¬ A Idéia, acha-se "presente" (parousía) nas coisas e é o seu "paradigma" (parádeigma).
* Méthexis, parousía e parádeigma são três aspectos da estrutura conceptiva única do "além" e da "separação" ( o metafísico).
+ Aristóteles.
- Transcendentalidade é comunidade conceptiva no ser.
* Mantendo-se mesma linha conceptiva, modifica profundamente o conteúdo: ser não é gênero, mas o supremo conceito universal trans-genérico.
* Portanto, a comunidade de todas as coisas no ser não é participação delas no ser, mas só comunidade conceptiva das coisas no ser.
* Transcendentalidade é o caráter do conceito do ser (o conceito mais universal, comum a todas as coisas) e do ser das coisas (aquilo que está em todas as coisas e que concebe o conceito do ser).
* Os outros conceitos não são transcendentais; ao máximo são conceitos genéricos.
- O metafísico está além do físico.
* Tentou rejeitar a conceituação platônica com a sua teoria da substância (fazendo da Idéia, forma substancial da coisa), mas no fundo se nutre dela.
* A sua "filosofia primeira" (depois chamada de metafísica) não trata sobre Idéias separadas, mas no fundo trata sobre uma Substância "separada": o Theós.
* Das substâncias, preocupa-lhe de fato mais a "conceptiva" substância segunda (deútera ousía) do que a "física" substância primeira (próte ousía).
* Nunca viu claramente a articulação entre ambas: manteve-se sempre no dualismo sentir/inteligir que o conduziu ao dualismo metafísico na teoria da substância.
- Filosofia medieval.
+ Transcendentalidade é comunidade conceptiva no ser: neste sentido pensou grosso modo com Aristóteles toda a filosofia medieval.
+ O metafísico está além do físico:
- Andrônico de Rodes, editor de Aristóteles, tinha rotulado como Metá-ta-Physicá a obra aristotélica que estava depois da Física (metafísica pós-Física).
- Sem ter em conta isto, os medievais, com matizes diversos, usam o termo metafísico referido ao que está além do físico.
- Entenderam assim que a metafísica é "trans-física" (alguma vez aparece fugazmente o termo).
Filosofia moderna.
- Kant: modificados, reaparecem os dois pontos fundamentais da conceituação grega e medieval.
+ Transcendentalidade é "comunidade conceitual", mas no "objeto" e não no ser.
- Todas as coisas enquanto inteligíveis consistem em "ser-objeto" de intelecção.
- A transcendentalidade enquanto tal é o caráter de todas as coisas não enquanto concebidas no conceito mais universal do ser (comunidade conceitual no ser), mas enquanto propostas objetualmente à intelecção (comunidade conceitual no objeto).
+ O metafísico é o que está além do físico, mas como o "ultra-fenomênico".
- Viu o dualismo entre o que, desde Leibniz, chamou-se mundo sensível e mundo inteligível, e a necessidade intelectiva duma conceituação unitária do conhecido.
- Tratou de estabelecer a unidade na linha precisa da objetualidade.
* O sensível e o inteligível são dois elementos (a posteriori e a priori) duma unidade primária: a unidade do objeto.
* Não há dois objetos conhecidos (um sensível e outro inteligível), mas um só objeto sensível-inteligível: o "objeto fenomênico".
- Este caráter transcendental de todas as coisas que consiste em objetualidade constitui o metafísico "imanente".
- Mas, fora desta unidade transcendental do objeto fenomênico, está o metafísico "transcendente": o "noúmeno", o ultra-físico.
- Esta conceituação kantiana sobreviveu em certo modo em todo o idealismo moderno.
b. Crítica.
A transcendentalidade não é comunidade conceptiva (nem no ser nem no objeto), mas física comunicação extensiva de realidade.
- A transcendentalidade não é primariamente algo concebido em inteligência concebente, mas algo sentido em inteligência senciente (em impressão de realidade).
+ Na filosofia clássica e na moderna, a transcendentalidade é um momento radicalmente e formalmente de comunidade "conceptiva" (seja no ser, seja no objeto).
+ O motivo é que se conceitua a transcendentalidade desde a inteligência entendida como inteligência concebente.
+ No entanto, a inteligência não é formalmente inteligência concebente, mas inteligência senciente.
+ Então a transcendentalidade é um momento físico do real determinado pela formalidade de realidade apreendida em impressão.
- A transcendentalidade é própria da realidade enquanto realidade, não do ser das coisas: o termo formal da intelecção não é o ser, mas a realidade.
- A transcendentalidade não é comunidade (nem no ser nem no objeto), mas "comunicação ex-tensiva da formalidade de realidade".
+ A transcendentalidade é o caráter de cada coisa real pelo qual comunica extensivamente desde a formalidade de realidade com a formalidade de realidade de toda outra coisa.
+ Esta comunicação não é causal, mas meramente formal.
- Não se trata de que a realidade duma coisa produza ou gere a realidade de outra (isto seria absurdo),
- Trata-se de que a formalidade de realidade é constitutivamente e formalmente "ex-tensão comunicativa".
+ E esta comunicação extensiva não é universalidade conceptiva, mas real.
O metafísico não é o trans-físico, mas o físico mesmo em trans.
- O dualismo inteligir/sentir próprio da "inteligência concebente" conduziu à filosofia grega e medieval ao dualismo da realidade:
+ De um lado estão as coisas sensíveis, mudáveis e múltiplas (como gostam de chamá-las), que são o termo do sentir.
+ De outro lado está o transcendental, aquilo que "sempre é", termo do inteligir.
+ O trans é o salto obrigado duma zona de realidade a outra zona de realidade.
- A unidade kantiana do objeto está constituída desde a "inteligência sensível"; mantem a conceituação do metafísico como "transfísico", como além do físico (transcendente).
- Só desde a inteligência senciente se chega a uma conceituação unitária do real: não há salto algum; o metafísico não é algo além do físico (transfísico), mas o físico mesmo em dimensão formal distinta: o físico em trans, o físico mesmo como trans.
- A unidade do real não consiste na unidade do real "enquanto objeto" de conhecimento, mas na unidade "do real mesmo".
+ Na impressão de realidade, ato radical da inteligência senciente, o momento de realidade e da sua transcendentalidade são apreendidos como estrita e formalmente físicos.
+ A transcendentalidade é um caráter formalmente "metafísico" da realidade só no sentido de "físico em trans".
+ O metafísico não é o transcendente ao físico nem o transcendente à intelecção, mas a física transcendentalidade do real como o físico em trans e como o assim apreendido em apreensão senciente de realidade.
3. Quatro momentos constitutivos da transcendentalidade do real: abertura, respectividade, suidade, mundanalidade.
a. Abertura transcendental do real.
A formalidade de realidade é em si mesma, enquanto realidade, algo aberto, a respeito do "seu" conteúdo próprio.
- Se o conteúdo duma coisa real for modificado, a coisa real não se torna outra realidade enquanto realidade: continua sendo a mesma realidade ainda que com conteúdo modificado.
- Esta mesmidade de realidade não é uma constância perceptiva ou uma identidade conceptiva, mas uma estrita física mesmidade numérica do momento de realidade.
+ O conteúdo do "de seu" mudou; mas não mudou o "de seu" mesmo enquanto tal.
+ A mesma formalidade de realidade (em mesmidade numérica) "reifica" (faz real) quanto advém ao seu conteúdo.
+ A coisa é então a mesma ainda que não seja o mesmo.
A formalidade de realidade é em si mesma, enquanto realidade, algo aberto, a respeito de "qualquer" conteúdo.
- Cada nova realidade apreendida inscreve-se na formalidade de realidade numericamente a mesma.
- A formalidade de realidade não é um caráter "dum conteúdo concluso", mas é uma formalidade aberta a todo e qualquer conteúdo.
- Por isso, dizer "realidade" é sempre deixar em suspenso uma frase que por si mesma está pedindo ser completada por "realidade de algo".
- Em virtude da abertura da formalidade de realidade, as múltiplas coisas reais não são outras "realidades", mas realidades "outras".
+ Por ser aberta, a formalidade de realidade é numericamente a mesma nas distintas coisas reais.
+ A multiplicidade das coisas reais refere-se ao conteúdo, não à formalidade de realidade: todas as coisas reais se inscrevem na mesma formalidade de realidade.
Esta abertura não é abertura de atuação do real (toda coisa real atua sobre as demais) mas abertura de formalidade (a formalidade de realidade é enquanto tal a abertura mesma).
Esta abertura da formalidade de realidade é transcendental.
- Em virtude da abertura da sua formalidade de realidade, a coisa real enquanto real é "mais" do que o seu conteúdo atual.
- A coisa real enquanto real é transcendental: transcende o seu conteúdo, mas "desde" e "em" o seu conteúdo mesmo.
b. Respectividade transcendental do real.
A formalidade de realidade, em virtude de ser aberta, só é formalidade de realidade respectivamente àquilo ao que está aberta.
Respectividade não é uma relação.
- Toda relação é relação duma coisa real já constituída com outra coisa real já constituída.
- Mas a respectividade é um momento "constitutivo" da formalidade de realidade enquanto tal.
Ser real enquanto real é ser real só respectivamente àquilo que é real.
A respectividade da formalidade de realidade é transcendental: transcende de si mesma desde e em a coisa real mesma.
c. Suidade transcendental do real.
A formalidade de realidade está respectivamente aberta antes de tudo ao seu conteúdo.
Com isso, o conteúdo não é um conteúdo em abstrato, mas um conteúdo que é unitariamente duas coisas:
- Conteúdo "de seu", conteúdo "em próprio" (conteúdo "real", "reificado" pela formalidade de realidade: a coisa real é "esta" realidade).
- Conteúdo "seu", quer dizer, da formalidade de realidade ("suificado por ela": a coisa real é "sua" realidade).
A abertura respectiva transcendental da formalidade de realidade ao conteúdo constitui a suidade enquanto tal de toda coisa real.
d. Mundanalidade transcendental do real.
A formalidade de realidade está respectivamente aberta ademais a toda coisa real enquanto real.
A formalidade de realidade faz que cada coisa real enquanto real seja pura e simplesmente "realidade", um momento de "a" realidade.
Assim, toda coisa real enquanto real é pura e simplesmente real em "a" realidade.
Esse momento de cada coisa real de ser realidade pura e simples em virtude da sua formalidade de realidade é "mundo": a formalidade de realidade é "mundificante".
- O mundo não é o conjunto das coisas reais, mas aquilo que as conjunta.
- O que conjunta as coisas reais não é um "conceito comum" a todas elas e a respeito do qual cada uma seria um simples caso particular (não é uma "contração" do conceito de realidade a cada coisa real).
- O que conjunta as coisas reais é o momento "físico" de realidade pura e simples de cada coisa real (é uma "expansão" ou "ex-tensão" da física formalidade de realidade desde cada coisa real).
- O caráter de ser puramente e simplesmente real que é um caráter transcendentalmente aberto de cada coisa é aquilo que constitui formalmente essa unidade física que é o mundo.
- Por isto, ainda que não houvesse mais que uma só coisa real, esta seria constitutiva e formalmente mundo: cada coisa é "de seu" mundanal.
4. Talidade do real e transcendentalidade do real.
a. Talidade (função talificante da formalidade de realidade).
Pela sua formalidade de realidade, o conteúdo das coisas não é mero conteúdo, mas "tal" realidade (talidade do real): é a função talificante da formalidade de realidade.
Talidade não é mero conteúdo (o cachorro apreende estimulicamente os mesmos conteúdos que o homem, mas não apreende talidades), mas conteúdo reificado e suificado pela formalidade de realidade (o conteúdo envolvido transcendentalmente pela formalidade de realidade).
Talidade é uma determinação transcendental: pela função talificante da formalidade de realidade o conteúdo fica determinado transcendentalmente como talidade.
b. Transcendentalidade (função transcendental da formalidade de realidade).
Pela sua formalidade de realidade, o conteúdo não é só "tal" realidade, mas "realidade" tal (transcendentalidade do real): é a função transcendental da formalidade de realidade.
A formalidade de realidade, envolvendo o conteúdo, fica determinada como uma "realidade" em toda a sua concreção.
Pela sua função transcendental, a formalidade de realidade envolve o conteúdo fazendo dele uma forma e modo de realidade.
Assim, a formalidade de realidade não é algo abstrato e oco, mas uma formalidade muito concretamente determinada, de modo que não só há muitas coisas reais, mas também muitas formas e modos de realidade.
Portanto:
- A transcendentalidade não é algo a priori, quer dizer, não repousa conceptivamente sobre si mesma, mas pende do conteúdo das coisas.
- Mas a transcendentalidade também não é algo a posteriori, quer dizer, não é uma propriedade a mais do conteúdo das coisas, mas função da formalidade de realidade das coisas.
- A transcendentalidade é algo fundado pelas coisas na sua formalidade de realidade.
c. Talidade "e" transcendentalidade.
Talidade e transcendentalidade não são "duas" funções, mas dois momentos constitutivos da "única" função transcendental da formalidade de realidade.
Por isto, a diferença entre "tal"-realidade e "realidade"-tal não é formalmente idêntica à diferença entre conteúdo e formalidade de realidade.
- Tanto a talidade quanto a realidade envolvem cada uma os momentos de conteúdo e de formalidade de realidade.
+ Verde em si mesmo não é talidade; é talidade o modo segundo o qual o verde consiste em verde real (a formalidade de realidade envolve o conteúdo talificando-o).
+ "De seu" não é transcendentalidade; é transcendentalidade o modo segundo o qual o "de seu" é realidade virídea (a formalidade de realidade envolve o conteúdo transcendendo-o).
- A transcendentalidade não poderia dar-se sem aquilo desde e em o qual transcende.
5. Unidade talitativa e unidade transcendental do real: cosmos e mundo.
a. A unidade da realidade não está constituída por uma espécie de acoplamento externo, por uma taxis, como dizia Aristóteles, mas por aquilo que é cada realidade em si mesma, pela respectividade talitativa e transcendental de cada realidade a outras realidades.
b. A unidade talitativa do real: cosmos.
A unidade respectiva das coisas reais, em virtude da sua talidade (enquanto "tais" realidades), é o que constitui o "cosmos".
O cosmos é a unidade talitativa do real, a unidade respectiva de todas as coisas reais enquanto "tais" realidades.
Pode-se admitir a possibilidade de diversos cosmos completamente independentes entre si (sem interação de nenhuma ordem); não constituiriam universo, mas pluriverso.
A ciência é o saber acerca da unidade talitativa do real (do cosmos).
c. A unidade transcendental do real: mundo.
A unidade respectiva das coisas reais, em virtude da sua transcendentalidade (enquanto "realidades" tais), é o que constitui o "mundo".
O mundo é a unidade transcendental do real, a unidade respectiva de todas as coisas reais enquanto "realidades" tais.
O mundo só pode ser uno e único.
- Todos os possíveis cosmos, ainda que sejam "cosmicamente" independentes entre si, são "realmente" (enquanto realidades) respectivos.
- Portanto, é metafisicamente impossível que haja mundos distintos.
A filosofia é o saber acerca da unidade transcendental do real.
O mundo sentido é o "campo" de realidade.
6. Formas de realidade, modos de realidade e figuras de instauração na realidade.
a. Formas de realidade.
Em virtude da constituição, cada nota ou sistema de notas constitui uma "forma de realidade".
A constituição é assim a forma "concreta" da unidade do real (do "de seu").
Por exemplo, verde é a forma virídea de realidade, ferro é a forma férrea de realidade, homem é a forma humana de realidade, etc.
Astro, ferro, cobre, carvalho, cachorro, homem, etc., como formas de realidade, se distinguem entre si tão só pela sua constituição própria de notas.
b. Modos de realidade.
As coisas reais não diferem só pelas suas notas (como formas de realidade), mas sobretudo pelo "modo" como essas notas são "de seu" (como são "suas", da coisa).
Os diferentes modos de ter "de seu", "em próprio", as notas constituem os diferentes modos de realidade.
Três modos de realidade.
- Mero ter em próprio as notas: modo de realidade meramente material.
+ Cobre e ferro, por exemplo, são formas de realidade distintas.
+ Têm, porém, igual modo de realidade que consiste só em "mero ter em próprio" as suas notas.
- Autopossuir-se: modo de realidade vivente.
+ Os animais, por exemplo, têm cada um a sua constituição própria e, portanto, a sua forma de realidade (cachorro, macaco, garça, pulga, etc.).
+ Mas todos eles têm um igual modo de realidade distinto do "mero ter em próprio" as suas notas: é o modo de realidade que chamamos de "vida".
- O animal tem uma independência sobre o meio e um controle específico sobre ele, fundados em grande medida no sentir.
- No sentir, o vivente animal sente-se mais ou menos rudimentarmente como um autós, como um "si mesmo".
- O vivente (seja vegetal seja animal) tem sempre pelo menos um primórdio de autós cada vez mais rico na série biológica.
- Vida não é "auto-moção" (como costuma dizer-se desde os gregos), mas "auto-possessão", isto é, ser um autós, um "si mesmo".
- Ser autós consiste em pertencer-se ou possuir-se por razão da sistematização das notas.
- Ser "seu" próprio "de seu": modo de realidade pessoal.
+ O homem, por exemplo, não é só algo que se possui (autós), mas se possui sendo sua própria realidade enquanto realidade.
+ O homem é um autós que se possui não só pela sistematizacão de suas notas, mas formalmente e reduplicativamente pelo seu caráter mesmo de realidade.
+ O homem é pessoa, modo de realidade pessoal: possui-se a si mesmo como realidade.
+ Pessoa é formal e reduplicativamente suidade real, ser "seu" próprio "de seu".
Estes modos de realidade não são independentes: cada um deles envolve o anterior.
- Só por ter em próprio determinadas notas, pode o real ser um autós, um vivente, uma realidade que se autopossui.
- Só tendo em próprio determinadas notas (a inteligência, por exemplo) e autopossuindo-se em virtude da sistematização das notas, pode o vivente animal humano ser pessoa.
c. Figuras de instauração na realidade.
Cada coisa real é um momento da pura e simples realidade, é real no mundo, é mundanalmente real, está "instaurada no mundo".
Duas "figuras de instauração no mundo ou na realidade".
- Integração.
+ As coisas tanto meramente materiais quanto viventes são "partes" do mundo.
+ A sua instauração na realidade consiste nessa figura que chamamos "integração": estão integradas no mundo como partes dele.
- Absolutização.
+ O homem comparte esta figura de instauração no mundo que é a integração, mas não se reduz a ela.
+ A figura de instauração do homem como realidade pessoal no mundo não é mera integração, mas "absolutização".
- Como realidade pessoal, o homem não só é formalmente e reduplicativamente "seu" enquanto realidade, mas é seu "frente a" todo o real.
- O homem é uma espécie de retração frente ao mundo, de enfrentamento com o mundo, mas no mundo.
- Está na realidade, mas como relativamente "solto" de todas as demais realidades.
- Está no mundo, mas não como mera parte do mundo, senão recurvando-se na sua própria realidade.
- O homem é essa figura de instauração na realidade que consiste em ser realidade relativamente "absoluta".
+ Crítica a Hegel neste sentido.
- Diz que o espírito subjetivo (individual) é só um momento dialético do espírito objetivo; segundo ele, o homem está integrado dialeticamente na natureza, na história e na sociedade.
- Isto é radicalmente falso.
* Pela sua realidade pessoal enquanto pessoal, o homem não está integrado em nada, nem como parte física, nem como momento dialético.
* Certamente por alguns momentos de sua realidade, a pessoa está integrada no mundo: por exemplo, pela corporeidade do seu sistema psico-corpóreo.
* Mas, enquanto pessoal, este mesmo corpo transcende de toda integração.
* O corpo humano é pessoal, mas não como organismo, nem como sistema solidário, senão formalmente como princípio de atualidade (ver Curso de Filosofia do Homem).
* O caráter absoluto da instauração do homem no mundo está fundado em algo que, partindo (como organismo e sistema solidário) do mundo, está no mundo transcendendo-o.
* Por isso, no caso do homem, a instauração no mundo é só "relativamente" absoluta.
* Mas esta relatividade enquanto momento do absoluto não é integrável; aliás, só é relativamente in-integrável.
* Daí que a possível unidade dos homens em comunidade tem um caráter completamente distinto ao duma integração.
+ A comunidade dos homens.
- Sociedade.
* Os homens podem estar vertidos aos demais homens dum modo próprio só dos homens, a saber, dum modo "im-pessoal": só as pessoas podem ser impessoais.
* As demais realidades não são im-pessoais, mas "a-pessoais".
* Por isso, enquanto a unidade das realidades apessoais é integração, a unidade dos homens impessoalmente tomados é "sociedade".
* Sociedade é a comunidade dos homens com os outros homens impessoalmente tomados, quer dizer, tomados como meros outros homens.
- Comunhão.
* Além disso, os homens têm um tipo de unidade superior à mera sociedade: é a "comunhão pessoal".
* Comunhão é a comunidade dos homens com os outros homens enquanto pessoas.
+ A instauração das realidades na realidade é de fato aberta e dinâmica.
- Tem havido de fato um progresso dinâmico no real enquanto real, porque tem havido um progresso na instauração na realidade.
- Ignoramos em princípio se esse progresso não marchará ainda para adiante, mas realidade enquanto realidade é algo que continua estando aberto!!!
7. Atualidade do real.
a. Atuidade.
Na filosofia clássica, potência se opõe a ato, isto é, à plenitude daquilo em que algo consiste (a bolota é carvalho em potência; o carvalho é carvalho em ato).
A filosofia clássica chama de "atualidade" (actualitas) esse caráter de "ato" que tem algo e, derivativamente, o caráter de atuação que tem esse algo em virtude do seu caráter de ato.
Mas esse caráter de ato é mais exato chamá-lo de "atuidade".
b. Atualidade.
Na linguagem usual, atualidade alude ao momento de estar presente algo; assim se diz: "os virus têm hoje muita atualidade e careciam dessa atualidade faz um século".
A atualidade, portanto, está constituída pelo "estar presente enquanto estar" de algo.
Uma realidade, sem mudar as notas da sua atuidade, pode ter diversas atualidades tanto simultânea quanto sucessivamente, e pode adquirir novas atualidades ou perder algumas.
c. Modos de atualidade.
Extrínseca: é a atualidade que é um momento extrínseco ao que é atual (por exemplo, a atualidade dos virus no nosso século).
Meramente intrínseca: é a atualidade que é um momento intrínseco ao que é atual: é o estar presente do real desde si mismo.
- Por exemplo, quando dizemos que alguma pessoa está presente em alguma parte.
- É uma atualidade que concerne às notas da coisa.
Intrínseca e formal: é a atualidade que é um momento intrínseco e formal ao que é atual, é o estar presente do real desde sí mesmo, em si mesmo e por si mesmo.
- Todo o real meramente por ser real é intrínseca e formalmente respectivo: é mundo.
- A atualidade do real no mundo, isto é, o estar presente do real no mundo é justamente o "ser" do real.
8. O ser do real.
a. O problema de realidade e ser.
A nossa frase "o calor "é" quente".
- Ao contrapor realidade e estimulidade como dois tipos de formalidade de alteridade, colocávamos um exemplo.
+ Como alteridade de estimulidade, o calor é aquilo que se expressa dizendo: "o calor esquenta".
+ Como alteridade de realidade, o calor é aquilo que se expressa dizendo: "o calor "é" quente".
- Com este exemplo só queríamos esclarecer a diferença entre as duas formalidades de alteridade:
+ Na estimulidade, o calor pertence formalmente ao processo senciente do animal, é só signo desse processo: o calor esquenta.
+ Na realidade, o calor é algo ao qual as suas qualidades térmicas pertencem "de seu": é quente.
- Como "é quente" expressa realidade, notávamos que esse "é" de "é quente" não é um "é" entitativo (em princípio!!!), mas só um "é" copulativo.
- Agora podemos já profundizar no sentido desse "é".
+ Primariamente, "é quente" indica formalidade de realidade: as qualidades térmicas lhe pertencem em próprio ("de seu") ao calor (realidade quente).
+ Mas, ulteriormente, "é quente" expressa também o ser do calor (ser quente).
Isto coloca o problema do ser como diferença e articulação entre realidade e ser.
- O problema do ser se plasmou sempre ao fio da inteligência concebente.
- Vamos abordar o problema do ser desde a inteligência senciente (porque o ser é primeiro inteligentemente sentido, para poder ser ulteriormente conceituado!).
- Como mudou de alto a baixo o conceito de realidade, vai mudar radicalmente o conceito de ser: ser é algo muito mais radical e complexo que o oco "é" de que sempre se nos fala...
b. Ser do real é atualidade mundanal do real.
Temos já dito: ser do real é a atualidade primária e radical do real, é o real estando presente no mundo desde si mesmo enquanto real.
- O real enquanto real é transcendentalmente aberto.
- Essa abertura do real é abertura respectiva do real a toda realidade enquanto realidade (é a respectividade mundanal do real).
- Em virtude dessa respectividade mundanal do real, todo o real constitui uma unidade transcendental que é o mundo.
- A mera atualidade, o mero estar presente do real enquanto real no mundo é o ser do real.
Dois exemplos: o ser do carvalho e o ser do homem.
- A realidade carvalho e a realidade homem.
+ Um carvalho é "de seu" carvalho e mais nada; um homem é "de seu" homem e pronto: esta é a realidade carvalhina e a realidade humana.
+ Estas realidades são duas formas de realidade (forma carvalhina de realidade e forma humana de realidade) e dois modos de realidade (modo vital de realidade e modo pessoal de realidade).
+ Como toda realidade, são também figuras de instauração no mundo: o carvalho figura integrada no mundo, o homem figura relativamente absoluta no mundo.
+ Tudo isso pertence à realidade do carvalho e do homem.
- O ser do carvalho e o ser do homem.
+ A instauração do carvalho e do homem no mundo reflui (por assim dizer) físicamente sobre o carvalho e sobre o homem inteiros determinando a sua atualidade no mundo.
+ Esta atualidade, este estar presente o carvalho e o homem no mundo meramente enquanto reais, constitui justamente o ser do carvalho e o ser do homem.
+ Esta atualidade mundanal alcança todos os momentos da realidade do carvalho e do homem.
- Talidade: a realidade tal se torna "ser realidade tal".
- Forma de realidade: a forma de realidade se torna "ser forma de realidade".
- Modo de realidade: o modo de realidade se torna "ser modo de realidade".
- Figura de instauração no mundo: a figura de instauração no mundo se torna "ser figura de instauração no mundo".
+ No caso do homem, por exemplo, o modo de realidade pessoal se torna "Eu".
- O "Eu" é o ser da pessoa humana; por isso o homem diz: "isto ou aquilo 'sou Eu'".
- O "Eu" é a refluência da pura e simples realidade (mundo) na realidade pessoal humana instaurada na pura e simples realidade (mundo).
- Nas realidades não humanas o ser é certamente algo muito rudimentário; mas no homem o ser não é rudimentário: a sua realidade pessoal é atual no mundo como "ser Eu".
- O ser sempre compete à coisa real; portanto, ser é algo independente de toda intelecção: ainda que não houvesse intelecção haveria -e há- ser.
c. Ulterioridade do ser do real.
Toda atualidade é "ulterior" à atuidade; o "ser", como atualidade que é da realidade, é algo ulterior à realidade: é a "ulterioridade do ser".
Esta ulterioridade do ser a respeito da realidade tem uma estrutura formal própria: a "temporeidade".
- Certamente, não toda ulterioridade é tempórea; mas a ulterioridade do ser é tempórea.
- Não se trata de que a temporeidade seja uma estrutura fundada na ulterioridade, nem de que a ulterioridade seja algo fundado na temporeidade.
- Trata-se de que a estrutura mesma de "esta" ulterioridade "é" formalmente temporeidade: o caráter essencial da ulterioridade do ser é temporeidade.
- A temporeidade em que a ulterioridade do ser a respeito da realidade consiste, tem três faces: "ser" é sempre "já-é-ainda"; a atualidade da realidade no mundo consiste em que a coisa real "já-é" no mundo e em que a coisa real "ainda-é" no mundo.
- Trata-se não de três "fases" dum transcurso cronológico, mas de três "faces" estruturais da ulterioridade mesma do ser.
- A unidade intrínseca destas três faces é o que expressa o gerúndio "estar sendo"; a sua expressão adverbial é "enquanto"; ser é sempre e só ser "enquanto".
Observações fundamentais acerca da ulterioridade do ser a respeito da realidade.
- Ulterioridade não é posterioridade cronológica, mas posterioridade puramente formal, isto é, temporeidade.
- Daí que a temporeidade em que a ulterioridade do ser consiste não é unidade "estrutural" de três fases, mas unidade "modal" de três faces.
- Ulterioridade significa o seguinte:
+ Não significa que o ser seja acidental ao real (isto é absurdo, porque a atualidade mundanal é essencial ao real, compete "de seu" ao real).
+ Mas significa que realidade, não sendo formalmente ser, no entanto é "de seu" ulteriormente ser.
- O ser ulterior pertence ao real "de seu": o real tem que ter "de seu" (simplesmente por ser real) atualidade mundanal.
- Realidade não é ser, mas a realidade "realmente é"; não há esse reale, mas realitas in essendo.
- Não há ser substantivo, mas ser do substantivo.
+ Substantividade -lembremos- é suficiencia constitucional do sistema de notas para ser "de seu", para ser real: o real é substantividade.
+ Portanto, se o ser é do real, e se o real é substantivo, o ser é ser do substantivo (substantividade in essendo).
+ Não pode haver, por conseguinte, "ser substantivo" (como usualmente se diz), porque o ser mesmo carece de substantividade (só tem substantividade o real).
+ Por isso a realidade não é um modo de ser (ser real); ao invés: o ser é atualidade mundanal ulterior do real (realidade sendo).
+ Vejamos isso tudo no nosso exemplo do calor: o calor é quente; este "é quente" tem duas significações.
- Que "quente" é uma forma de realidade: realidade quente; esquentar é esquentar coisas.
- Que "ser quente" (estar esquentando) é uma maneira de estar no mundo; esquentar é estar no mundo esquentando.
d. Obliqüidade do ser do real.
O termo formal da intelecção senciente é sempre e só realidade; a realidade é apreendida diretamente em impressão.
Mas a realidade ulteriormente "é"; esta ulterioridade do ser da realidade está, portanto, "co-sentida" (sentida indiretamente) ao sentir a realidade.
Portanto, a realidade está sentida em "modo reto"; a ulterioridade está sentida em "modo oblíquo" (co-sentida).
Não se trata-se dum co-sentir acidental, mas dum co-sentir inexoravelmente físico e real, porque é justamente a realidade aquilo que fisicamente "é" de seu.
A apreensão do ser pertence, pois, à apreensão do real fisicamente, mas obliquamente: é a "obliqüidade do ser".
9. Dinamicidade do real.
a. Toda realidade enquanto realidade é dinâmica em si mesma e por si mesma, isto é, "da de si" realidade; dinamismo é "dar de si".
b. A dinamicidade do real não é consecutiva à realidade (como a ação ou a operação), mas um momento constitutivo da sua constituição formal enquanto realidade.
A transcendentalidade da realidade, como temos visto, é "aberta".
- Não é algo concluso (uma espécie de cânon de todo o real ou um conjunto de caracteres do real fixos duma vez por todas), como se pensa desde a inteligência concebente.
- É um caráter constitutivamente aberto: pende do que sejam as coisas reais, e não podemos saber se está fixado ou não o elenco de coisas reais enquanto reais.
+ Os gregos pensaram, por exemplo, que a substância expressava o real enquanto tal; mas a subsistência pessoal é outro tipo distinto de real enquanto tal.
+ Por isso, a filosofia medieval viu-se forçada a refazer a idéia do real enquanto tal desde um ponto de vista não substancial, mas subsistencial.
+ Infelizmente, porém, a metafísica medieval considerou a subsistência como modo substancial; com isso desbaratou-se a subsistência...
A abertura da transcendentalidade da realidade é "dinâmica".
- Poderia não sê-lo, mas "de fato" essa abertura da transcendentalidade do real é abertura dinâmica.
- Não se trata só de que possam ir aparecendo novos tipos de realidade (e, com isso, novos tipos de realidade enquanto realidade) mas de que esta aparição seja dinâmica.
- O dinamismo transcendental do real consiste em que é o real mesmo como real vai-se abrindo desde a realidade duma coisa a outros tipos de realidade enquanto realidade.
O dinamismo transcendental do real consiste formalmente não na evolução talitativa que estuda a ciência, mas na evolução transcendental que estuda a filosofia.
- A evolução como fato científico desempenha uma função cósmica que é meramente talitativa; como fato científico, ainda que bem fundado, é sempre discutível.
- A evolução transcendental consiste na evolução das coisas reais "enquanto reais", e não meramente na evolução das coisas reais "enquanto coisas".
+ Pela evolução transcendental, os distintos modos de realidade vão aparecendo não só sucessivamente, mas fundados transcendental e dinamicamente uns nos outros.
+ Isto poderia dar-se inclusive sem dar-se a evolução científica; não é só um fato científico, mas algo primário e radical: a transcendentalidade dinâmica do real.
Dinamicidade é "dar de si": toda realidade é real sendo a plenitude daquilo que é; esta plenitude é o momento de "dar de si" (ver o Curso de Filosofia do Mundo).
10. Funcionalidade do real.
a. Todo o real pela sua respectividade é real em função de outras coisas reais.
É a funcionalidade talitativa do real: o real é função do que são outras coisas reais segundo a sua talidade.
Assim, por exemplo, a luminosidade dum astro é função, depende, da sua temperatura.
b. Mas, ademais, todo o real está dependendo de outras realidades pelo momento mesmo de realidade, porque este momento de realidade é intrínseca e formalmente respectivo.
É a funcionalidade transcendental do real: é o amplíssimo conceito de dependência respectiva das substantividades e das sus notas enquanto reais.
Funcionalidade não é causalidade; causalidade é só um modo de funcionalidade: a dependência funcional de produção; mas há outros modos de funcionalidade: mera sucessão, lei, etc.
11. Momentos formais de realidade.
a. Nua realidade, forçosidade do real e poderosidade do real.
Nua realidade: é o momento segundo o qual a coisa é aquilo que é "de seu" em si mesma e por si mesma como é.
Forçosidade do real.
- É o momento segundo o qual a coisa é de seu "forçosamente assim".
- É o momento que expressamos ao dizer que tal ou qual coisa acontece ou tem que acontecer "pela força das coisas".
- Não consiste em força no sentido que tem na mecânica de Isaac Newton (Woolsthorpe, Inglaterra, 1642-1727), que concerne aos conteúdos do real, mas na forçosidade que compete ao "de seu".
Poderosidade do real.
- É o momento segundo o qual a formalidade de realidade da coisa domina sobre o conteúdo talitativo da coisa.
+ A realidade do real é "mais" que o seu conteúdo talitativo.
+ Este "mais" significa que a realidade "domina" sobre o seu conteúdo; esta dominância é o próprio da poderosidade do real.
+ Poderosidade é o modo primário e radical do poder do real enquanto real.
- Poderosidade não é forçosidade: toda forçosidade pode ser poderosidade; mas não toda dominância é forçosidade.
b. Nua realidade, forçosidade do real e poderosidade do real são três momentos tangentes do real, mas não são idênticos.
São tangentes.
- Não há forçosidade das coisas que dalguma maneira não esfregue mais ou menos à nua realidade.
- Não há poder que não tenda a ser forçosidade e atinja dalguma maneira à nua realidade.
Mas não são idênticos.
- Por isso têm dado lugar a conceitos distintos.
+ "De seu" como nua realidade é o que conceberam os gregos no conceito de physis, de natureza.
+ A forçosidade se expressou no conceito de anánke (necessário); não todo o natural é necessario, nem todo o necessário é natural, mas só quando é necessidade da nua realidade.
- O predomínio dum destes três momentos sobre os outros dois pode inclusive constituir distintos tipos de intelecção (mas sempre estão presentes os outros dois).
+ Saber ocidental (predomínio da nua realidade).
- O predomínio do momento de nua realidade constituiu o orto do nosso saber ocidental.
- A forçosidade, porém, esteve sempre presente desde o pensamento grego; diz Aristóteles que os jônicos viram-se forçados (anankatsómenoi) pela verdade.
+ Saber matemático egípcio e asiro-babilônico (predomínio da forçosidade).
- Subjaz a ele o predomínio da forçosidade.
- Assim descobriram, por exemplo, o que é para nós o teorema de Pitágoras.
- A necessidade da matemática egípcia e asiro-babilônica é mera forçosidade; não tem o caráter de necessidade dos elementos de Euclides, fundados na nua realidade e não na forçosidade.
+ O saber animista (predomínio da poderosidade).
- O momento do poder do real deu lugar à interpretação animista desse poder.
- Poderosidade não significa nem ânima nem animismo; o animismo, porém, é "um" desenvolvimento conceptivo da poderosidade do real.
- Talvez esta unidade dos três momentos é o que transparece expressamente no sentido, tão debatido, do arkhé de Anaximandro...
- O nossa saber ocidental, obstinado na nua realidade, esqueceu os outros dois momentos de forçosidade e poderosidade do real; urge recuperá-los!