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Seminário Missionário Arquidiocesano

“Redemptoris Mater”

de Brasília

 

 

 

 

Esquemas de Filosofia

Zubiriana

 

 

 

Filosofia da IntelecçãoHumana

 

 

(Apostilas)

 

 

Pe. Francisco-Javier Sotil Baylos

 

2003


 

 

 

 

Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo os seus próprios desejos, rodear-se-ão de mestres, que bajulem seus ouvidos; afastarão os seus ouvidos da verdade e os voltarão às fábulas.

(2 Timóteo 4,3-4)

 

Nada podemos contra a verdade, mas só a favor da verdade.

(2 Coríntios 13,8)

 

 

 

 

 

 

 

 

“Hoje estamos inegavelmente envoltos em todo o mundo por uma grande onda de sofística. Como nos tempos de Platão e de Aristóteles, hoje nos arrastam inundatoriamente o discurso e a propaganda. Mas a verdade é que estamos instalados modestamente, mas irrefragavelmente, na realidade. Por isso é necessário, hoje mais do que nunca, levar a termo o esforço de mergulhar no real em que já estamos, para arrancar com rigor à realidade dele ainda que só sejam algumas pobres lascas da sua intrínseca inteligibilidade.”

 

XAVIER ZUBIRI, Inteligencia sentiente * Inteligencia y realidad, Alianza Editorial - Fundación Xavier Zubiri, Madrid, 19914, p. 15.


I

 

O ATO DE INTELECÇÃO

É UM ATO DE APREENSÃO

 

 

 

 

A.   Em todo o pensamento filosófico ocidental há um dualismo entre sentir e inteligir.

 

 

 

1.     O dualismo sentir/inteligir na filosofia ocidental em geral

 

a.   Pelo menos desde Parmênides, o pensamento filosófico ocidental parte, como se se tratasse dum fato incontestável, de que há um dualismo entre sentir (sentidos, sensibilidade, percepção, intuição, conhecimento sensitivo, etc.), e inteligir (inteligência, entendimento, conceito, juízo, razão, conhecimento intelectivo, etc.).

b.   Os diferentes filósofos ocidentais afirmam esse dualismo sentir/inteligir, ainda que matizam diversamente a relação entre ambos os termos.

 

 

2.     O dualismo sentir/inteligir na filosofia grega e medieval

 

a.   Exposição

=   Sentir e inteligir são dois atos de duas faculdades essencialmente distintas: os sentidos e a inteligência.

=   Cada uma dessas duas faculdades tem uma função específica, determinada pela atuação das coisas sobre elas.

#   Os sentidos

+   Recebem os influxos do mundo exterior ao homem.

+   Fornecem à inteligência os dados sensíveis.

#   A inteligência

+   Recebe dos sentidos os dados sensíveis.

+   Submete esses dados às diversas operações intelectivas: conceituar, julgar, raciocinar, etc.

b.   Crítica

=   Neste assunto, a filosofia grega e medieval são imensamente vagas.

#   Dizem-nos aquilo que são sentir e inteligir enquanto “atos de” umas faculdades, mas não nos dizem aquilo que são sentir e inteligir enquanto “atos” em si mesmos e por si mesmos.

#   Resulta, então, que o presumível dualismo sentir/inteligir, enquanto atos em si mesmos e por si mesmos, bóia no vácuo; a que e em que se contrapõem formalmente inteligir e sentir enquanto atos e não enquanto atos-de umas faculdades?

#   A filosofia grega e medieval escorregam dos atos de sentir e de inteligir às faculdades que os executam.

=   Para determinar o que são formalmente sentir e inteligir, temos que atender diretamente ao sentir e ao inteligir enquanto atos em si mesmos e por si mesmos, kath'enérgeian, e não enquanto atos dumas faculdades, katà dynamin.

=   Com efeito, os atos são o básico, porque são fatos constatáveis e submetíveis a uma análise imediata; falar de faculdades, no entanto, é ir além dos fatos, é uma tarefa metafísica; e toda metafísica da inteligência requer uma análise prévia da intelecção enquanto ato.

=   Portanto, daqui adiante, quando falarmos de “inteligência”, estaremos nos referindo ao ato de “intelecção” e não a uma faculdade que executa esse ato.

 

 

3.     O dualismo sentir/inteligir na filosofia moderna

 

a.   Exposição

=   A filosofia ocidental, a partir de Descartes, mantém o dualismo clássico sentir/inteligir, mas rejeita a concepção clássica da intelecção como ato duma faculdade.

=   Realiza, então, duas operações conceituais.

#   Substantiva o carácter consciente dalguns atos humanos, quer dizer, dos atos conscientes, e os converte numa espécie de “super-faculdade”: “a” consciência, que é “o” dar-se-conta-de.

#   Faz da intelecção, enquanto ato, um ato de “a” consciência, um ato do “dar-se-conta-de”, porque considera que inteligência é formalmente consciência.

=   Esta concepção moderna da intelecção culmina na fenomenologia de Husserl, que é, precisamente, uma análise da consciência e dos seus atos.

b.   Crítica

=   Essas duas operações conceituais são inaceitáveis, porque não respondem aos fatos.

#   Não existe algo substantivo que seja “a” consciência; portanto, essa presumível consciência não é nada que possa executar atos.

+   Como dissemos, falar de “a” consciência é substantivar conceitualmente o momento “consciente” dos atos humanos conscientes.

+   Pois bem, isso não é um fato, mas uma ingente teoria; o único que temos como fato são os atos conscientes humanos, de índole muito diversa certamente, mas não “a” consciência ou “o” dar-se-conta-de.

#   É falso que a intelecção consista formalmente em “dar-se-conta-de”.

+   Com efeito, “dar-se conta de” é sempre e só “estar dando-me conta de algo que me está presente”; isso sim.

+   E o momento de “estar-me presente algo” nem é idêntico ao momento de “estar dando-me conta de” nem está fundado nele; ou seja, algo não me está presente porque estou dando-me conta de que me está presente.

+   Tudo pelo contrário: o momento de “estar-me presente algo” é fundante do momento de “estar dando-me conta de”; ou seja, estou dando-me conta de algo porque esse algo me está já presente.

+   Portanto, este “estar dando-se conta” em si mesmo e por si mesmo não é um ato, mas só um dos dois momentos do ato de intelecção.

=   A filosofia moderna, dentro do ato de intelecção, escorrega sobre o momento de “estar-me presente algo” e atende só ao momento de “dar-se conta de”.

 

 

 

B.   Inteligir enquanto ato é um modo de apreensão.

 

 

 

1.     A intelecção enquanto ato consiste na unidade indissolúvel de dois momentos dum único e físico “estar”.

 

a.   Como acabamos de dizer, o ato de intelecção consiste formalmente num “único” estar, em que me “está” presente algo (momento apresentante), do qual “estou” dando-me conta (momento consciente).

b.   Este único “estar” em que consiste o ato de intelecção é “físico”, quer dizer, não é “intencional”.

=   O intencional na filosofia

#   A filosofia chama de “intencional” o momento de “referência a” um termo que têm alguns atos.

+   Por exemplo, o ato de dar-me conta dum barulho tem um momento intencional, um momento de “referência a” (um barulho), um momento no qual “se refere a” (um barulho), que é justamente o momento de “dar-me conta de” (um barulho).

+   A mesma coisa: o meu ato de ter desejos dum bombom tem um momento intencional, um momento de “referência a” (um bombom), um momento no qual “se refere a” (um bombom), que é precisamente o momento de “ter desejos de” (um bombom).

+   O meu ato de dar-me conta de um barulho ou de ter desejos dum bombom, em si mesmos e por si mesmos serão aquilo que forem, mas o seu momento de “referência a” algo, não importa o que for, é um momento “intencional”.

#   Analogamente, a filosofia chama de “intencional” também o “termo de” esse momento de “referência a” que têm alguns atos, considerado esse termo “só” como “termo de” essa referência.

+   Por exemplo, é intencional o “barulho” do qual se dá conta o meu ato de dar-me conta de um barulho, considerado esse barulho “só” como termo do meu “dar-me conta de”.

+   A mesma coisa: é intencional o “bombom” do qual se dá conta o meu ato de ter desejos dum bombom, considerado esse bombom “só” como termo do meu “ter desejos de”.

+   O barulho e o bombom em si mesmos e por si mesmos serão o que forem, mas considerados só como termos do meu “dar-me conta de” e do meu “ter desejos de”, são intencionais.

=   Pois bem, o ato de intelecção não é intencional, mas “físico”.

#   Com efeito, o ato de intelecção não é intencional porque não é um mero ato de referir-me a algo, de “dar-me conta de algo”, mas é, como vamos ver demoradamente, um “físico” ““estar” dando-me conta de algo que me “está” presente”.

#   A intelecção enquanto ato consiste num único “estar” no qual eu “estou” “em” a coisa e “com” a coisa, ou seja, “fisicamente” (não “estou” “de” a coisa, ou seja, intencionalmente), e no qual a coisa “está” “em” minha intelecção e “com” minha intelecção, ou seja, “fisicamente” (não “está” “de” minha intelecção, ou seja, intencionalmente).

 

 

2.     A intelecção enquanto ato é “apreensão”.

 

a.   Não nos interessa o que é o ato de intelecção como “ato-de” uma faculdade (filosofia grega-medieval) ou como “ato-de” uma presumível consciência (filosofia moderna), mas como “ato” em si mesmo e por si mesmo.

b.   Pois bem, como ato em si mesmo e por si mesmo, a intelecção, em primeira instância, é um ato que consiste simplesmente em “apreensão”.

=   Inteligir é o ato único dum físico “estar”, constituído pela unidade de dois momentos: precisamente e formalmente porque algo “me “está” presente” (momento apresentante), ““estou” dando-me conta” desse algo presente (momento consciente).

=   Em primeira instância, inteligir enquanto ato é estar “apreendendo” (=captando) algo que me está presente.

c.    A intelecção enquanto “ato-de” uma faculdade ou como “ato-de” uma consciência é uma teoria; a intelecção enquanto “ato” apreensivo é um fato.

 

 

3.     Como determinar a física índole essencial e constitutiva da apreensão intelectiva?

 

a.   Primeiro, analisaremos o modo primário e radical de apreensão intelectiva.

=   Rejeitamos a análise por via indutiva.

#   Esta via indutiva consistiria em dois passos:

+   Primeiro, fazer a computação dos diversos tipos de apreensão intelectiva que o homem executa.

+   Segundo, tratar de obter por comparação aquilo que esses diversos tipos têm em si mesmos e por si mesmos de apreensão intelectiva.

#   Esta via indutiva não nos serve por dois motivos.

+   Primeiro, porque nos daria, no melhor dos casos, um “conceito geral” ou uma espécie de “mínimo denominador comum” ou algo assim como um “esperanto” da apreensão intelectiva, mas não a “realidade física” do ato apreensor que constitui a apreensão intelectiva enquanto tal, e que é aquilo que nos interessa.

+   Segundo, porque nunca estaremos seguros de ter feito a computação exaustiva dos diversos tipos de apreensão intelectiva.

=   Escolhemos uma análise por via direta do modo primário e radical de apreensão intelectiva.

#   É que os diversos tipos de apreensão intelectiva, como veremos, não são meramente “tipos” distintos de apreensão intelectiva, mas “modalizações” do modo primário e radical de apreensão intelectiva.

#   A nossa análise nos levará, portanto, a encontrar a índole essencial do modo primário e radical de apreensão intelectiva, e a determinar todos os demais modos de apreensão intelectiva precisamente como “modalizações” dele.

#   Assim obteremos não um conceito geral da apreensão intelectiva, ou coisa semelhante, mas a índole “constitutiva” da apreensão intelectiva enquanto tal.

b.   Segundo, dentro da análise do modo primário e radical de apreensão intelectiva, começaremos analisando a diferença entre a apreensão senciente (=sentir) e a apreensão intelectiva (=inteligir).

=   É possível achar esta diferença entre a apreensão senciente e a apreensão intelectiva justamente por isso, porque ambas são atos de apreensão (tanto sentir quanto inteligir consistem em estar “apreendendo” algo que me está presente), e ademais porque ambas podem apreender o mesmo termo (por exemplo, sinto “calor” e intelijo também que esse “calor” é a energia produzida pela vibração acelerada das moléculas de algum corpo).

=   Portanto, acharemos a índole constitutiva do inteligir na diferença entre sentir e inteligir como modos diversos da apreensão dum mesmo termo: por exemplo, o calor.

=   Vamos, pois, analisar em si mesmas e por si mesmas as índoles da apreensão senciente (sentir), e da apreensão intelectiva (inteligir), começando pela apreensão senciente.


II

 

A APREENSÃO SENCIENTE

 

 

 

 

A.   A apreensão senciente, o sentir, é um processo que consiste na unidade de três momentos.

 

 

 

1.     Momento de suscitação

 

a.   O sentir, quer dizer, o processo senciente do animal (humano ou não) começa quando o animal é suscitado por algo, seja de caráter exógeno seja de caráter endógeno; é o momento que chamamos de “suscitação”.

b.   Suscitação não é excitação.

=   Excitação

#   É um conceito usual na psicofisiologia animal, que tem caráter exclusivamente bioquímico.

#   É o primeiro momento dum processo fisiológico, quer dizer, aquilo que desencadeia uma “função” anatomofisiológica, por exemplo, uma contração muscular.

#   O sujeito, por assim dizer, do processo fisiológico é uma estrutura anatomofisiológica (uma fibra muscular estriada, por exemplo).

=   Suscitação

#   Suscitação é o primeiro momento dum processo senciente, quer dizer, aquilo que desencadeia, como veremos, uma “ação” animal, por exemplo, fugir, atacar, etc.

#   As ações do animal são suscitadas por aquilo que apreende (=capta) sencientemente, por exemplo, uma presa, etc.

#   Com as mesmas “funções” anatomofisiológicas, o animal executa as mais diversas “ações” da vida dele.

#   O sujeito, por assim dizer, do processo senciente é o animal inteiro.

 

 

2.     Momento de modificação tônica ou afeto

 

a.   O animal tem em todo instante um determinado “estado de tom vital”.

b.   A suscitação recai sobre o estado de tom vital em que se encontra o animal e o afeta modificando-o: é o segundo momento do processo senciente: a “modificação tônica” ou “afeto”.

 

 

3.     Momento de resposta

 

a.   O animal responde com uma ação à modificação tônica determinada pela suscitação: é o “momento de resposta”.

b.   A apreensão duma presa, por exemplo, modifica o tom vital do animal e determina uma resposta de ataque, etc.

c.    Não confundamos “resposta” com “efeção”.

=   A efeção é uma reação dos chamados “efetores”; é sempre e só momento duma função anatomofisiológica.

=   A resposta é sempre uma “ação” do animal inteiro.

#   Com os mesmos efetores, a resposta pode ser muito diversa.

#   Pode consistir inclusive em não fazer nada (=quiescência); a quiescência, efetivamente, é um modo positivo de resposta: é a ação dum positivo não fazer nada.

 

 

4.     Observação importantíssima

 

a.   É um erro grave pensar que o sentir consiste só no momento de suscitação, e que os outros dois momentos, a modificação tônica e a resposta, são consecutivos ao sentir.

b.   Isso não é assim; o sentir está constituído estritamente pela essencial e indissolúvel unidade dos três momentos do processo senciente: suscitação, modificação tônica e resposta.

 

 

 

B.   O formalmente constitutivo da apreensão senciente, do sentir, é apreender em “impressão”.

 

 

1.     O momento de suscitação da apreensão senciente pode ser chamado justamente de “apreensão senciente”.

 

a.   Como vimos, a unidade processual do sentir está determinada pela estrutura formal do primeiro momento do processo, quer dizer, da suscitação, ou seja, do momento no qual o senciente é suscitado por algo.

b.   Ademais, dizer que o senciente é suscitado por algo equivale a dizer que “apreende” que é suscitado por esse algo.

c.    Portanto, a suscitação, enquanto “apreensão daquilo que suscita o senciente” e enquanto “determinante de todo o processo senciente”, podemos chamá-la justamente de “apreensão senciente”; a partir de agora, sempre que falemos da apreensão senciente estaremos nos referindo ao momento de suscitação do processo senciente.

d.   Vamos ver em que consiste precisamente e formalmente a apreensão senciente ou suscitação.

 

 

2.     A apreensão senciente (suscitação) é formalmente apreender em “impressão”.

 

a.   O formalmente constitutivo da apreensão senciente é apreender “impressivamente”; a apreensão senciente é constitutivamente apreensão “impressiva”.

b.   A filosofia, tanto antiga quanto moderna, ou não reparou nesta impressividade da apreensão senciente, ou (mais freqüentemente) reparou nela, mas limitando-se a descrever as diversas impressões, sem fazer uma análise rigorosa da estrutura formal da impressividade.

c.    É absolutamente imprescindível conceituar com precisão aquilo que é impressão, para poder falar do sentir duma maneira rigorosa.

 

 

3.     A estrutura formal da impressão está constituída pela unidade de três momentos.

 

a.   Afecção

=   A impressão é, antes de tudo, “afecção” do senciente pelo sentido: cores, sons, temperatura, dores, odores, sabores, pressões, etc., afetam o senciente.

=   Em virtude deste momento afetante dizemos que o senciente “padece” a impressão.

=   Não confundamos “afecção” com “afeto”.

#   Afeto é o segundo momento do processo senciente: o momento de modificação tônica; no afeto, aquilo que é afetado é o estado de tom vital do animal.

#   Afecção, no entanto, é o primeiro momento da impressão; na afecção, aquilo que é afetado é o sistema de receptores sencientes do animal.

=   Insuficiência da concepção da “afecção” na filosofia ocidental

#   Desde as suas origens na Grécia, a filosofia ocidental conceituou a impressão quase exclusivamente como afecção; por isso qualificou as impressões como pathémata.

#   Ao mesmo tempo, contrapôs as impressões “passíveis” (pathémata), próprias do sentir passível, aos pensamentos “impassíveis”, próprios do inteligir impassível (sem páthos, ou seja, apathés).

#   Pois bem, todos esses qualificativos da impressão constituem uma descrição (ainda por cima inexata) da impressão, mas não uma determinação formal da mesma.

#   É insuficiente conceituar a impressão atendendo só ao seu momento de afecção; é essencial e de extrema importância, como veremos, atender aos outros dois momentos da impressão.

b.   Alteridade

=   Aquilo que afeta o senciente lhe está presente na afecção como “outro”, quer dizer, o senciente não confunde aquilo que o afeta nem consigo mesmo nem com outras coisas que o afetam; é o momento de “alteridade” do apreendido em impressão.

=   Este momento de alteridade da impressão está constituído pela unidade de dois momentos distintos.

#   Conteúdo de alteridade

+   Aquilo que afeta o senciente é apreendido como outro pelo senciente na sua afecção, em primeiro lugar porque tem um conteúdo determinado: esta cor, esta dureza, esta temperatura, este peso, esta forma, este brilho, etc.

+   Em virtude disso, o senciente não confunde, por exemplo, a fome que o afeta com as moscas que também o afetam.

+   A filosofia grega e medieval atendeu exclusivamente a este momento do conteúdo de alteridade; mas este momento é só um dos dois momentos da alteridade do apreendido em impressão.

#   Formalidade de alteridade (atenção que aqui está em jogo toda a filosofia da intelecção e da realidade!).

+   Aquilo que afeta o senciente como outro na afecção não lhe está presente só como “efetivamente outro”, quer dizer, só por ter um conteúdo determinado, mas lhe está presente como “formalmente outro”, quer dizer, com uma determinada formalidade de alteridade.

+   Fundamentalmente por esta formalidade de alteridade com a qual lhe está presente ao senciente aquilo que lhe afeta, o senciente não confunde aquilo que lhe afeta consigo mesmo.

+   Efetivamente, esta formalidade de alteridade é o caráter do apreendido em impressão, em virtude do qual o apreendido em impressão está presente ao senciente como formalmente “independente” ou “autônomo” a respeito dele mesmo.

+   A formalidade de alteridade, independência, autonomia, não consiste em que o sentido esteja “além” (à parte, fora) da impressão do senciente (como pensaram gregos e medievais), mas em que o apreendido em impressão está presente, fica, “em” a impressão, mas como algo outro, independente, autônomo, a respeito do senciente e a respeito de outros conteúdos apreendidos por ele em impressão.

+   Por exemplo:

-   Se me afeta uma cor ou um som, esse conteúdo me está presente “em” a afecção visual ou auditiva (não fora ou à parte dela), formalmente como outro, como independente, como autônomo a respeito de mim.

-   Por isso, não basta que eu não queira sentir essa cor ou esse som ou essa dor, para que desapareçam; a intensidade deles flutua independente e autonomamente a respeito de mim.

+   Este momento de formalidade de alteridade do apreendido em impressão não é idêntico ao momento do seu conteúdo de alteridade; efetivamente, como veremos no capítulo seguinte, um mesmo conteúdo pode ter distintos modos de formalidade de alteridade.

=   Tanto o conteúdo de alteridade do apreendido em impressão quanto a sua formalidade de alteridade dependem em grande parte da índole do senciente.

#   O conteúdo de alteridade do apreendido em impressão depende em grande parte do “sistema de receptores sencientes” que tem o animal; por exemplo, uma toupeira não apreende conteúdos cromáticos porque carece de receptores visuais.

#   A formalidade de alteridade do apreendido em impressão depende em grande parte da “habitude” que tem o senciente.

+   O mesmo conteúdo de alteridade pode ter diversos modos de formalidade de alteridade, quer dizer, pode estar presente formalmente como outro na apreensão senciente de modos distintos, como veremos no capítulo seguinte.

+   Porque a formalidade de alteridade do apreendido em impressão não depende do sistema de receptores sencientes do animal, mas do seu próprio “modo de haver-se” com os conteúdos apreendidos, quer dizer, depende da sua “habitude” (habitude não é o mesmo que costume ou que hábito; habitude é o modo que tem o senciente de “haver-se” com as coisas na sua apreensão senciente).

+   Por exemplo:

-   Um chimpanzé e um homem têm praticamente o mesmo sistema de receptores visuais.

-   Mas, como veremos no capítulo seguinte, o “modo de haver-se” com as coisas na sua apreensão senciente que tem o chimpanzé é essencialmente distinto do que tem o homem.

-   Por isso, um mesmo conteúdo de alteridade apreendido visualmente por ambos (uma pedra, por exemplo), apesar de ser praticamente o mesmo conteúdo de alteridade, está presente formalmente como outro, como independente, como autônomo, de modo essencialmente distinto na impressão senciente do chimpanzé e na do homem, como veremos no capítulo seguinte.

c.    Força de imposição

=   O presente como outro na afecção “impõe-se” ao senciente com uma força que pode  variar muito duma afecção a outra: é o momento de “força de imposição” do apreendido em impressão.

=   A força de imposição não se identifica com a intensidade da afecção.

#   Uma afecção muito intensa pode ter uma força de imposição mínima; por exemplo, para quem vive perto dum aeroporto, o estrondo dum avião que passa, apesar de afetar muito intensamente o seu sistema de receptores, nele tem seguramente muita pouca força de imposição...

#   Uma afecção muito pouco intensa pode ter uma força de imposição enorme; por exemplo, para quem vive num país agitado por terremotos, um rumor leve e surdo, apesar de afetar com muita pouca intensidade o seu sistema de receptores, nele tem seguramente uma grande força de imposição...

 

 

4.     Afecção, alteridade e força de imposição na filosofia ocidental

 

a.   A filosofia ocidental, tanto antiga quanto moderna, atendeu quase exclusivamente à afecção, apontou vagamente à alteridade (fixando-se só no conteúdo de alteridade e ignorando completamente a formalidade de alteridade) e jamais reparou na força de imposição.

b.   É de radical importância que a filosofia atenda aos “três” momentos cuja unidade intrínseca constitui a impressão, e, sobretudo, que ancore a sua reflexão na formalidade de alteridade, porque, como vamos ver, a formalidade de alteridade é a que determina os distintos modos de apreensão senciente.


III

 

OS DOIS MODOS DE APREENSÃO SENCIENTE:

APREENSÃO DE ESTIMULIDADE

E APREENSÃO DE REALIDADE

 

 

 

 

A.   Apreensão de estimulidade

 

 

 

1.     A apreensão de estimulidade consiste formalmente em impressão de estimulidade.

 

a.   A impressão de estimulidade consiste “meramente” em desencadear o processo senciente.

b.   Vamos entendê-lo vendo esse caráter de estimulidade nos três momentos da impressão.

 

 

2.     Afecção de estimulidade, alteridade de estimulidade e força de imposição de estimulidade

 

a.   Afecção de estimulidade (afecção meramente estimúlica)

=   O que é afecção “estimúlica”.

#   Estímulo é tudo aquilo que modifica o tom vital do animal e desencadeia uma resposta dele.

#   Para que haja afecção estimúlica são necessários dois momentos:

+   Que algo seja apreendido como estímulo, quer dizer, como algo que modifica o tom vital e desencadeia uma resposta.

+   Que esse algo esteja afetando efetivamente como estímulo ao apreensor.

#   Insistimos: não há afecção estimúlica se não se dão estes “dois” momentos.

+   Efetivamente, um apreensor pode apreender o caráter de estímulo de algo, sem estar sendo afetado pelo estímulo.

+   Por exemplo: posso apreender o caráter de estímulo da dor de dentes que está sentindo um amigo meu (apreendo que o seu tom vital está pelo chão e que está respondendo dando gritos de dor), sem que essa dor de dentes esteja doendo em mim; neste caso, tenho apreensão de estímulo de dor de dentes, mas não afecção estimúlica de dor de dentes.

=   O que é afecção “meramente estimúlica”.

#   “Mero estímulo” é tudo aquilo que consiste “só” em modificar o tom vital do animal e em desencadear uma resposta dele.

#   Afecção “meramente estimúlica” (afecção de “mero estímulo”) consiste em apreender o estímulo como “mero estímulo”, ou seja, como “mero modificante do tom vital e como mero desencadeante de resposta”.

# Afecção meramente estimúlica é aquilo que expressamos “humanamente” quando dizemos, por exemplo, que “o calor só esquenta” o cachorro; estamos querendo expressar que o calor é apreendido pelo cachorro em afecção térmica (como algo “esquentante”), e “meramente” como afecção térmica modificante do tom vital do cachorro e desencadeante da resposta dele: fugir do calor, acolher-se a ele, etc. (“só” como algo esquentante).

b.   Alteridade de estimulidade (alteridade de signitividade)

=   A formalidade de alteridade da impressão de estimulidade é “formalidade de estimulidade”.

=   Esta formalidade de estimulidade consiste mais precisamente em “formalidade de signitividade”.

#   Como em toda impressão, na impressão de estimulidade o apreendido está presente efetivamente e formalmente como “outro” que o apreensor e que outros conteúdos apreendidos.

#   Mas, na impressão de estimulidade, a formalidade de alteridade do apreendido se esgota em ser mero estímulo de modificação tônica e de resposta, quer dizer, em ser mero “signo”.

#   Assim pois, ser signo consiste em ser “mero” modificante do tom vital e mero desencadeante de resposta; assim, por exemplo, o calor é signo térmico, a luz é signo luminoso, etc.

=   Independência ou autonomia estimúlica (signo objetivo)

#   O apreendido como meramente estimúlico é apreendido como “outro” (autônomo e independente do apreensor e de outros meros estímulos), mas só como signo, só como modificante do tom vital e só como desencadeante de resposta.

#   Por exemplo, para um cachorro, todos os caracteres térmicos do calor que afeta o seu sistema de receptores térmicos pertencem ao calor só enquanto apreendido como algo que modifica o seu tom vital e desencadeia uma resposta dele; para ele, aquele que lhe dá de comer é ““outro” mero estímulo”, essa cadela em cio é ““outro” mero estímulo”, o osso que enterrou é ““outro” mero estímulo”, etc.

#   A alteridade, a autonomia, a independência estimúlica é só “objetividade signitiva”, quer dizer, enquanto “outro”, o signo tem só independência ou autonomia de “signo objetivo”: é “algo objetivo”, mas é só “algo signo” (algo assim como se, quando eu vejo um sinal de tráfico que indica perigo, por exemplo, eu visse só algo que se reduz a indicar-me perigo, algo que consiste só em indicar-me perigo).

c.    Força de imposição de estimulidade (força de imposição objetiva)

=   A alteridade meramente signitiva se impõe ao apreensor com força de imposição objetiva.

#   O signo repousa signitivamente sobre si mesmo e se impõe ao animal como signo objetivo.

#   O signo recebe a sua força de imposição da sua objetividade, quer dizer, da sua alteridade ou independência ou autonomia meramente objetivas.

=   O desencadeamento da resposta no processo senciente de estimulidade tem sempre e só o caráter duma imposição objetiva.

 

 

3.     A apreensão senciente de estimulidade constitui o “puro sentir” dos meros animais.

 

 

 

B.   Apreensão de realidade

 

 

1.     A formalidade de alteridade no homem é formalidade de realidade.

 

a.   Peculiaridade da apreensão “senciente” humana

=   Como animal que é, o animal humano tem estrita apreensão senciente: nos seus sentidos, o homem apreende as coisas tão em impressão quanto o mero animal.

=   Mas esta apreensão senciente humana tem um caráter peculiar e exclusivo do homem: não é impressão de estimulidade, mas impressão de realidade.

=   Aquilo que determina essa peculiaridade da apreensão senciente humana é justamente a formalidade de alteridade com a qual o homem apreende as coisas em impressão.

=   Vamos diretamente à análise dessa formalidade humana de alteridade que é “formalidade de realidade”.

b.   A formalidade de “realidade”

=   Diferença entre formalidade de estimulidade e formalidade de realidade

#   Formalidade de estimulidade (apreensão senciente do mero animal)

+   Insistimos: o conteúdo (esta cor, este som, este sabor, este calor, etc.) é apreendido como “outro” pelo mero animal, mas só como modificante do seu tom vital e só como desencadeante da sua resposta.

+   Por exemplo:

-   O mero animal apreende o calor como esquentante, e só como esquentante.

-   É aquilo que expressamos humanamente dizendo: para o mero animal, o calor só esquenta.

-   “Só esquenta” significa aqui que a formalidade de alteridade do calor consiste “meramente”, para o mero animal, em que o calor é “só” aquilo que o mero animal sente na apreensão esquentante do calor.

-   O calor que um cachorro, por exemplo, sente não é algo “subjetivo” (o cachorro não confunde o calor consigo mesmo nem com a fome, por exemplo), mas algo “objetivo” (o cachorro apreende o calor como perfeitamente distinto de si mesmo e de outras coisas apreendidas).

-   Esta objetividade esquentante do calor, que apreende o mero animal, consiste só em estar modificando o seu tom vital e desencadeando a sua resposta; é alteridade, independência, autonomia, só no processo senciente e para o processo senciente; o calor pertence formalmente ao processo senciente mesmo como mero modificante do tom vital e como mero desencadeante de resposta.

#   Formalidade de realidade (apreensão senciente do animal humano)

+   No caso do calor, o homem apreende o calor como algo cujos caracteres térmicos pertencem ao calor “em próprio”, “de seu”, quer dizer, como “realidade”; o homem apreende, igual que o cachorro, que o calor lhe esquenta; mas o homem apreende que o calor lhe esquenta sendo “de seu” esquentante, sendo calor “em próprio”, sendo calor “real”.

+   “De seu”, “em próprio” não significa “propriedade”, mas simples “pertença”.

-   Propriedade duma coisa em sentido estrito é tudo aquilo que “emerge” dessa coisa; por exemplo, o peso é propriedade dum corpo porque emerge desse corpo.

-   Pertença é propriedade só em sentido amplíssimo.

*   Toda propriedade é própria de algo, pertence-lhe em próprio.

*   Mas não tudo aquilo que pertence em próprio a algo é propriedade dele em sentido estrito.

*   Algo pode pertencer a alguma coisa de muitas formas e não só como “propriedade” em sentido estrito.

*   Assim, no exemplo do calor, dizemos que os caracteres térmicos pertencem “em próprio” ao calor não no sentido de que sejam “propriedades” do calor (quer dizer, de que sejam caracteres que emergem dum “sujeito” chamado de calor), mas simplesmente no sentido de que esses caracteres pertencem em próprio ao calor, de que são “o próprio calor” mesmo.

+   Na formalidade de realidade, a coisa suscitante é apreendida como real, como sendo “em próprio”, “de seu”, aquilo que é.

-   Na formalidade de realidade, todos os caracteres térmicos do calor são caracteres que pertencem ao calor mesmo.

-   Na formalidade de realidade, o calor, esquentando o mesmo que esquenta na apreensão de estimulidade, está presente não só como pertencente ao processo senciente, mas em si mesmo enquanto calor “em próprio”, enquanto “de seu” calor.

-   É aquilo que expressamos dizendo: “o calor é quente”.

*   Aqui “é” não significa “ser” em sentido entitativo, mas “realidade”; realidade jamais consiste em ser! (como veremos).

*   O que acontece é que não se pode prescindir da linguagem entitativa criada precisamente pela filosofia ocidental que sempre identificou realidade e ser.

*   Por isso é inevitável, na nossa língua entificada, recorrer ao “é” para expressar aquilo que em próprio pertence a algo, isto é, para expressar realidade.

*   Ao dizer que o calor “é quente”, o verbo “é” só indica (de momento) que os caracteres que tem o apreendido (o calor) lhe pertencem “de seu”, “em próprio”.

-   Assim pois, neste novo modo de formalidade de alteridade que é a formalidade de realidade, já não se trata da alteridade do calor como meramente pertencente signitivamente ao processo senciente (formalidade de estimulidade), mas se trata da alteridade do calor que, como tal, só pertence ao calor (formalidade de realidade).

-   O calor apreendido pelo animal humano já não consiste formalmente em ser mero signo de resposta (=“mero estímulo”), mas em ser quente “em próprio”, “de seu” (=“real”).

+   Alteridade, independência, autonomia “real”

-   O puro sentir do mero animal apreende as coisas “estimulicamente” e só estimulicamente (com alteridade, autonomia, independência objetiva signitiva).

-   O sentir humano apreende as coisas “realmente” (com alteridade, autonomia, independência real).

=   Duas concepções falsas de “realidade”

#   Realismo clássico

+   O realismo usual, também chamado de realismo ingênuo, pensa mais ou menos assim:

-   Os sentidos captam as qualidades sensíveis (conteúdos) das coisas na apreensão senciente.

-   “Depois” da apreensão senciente, a partir dos dados sensíveis recebidos da apreensão senciente, a razão “deduz” aquilo que as coisas são no mundo além da apreensão senciente.

-   A realidade das coisas é exatamente “aquilo que as coisas são em si mesmas no mundo “além” e independentemente da apreensão senciente delas”.

-   As qualidades sensíveis das coisas na apreensão senciente coincidem basicamente com aquilo que as coisas são realmente, quer dizer, no mundo.

+   Todas essas afirmações são radicalmente falsas.

-   Os sentidos humanos (veremos o porquê no próximo capítulo) apreendem sencientemente as coisas “com formalidade de realidade”.

*   A realidade como formalidade é o modo como o apreendido está presente na apreensão senciente mesma.

*   Realidade é a formalidade “de seu”, “em próprio” do que está presente na apreensão senciente, o modo de ficar as coisas no seu estar presentes fisicamente na apreensão senciente.

-   Realidade não é algo “inferido” (deduzido pela razão), mas algo imediatamente apreendido na apreensão senciente humana.

*   A razão humana “chega tarde demais”...

*   Quando a razão humana chega, a apreensão senciente humana já apreendeu em impressão a formalidade de realidade das coisas que lhe estão presentes em impressão...

-   Realidade não é aquilo que as coisas são em si mesmas no mundo “além” da apreensão senciente, mas as coisas “de seu” seja no mundo seja na apreensão senciente.

*   Não há duas áreas (área da apreensão senciente e área da realidade), mas duas “áreas de realidade” (área de realidade na apreensão senciente e área de realidade no mundo).

*   Mais adiante veremos demoradamente em virtude do que a formalidade de realidade compete à coisa não só enquanto apreendida, mas em si mesma.

*   Mas podemos adiantar que jamais haverá salto do apreendido ao real, mas uma formalidade de realidade una e única na sua dupla face de apreendida e de própria em si mesma.

-   A ciência moderna mostra claramente que as qualidades sensíveis das coisas na apreensão senciente não coincidem com aquilo que as coisas são no mundo.

*   Pensar hoje que as coisas no mundo são coloridas, por exemplo, é uma autêntica ingenuidade.

*   Mas muito mais gravemente ingênuos são os subjetivistas que pensam, por isso, que as cores, por exemplo, não são reais, mas só impressões subjetivas.

*   Mais adiante desmascararemos tanto o realismo ingênuo quanto o subjetivismo ingênuo...

#   Husserl e Heidegger

+   Dizem o seguinte:

-   Realidade é formalmente o “sentido” que as coisas têm para nós homens.

-   De fato, os homens apreendemos formalmente na apreensão, por exemplo, paredes, mesas, portas, etc.

+   Isto também é falso.

-   Na apreensão impressiva, eu jamais apreendo uma mesa, por exemplo.

-   Ao apreender aquilo que depois, enquanto parte da nossa vida humana, chamamos de “mesa”, aquilo apreendido como realidade (como “de seu”, como “em próprio”) é um sistema de notas “reais” (“de seu”), por exemplo, dimensão, forma, peso, cor, etc., e não uma mesa, porque nada é “de seu” mesa; a mesa é mesa só enquanto que a coisa real apreendida tem função ou sentido de mesa na vida humana.

-   Há que distinguir com rigor “coisa-sentido” de “coisa-realidade”.

*   “Coisa-sentido” são as coisas reais só enquanto momentos ou partes da vida humana; nada é “de seu” coisa-sentido.

*   “Coisa-realidade”.

   São as coisas apreendidas como algo “de seu”.

   No âmbito da atuação, coisa-real é a que atua sobre as demais coisas ou sobre si mesma, em virtude formalmente das notas que possui “de seu”.

   A mesa, por exemplo, não é coisa-realidade, porque não atua sobre as demais coisas e sobre si mesma como mesa (como coisa-sentido), mas como pesada, dura, grande, etc. (como coisa-realidade).

 

 

2.     Os três momentos da impressão de realidade

 

a.   Afecção real

=   A afecção no mero animal é meramente estimúlica.

#   O mero animal é afetado pelo estímulo como mero estímulo dele; por exemplo, o frio afeta o cachorro como mero estímulo duma modificação tônica (tristeza, etc.) e duma resposta (esquentar-se, etc.).

#   Ao ser estimulicamente afetado pelo frio, dizemos que o cachorro “sente frio”.

=   A afecção no homem é afecção real.

#   O homem é afetado por algo que é real, que é “em próprio”, “de seu” aquilo que é: a afecção humana é afecção real e não só afecção estimúlica.

#   O homem não só sente frio, mas se sente “realmente” frio; sente que está afetado realmente por coisas reais (calor real, luz real, som real, odor real, etc.) afetantes, que está afetado em realidade.

+   Todo estímulo é apreendido pelo homem como “realidade” estimulante.

+   Ademais, não toda realidade apreendida pelo homem tem que ter forçosamente o caráter de estímulo (uma paisagem ou um som elementar não é forçosamente estímulo para o homem).

 

b.   Alteridade de realidade

=   Conteúdo e formalidade de realidade

#   Na afecção real nos está presente algo “outro” que nós e que as demais coisas.

#   Esta alteridade tem um “conteúdo” próprio bastante comum com o da apreensão meramente animal.

#   Aquilo que é essencialmente distinto é o modo de formalidade de alteridade com o qual esse conteúdo está presente na impressão.

+   O conteúdo está presente como “real”, quer dizer, como algo “de seu”, “em próprio”, e não como “signante”.

+   O calor é realmente quente: o calor e todos os caracteres térmicos dele são sentidos como “de seu” calor; o calor é assim calor “em próprio”, calor real.

=   Caráter de anterioridade (prius) do apreendido como real a respeito da sua apreensão impressiva.

#   Vamos ver agora o que adiantamos antes: em virtude do que a formalidade de realidade compete à coisa não só enquanto apreendida, mas por ela mesma.

#   A formalidade de realidade (“de seu”, “em próprio”) tem um caráter essencialmente e absolutamente decisivo: o caráter de ser prius (formalmente “anterior”).

+   Por exemplo, o calor apreendido como real é algo tão “de seu”, tão “em próprio” que, ainda que esteja de alguma maneira incluído no processo senciente, o está por ser “já” calor.

+   O calor enquanto “de seu” é anterior (prius) ao seu estar presente no sentir.

+   Não se trata só duma anterioridade “temporal” a respeito do processo senciente.

-   Esta anterioridade também se dá na formalidade de estimulidade (“objetividade signitiva”) da apreensão meramente animal: é a anterioridade do apreendido a respeito da modificação do tom vital e da resposta que desencadeia.

-   O mero animal, efetivamente, apreende o signo como objetivo antes da sua modificação tônica e da resposta que dá; o signo é objetivo a respeito do mero animal, mas é objetivo só como signo, é objetivo só a respeito da modificação tônica e da resposta que desencadeia, é um puro fato signitivo, por isso pode autonomizar-se na apreensão.

-   No exemplo do calor, a objetividade do calor-signo consiste só em esquentar: o calor esquenta e imediatamente modifica o tom vital e desencadeia uma resposta.

+   Trata-se duma anterioridade “formal” a respeito da apreensão mesma.

-   Ao homem lhe estão presentes as coisas como reais em si mesmas.

-   Aquilo que está presente ao homem na apreensão é algo que é apreendido como sendo formalmente anterior ao seu estar presente.

-   Portanto, não é uma anterioridade a respeito da sua modificação tônica e da resposta que o homem dará (anterioridade da formalidade de estimulidade), mas a respeito da apreensão mesma (anterioridade da formalidade de realidade): é uma anterioridade formal, muito elementar, mas decisiva.

-   No exemplo do calor, o calor real esquenta porque é “já” quente.

+   Este momento de  “já” (anterioridade de realidade) o chamamos de prius.

-   É um prius não só dentro do processo senciente, mas a respeito da apreensão mesma: o calor esquenta “sendo” já quente antes da sua apreensão.

-   No calor apreendido mesmo, o calor é um prius a respeito do seu “esquentar”: é calor “de seu”; o esquentar pertence ao calor “de seu”.

-   A coisa está presente na apreensão senciente do homem com tal formalidade que o seu conteúdo está presente repousando “em próprio” sobre si mesmo e fundando formalmente o seu estar presente na apreensão.

+   Em virtude deste caráter de prius da formalidade de realidade, de “de seu”, o apreendido em impressão instala o homem na realidade do apreendido mesmo, deixa aberto perante o homem o caminho da realidade em si mesma.

#   No homem, assistimos a uma “hiperformalização”, quer dizer, a uma tal autonomização do apreendido em impressão que já não é signo autônomo (autonomia de signitividade) mas realidade autônoma (autonomia de realidade): é alteridade de realidade; é altera realitas.

c.    Força de imposição de realidade

=   No animal humano, a força de imposição do apreendido em impressão já não é a força de imposição da estimulidade.

#   A formalidade de alteridade já não é no animal humano mera independência objetiva como no mero animal.

#   Quanto mais perfeito, o mero animal é mais perfeitamente objetivo; a riqueza da vida meramente animal é riqueza de signos objetivos.

=   No animal humano, a força de imposição do apreendido em impressão é a força de imposição da realidade.

#   A formalidade de alteridade de realidade não é mera independência objetiva, mas independência real: o apreendido impõe-se-lhe ao homem com uma força nova e própria: a força da realidade!

#   A riqueza da vida humana é riqueza de realidades.

 

 

4.     A impressão única de realidade

 

a.   Afecção, alteridade e força de imposição, são os três momentos de toda impressão senciente, de toda apreensão impressiva.

=   Quando o apreendido é mero estímulo, a impressão senciente é impressão de estimulidade.

=   Quando o apreendido é realidade, a impressão senciente é precisamente e formalmente “impressão de realidade”.

b.   Esta impressão de realidade é uma impressão una e única.

=   Desde a filosofia usual, poder-se-ia conceituar erroneamente a impressão de realidade como a soma de duas impressões distintas.

#   A filosofia nunca reparou na formalidade de realidade apreendida em impressão.

#   Só reparou, e não sempre, no conteúdo de alteridade; por isso chamou de impressão só as qualidades sentidas, quer dizer, os conteúdos sensíveis que nos são dados pelos sentidos.

#   Desde esta perspectiva, poder-se-ia pensar, então, que a impressão de realidade é a soma de “duas” impressões; poder-se-ia pensar, por exemplo, que à impressão de vermelho ou de quente acrescenta-se uma impressão a mais: a impressão de realidade.

=   Isto é absurdo.

#   Impressão senciente é sempre e só impressão de conteúdo de alteridade em formalidade de alteridade (seja de estimulidade, seja de realidade).

#   A impressão senciente de realidade é uma só impressão, com conteúdo e formalidade de realidade.

#   Não há duas impressões (uma de conteúdo e outra de realidade), mas uma impressão una e única: impressão de realidade, realidade sentida, realidade em impressão.

c.    A índole unitária da apreensão de realidade

=   A unidade da apreensão de realidade está constituída pela unidade intrínseca dos três momentos do ato apreensor: afecção real, alteridade de realidade e força de imposição de realidade.

=   Esta unidade não é radicalmente uma unidade noético-noemática de consciência, mas uma unidade “noérgica” de apreensão.

#   Segundo a filosofia moderna, a unidade da apreensão seria radicalmente de caráter “noético-noemático”.

+   Como dissemos, para a filosofia moderna, a apreensão é um ato meramente intencional da consciência, quer dizer, é mera “noese”.

+   Por sua vez, o termo da apreensão é o termo também meramente intencional da consciência, quer dizer, é mero “noema”.

+   A unidade da apreensão é, portanto, meramente noético-noemática, quer dizer, uma unidade meramente intencional ato-termo (noese-noema) da consciência.

#   Isto é radicalmente falso; a unidade radical da apreensão é “noérgica”.

+   Como vimos, a apreensão enquanto ato em si mesmo (não enquanto ato da consciência, coisa que é uma pura teoria) é um único e físico “estar”, quer dizer, um érgon, no qual o apreendido está fisicamente (ergicamente) em nós, e nós estamos fisicamente (ergicamente) no apreendido.

+   Mais adiante veremos que este érgon, este físico estar, não é um érgon de atuidade mas de “atualidade”.

+   De todos modos, noema e noese concernem só ao momento consciente que, em unidade com o momento apresentante, constitui um só e único ato de apreensão.

+   Por conseguinte, a unidade radical da apreensão não é meramente noético-noemática, mas estritamente noérgica.

+   Ainda assim, veremos que o momento de noese-noema da apreensão não tem nada a ver com a noese-noema da filosofia moderna.

=   A unidade da apreensão de realidade é “apreensão “primordial” de realidade”.

#   Na apreensão impressiva de realidade, a formalidade de realidade é apreendida desde si mesma e em si mesma (diretamente, imediatamente, unitariamente).

+   Na apreensão impressiva de realidade, a formalidade de realidade é apreendida diretamente, quer dizer, no estar presentes as coisas na impressão, e não através de “re”-presentações ou algo semelhante.

+   Na apreensão impressiva de realidade, a formalidade de realidade é apreendida imediatamente, quer dizer, na apreensão das coisas em impressão, e não em virtude de outros atos apreensivos ou de raciocínios do tipo que forem.

+   Na apreensão impressiva de realidade, a formalidade de realidade é apreendida unitariamente, quer dizer, na apreensão unitária em impressão de conteúdo-formalidade.

-   O real pode ter e tem uma grande riqueza de conteúdo e inclusive uma grande variabilidade de conteúdo.

-   Mas este conteúdo está apreendido sempre unitariamente pro indiviso com a sua formalidade de realidade.

#   Como na apreensão impressiva de realidade apreendemos diretamente, imediatamente e unitariamente a realidade do real, a chamamos de “apreensão “primordial” de realidade”.

+   Na apreensão primordial de realidade “estamos” na realidade; é a apreensão que primariamente e constitutivamente nos instala no real.

+   Esta apreensão é “primordial” porque toda outra apreensão de realidade se funda nela e a envolve formalmente; isto é essencial.

-   Não temos uma apreensão primordial de realidade mais outra apreensão ulterior de realidade, etc.; temos uma apreensão primordial de realidade modalizada em distintos modos ulteriores, como veremos.

-   O real, apreendido desde si mesmo e em si mesmo, é sempre o primórdio e o núcleo essencial de toda apreensão de realidade.

#   A filosofia moderna, desconjuntando a afecção da alteridade e da força de imposição, falseou a índole da apreensão primordial de realidade, da impressão de realidade.

+   Considerando a impressão só como afecção, sem o seu momento de alteridade, a apreensão primordial de realidade degenerou-se numa mera “representação minha” ou “impressão minha”.

+   Eliminando da impressão o momento de força de imposição do real, a apreensão primordial de realidade degenerou-se num mero “juízo meu”.

+   Tomando da impressão de realidade só o momento de alteridade por ele mesmo, a apreensão primordial de realidade degenerou-se em “simples apreensão”, em conceito.

+   Se, além disso, toma-se a apreensão primordial de realidade como mero ato da consciência, degenera-se a apreensão primordial de realidade em consciência imediata e direta de algo, em “intuição”.

#   Todas essas degenerações modernas da apreensão primordial de realidade são impossíveis se atendemos ao “fato” da apreensão primordial de realidade que consiste na unidade indivisa dos três momentos: afecção de realidade, alteridade (conteúdo-formalidade) de realidade e força de imposição de realidade, e num “ato apreensivo-impressivo noérgico” (e não num ato noético-noemático da consciência).


IV

 

ESTRUTURA UNITÁRIA

DA APREENSÃO SENCIENTE DE REALIDADE:

A INTELECÇÃO SENCIENTE

 

 

 

 

A.   Momentos estruturais da apreensão senciente de realidade

 

 

 

1.     Momento do sentir: sentir é apreender algo “em impressão”, como vimos demoradamente no capítulo anterior.

 

 

2.     Momento do inteligir

 

a.   Apreender algo “como real” é formalmente o ato que chamamos de “inteligir”.

=   O segundo momento da apreensão senciente de realidade é o momento “de realidade” sentida.

=   Este momento de realidade sentida qualifica o ato apreensor como apreensor “de realidade”.

=   A filosofia clássica se limita a descrever alguns atos intelectivos, mas nunca nos diz em que consiste a essência formal do ato de inteligir enquanto tal.

=   Pois bem, inteligir enquanto tal é formalmente “apreender algo como real”.

b.   Apreender algo como real é um ato “exclusivo” da inteligência.

=   Os estímulos apreendidos pela inteligência não são apreendidos estimulicamente (como meros estímulos), mas realmente (como estímulos reais).

=   Estimulidade e realidade são duas formalidades distintas, mas não com distinção gradual (uma complicação de estímulos será sempre e só signo de modificação tônica e de resposta; jamais será formalmente realidade, quer dizer, algo “em próprio”, algo “de seu”), mas com distinção essencial: realidade é essencialmente distinta de estimulidade.

c.    Apreender algo como real é o ato “elementar” da inteligência.

=   Os outros atos intelectivos (conceber, julgar, razoar) são outros modos de apreender o real constitutivamente e essencialmente fundados no ato de apreensão de algo como real (como veremos).

=   Em todos os atos intelectivos ulteriores (como veremos) aparece inexoravelmente esse momento de versão às coisas como reais; por isso a apreensão do real, meramente como real, é o “ato elementar” da inteligência.

d.   Apreender algo como real é o ato “radical” da inteligência.

=   O sentir hiperformalizado do homem já não lhe assegura a resposta adequada ao estímulo: o elenco de possíveis respostas é tão grande que a resposta fica praticamente indeterminada.

=   A unidade de suscitação, modificação tônica e resposta ficaria quebrada se o homem não pudesse apreender os estímulos duma forma nova.

=   Então, para responder adequadamente, o homem suspende a sua resposta e, conservando o estímulo, o apreende como algo “em próprio”, como algo “de seu”, como “realidade” estimulante.

=   Eis o orto radical da intelecção humana: a intelecção humana surge precisamente e formalmente no momento em que o homem tem que superar a estimulidade do puro sentir, para passar a apreender sencientemente as coisas como reais.

 

 

 

B.   A unidade estrutural sentir-inteligir da apreensão senciente de realidade

 

 

1.     Colocação da questão da unidade estrutural sentir-inteligir

 

a.   A impressão de realidade é um ato apreensor uno e único, como dissemos.

b.   Mas, como acabamos de ver, a impressão de realidade está constituída por dois momentos: sentir e inteligir; a impressão de realidade, enquanto “impressão” é sentir, enquanto “de realidade” é inteligir.

c.    Há que examinar em profundidade esta unidade sentir-inteligir.

=   Como dissemos no primeiro capítulo, a filosofia ocidental sempre contrapôs dualisticamente sentir e inteligir.

=   Kant viu a necessidade da unidade sentir-inteligir e tentou unificar o sentir e o inteligir na sua “síntese objetiva”; mas obteve só isso: uma síntese, uma unificação, não uma unidade estrutural (como veremos mais adiante).

=   A raiz da ilegítima contraposição clássica sentir/inteligir e da insuficiência da unificação kantiana sentir-inteligir estriba em não ter conceituado previamente o que é formalmente sentir e inteligir.

=   Por isso, em toda a filosofia, palpita a falsa identificação “sentir” = “puro sentir”, que conduz à ilegítima contraposição sentir/inteligir e à insuficiente unificação sentir-inteligir.

 

 

2.     Solução à questão da unidade estrutural sentir-inteligir: o sentir intelectivo ou a inteligência senciente

 

a.   “Sentir” e “puro sentir” não são formalmente idênticos.

=   “Sentir” consiste formalmente em apreender algo em impressão.

=   “Puro sentir” (=só sentir, mero sentir) consiste formalmente em apreender algo em impressão só como mero estímulo.

b.   Não há contraposição entre sentir e inteligir.

=   “Sentir”, repetimos, consiste em apreender algo em impressão; pois bem, há dois modos distintos de sentir:

#   Puro sentir: apreender algo em impressão só como mero estímulo.

#   Sentir intelectivo (ou inteligência senciente): apreender algo em impressão como real.

=   Não há, portanto, nenhuma contraposição sentir/inteligir: dentro do sentir se inscrevem, como dois modos da mesma coisa, o puro sentir e o inteligir senciente.

=   Inteligir é só um modo de sentir: o sentir intelectivo ou inteligir senciente ou intelecção senciente ou inteligência senciente (são todas expressões idênticas).

=   Em todo caso, a única “contraposição” (se de contraposição se quer falar) se dá entre o puro-sentir e o sentir-intelectivo, mas jamais entre o sentir e o inteligir.

c.    A intelecção senciente supera radicalmente e essencialmente todo o pensamento filosófico ocidental acerca da articulação entre sentir e inteligir.

=   Superação do dualismo clássico sentir/inteligir

#   Exposição

+   A filosofia clássica se constituiu como tal desde um dualismo das coisas: as coisas são “algo” e, ao mesmo tempo, um algo “que é”.

+   Isto conduziu ao dualismo clássico dos “dois atos” de apreensão: o ato de sentir (cujo termo é o “algo da coisa”) e o ato de inteligir (cujo termo é o “algo da coisa enquanto que é”).

#   Superação: não há dois atos opostos, um de sentir e outro de inteligir, mas um único ato de impressão de realidade que, enquanto impressão, é sentir e, enquanto de realidade, é inteligir.

+   Impressão de realidade é formalmente sentir “e” inteligir num único ato.

+   Pensar que sentir e inteligir são dois atos é tão absurdo quanto pensar que no puro sentir há dois atos: um de sentir e outro de apreender estimulidade...; há um só ato de puro sentir, com dois momentos: momento de “sentir” (apreender impressivamente) e momento de “pureza” (em formalidade de estimulidade).

+   Analogamente, há um só ato de intelecção senciente, com dois momentos: momento senciente (apreender impressivamente) e momento intelectivo (em formalidade de realidade).

=   Superação da “inteligência sensível” clássica

#   Exposição

+   Na concepção clássica de dois atos de apreensão, um de sentir e outro de inteligir, pensa-se que o apreendido pelo sentir está “dado a” a inteligência para que esta o intelija.

+   Inteligir é apreender intelectivamente o já apreendido sensivelmente pelos sentidos.

+   O objeto primário e adequado da inteligência é aquilo que os sentidos lhe dão: o sensível; portanto, a inteligência é “inteligência sensível”, ou seja, inteligência “do sensível”.

#   Superação: a inteligência não é “inteligência sensível” mas “inteligência senciente”.

+   Na una e única impressão de realidade (apreender realidade em impressão), o momento de inteligir (apreensão de realidade) está estruturalmente “em” o momento de sentir (apreender em impressão): o homem “sente calor” real; e o momento de sentir (apreender em impressão) está estruturalmente “em” o momento de inteligir (apreender realidade): o homem “sente realidade” térmica.

+   Por isso, intelecção senciente e sentir intelectivo são expressões idênticas da unidade dum ato uno e único: o ato de inteligência senciente (apreensão impressiva de realidade).

+   A inteligência humana não é inteligência sensível (não intelige o sensível sentido), mas inteligência senciente (intelige sentindo o sentido como real).

=   Superação da “síntese objetiva” kantiana sentir-inteligir

#   Exposição

+   Sentir (o dado sensível) e inteligir (os conceitos puros a priori) conformam num ato sintético os “objetos” do conhecimento.

+   Esta unidade sentir-inteligir é uma unidade sintética, uma síntese objetiva transcendental.

#   Superação

+   A síntese objetiva kantiana é radicalmente insuficiente: a unidade sentir-inteligir não é a unidade sintética do objeto, mas a unidade estrutural da realidade sentida.

+   Há que afirmar energicamente contra Kant: o sentir humano sente a realidade, e o inteligir humano intelige o real em impressão.

+   A síntese objetiva kantiana é um esforço conceitual; a unidade estrutural “inteligência senciente” é um fato.

=   Superação do pensamento de Husserl, Heidegger e Sartre

#   Exposição: para eles, a sensibilidade é uma espécie de resíduo “hylético” (material) da consciência (Husserl); um factum brutum (Heidegger e Sartre).

#   Superação: a sensibilidade não é nada disso, porque é um momento intrínseco e formal da intelecção mesma.

+   A intelecção humana é constitutivamente e estruturalmente senciente em si mesma enquanto intelecção.

+   O sentir humano é constitutivamente e estruturalmente intelectivo em si mesmo enquanto sentir.

=   Superação das expressões “inteligência animal” e “inteligência artificial”: ambas expressões são simplesmente absurdas.

#   Jamais combinações (inclusive seletivas) de apreensões estimúlicas poderão constituir um ápice de apreensão de realidade; a “inteligência animal” é uma contradictio in terminis.

#   Menos ainda pode ser ““inteligência” artificial” o executado por um mecanismo eletrônico, porque isso concerne, no melhor dos casos, só a conteúdos de impressão, mas nunca à sua formalidade de realidade.

 

 

3.     Concepção da inteligência senciente como faculdade

 

a.   Dynamis, potência e faculdade na filosofia clássica

=   O homem pode sentir e pode inteligir; esta idéia de “poder” é aquilo que expressa o termo grego dynamis.

=   Dynamis, desde Aristóteles, significa aquilo segundo o qual algo pode receber atuações ou atuar desde si mesmo, sobre algo ou sobre si mesmo, mas enquanto distinto da sua atuação.

=   Os latinos traduziram o termo dynamis por potentia ou facultas (potência ou faculdade).

b.   Crítica: potência e faculdade não são equivalentes.

=   A dynamis é algo muito rico; os seus diversos aspectos não foram traçados com rigor conceitual.

=   Para que a potência possa realizar os seus atos, não basta o mero fato de que a potência seja potência; precisa, ademais, que a potência esteja “facultada” para realizá-los.

#   Há casos de potências que por si mesmas estão facultadas para produzir os seus atos; essas potências são também faculdades.

#   Mas há casos em que uma potência não pode produzir o seu ato se não é intrinsecamente e estruturalmente “una” com outra potência.

=   Neste segundo caso, as duas potências constituem uma única faculdade que realiza um único ato; cada uma delas atua da seguinte maneira:

#   Não totalmente (nenhuma das duas potências produz por si mesma o ato total).

#   Não parcialmente ou concorrentemente (nenhuma das duas potências produz um ato parcial que concorre ao ato total).

#   Sim unitariamente ou co-determinantemente (as duas potências se co-determinam como faculdade única, e só nesta e por esta co-determinação produzem um único ato).

c.    A inteligência senciente é uma única faculdade.

=   O puro sentir animal pertence ao primeiro caso que dissemos: é “potência-faculdade”; é uma potência que por si mesma está facultada para produzir o seu ato de apreensão impressiva de estimulidade.

=   Mas a intelecção senciente humana pertence precisamente ao segundo caso que dissemos; no homem há duas potências essencialmente distintas enquanto potências: a potência do inteligir e a potência do sentir.

#   A potência do inteligir ou inteligência

+   Enquanto potência, é essencialmente irreduzível ao puro sentir; com efeito, duma formalidade signitiva, por sofisticada ou complicada que for, jamais sairá uma formalidade de realidade.

+   Mas esta potência intelectiva não está facultada por si mesma para produzir o seu ato; só pode produzi-lo sendo intrinsecamente e formalmente “una” com a potência do sentir.

+   Só em virtude desta unidade, a potência intelectiva adquire caráter de faculdade.

#   A potência do sentir

+   Enquanto potência, é essencialmente irreduzível à potência do inteligir: apreender em impressão e apreender realidade são coisas essencialmente distintas.

+   Mas esta potência do sentir só pode ser sentir humano, só pode produzir o ato de impressão de realidade, sendo intrinsecamente e formalmente “una” com a potência intelectiva.

=   A unidade estrutural “potência do sentir e potência do inteligir” constitui a faculdade da “inteligência senciente” humana.

#   A inteligência senciente humana não é potência, mas faculdade, composta intrinsecamente e estruturalmente pelas duas potências do inteligir e do sentir.

#   Estas duas potências não concorrem num mesmo objeto (foi a idéia clássica até Kant), nem concorrem parcialmente num ato total sintético (foi a idéia da síntese objetiva de Kant), mas se co-determinam num único ato: o ato de apreensão impressiva de realidade.

#   A inteligência senciente é a única concepção científica do fato da impressão de realidade: a inteligência humana como faculdade é senciente; o sentir humano como faculdade é intelectivo.

d.   A faculdade de inteligência senciente como momento estrutural da realidade humana: três estratos de todo animal

=   Primeiro estrato: colocação e situação

#   O estrato mais visível de todo animal é a execução de atos vitais cuja estrutura é o processo unitário “suscitação/modificação-tônica/resposta” do qual falamos.

#   Estes atos são executados pelo animal encontrando-se “entre” coisas, umas externas a ele e outras internas a ele.

#   Este “entre” tem dois caracteres distintos: colocação (locus) e situação (situs).

+   Colocação: o animal se encontra “colocado” entre as coisas; tem o seu locus entre elas; o vivente animal comparte este caráter com todas as realidades não-viventes.

+   Situação

-   O animal, colocado entre as coisas, está “situado” duma determinada forma entre elas; tem entre elas o seu situs.

-   Situação é um caráter modal próprio e exclusivo dos viventes.

-   A categoria de situs, na filosofia de Aristóteles, como categoria do ser, não desenvolve praticamente nenhum papel; no entanto, é uma categoria metafísica essencial, própria só dos viventes.

=   Segundo estrato: habitude

#   Habitude

+   Sob o processo vital, há em todo vivente um modo primário de “haver-se” com as coisas e consigo mesmo: é a “habitude” da qual já falamos.

+   Pelo seu modo de haver-se com as coisas, estas estão presentes ao vivente num determinado respeito formal que é a “formalidade de alteridade” daquilo que está presente ao vivente.

+   Na filosofia clássica, assistimos ao naufrágio da categoria de habitus, considerada, enquanto categoria do ser (no fundo redutível à categoria “qualidade”), como uma espécie de disposição incrustada mais ou menos permanentemente no sujeito.

+   Trata-se, no entanto, duma categoria metafísica radical e exclusiva (junto com o situs) das realidades vivas, e que consiste no modo de haver-se o vivente com as coisas e consigo mesmo.

#   Habitude radical

+   As habitudes podem ser muito diversas num mesmo vivente; mas há em todo vivente uma habitude radical da qual depende, em última instância, toda a sua vida.

+   Por exemplo, as biografias de todos os cachorros são distintas; mas todas elas são biografias “caninas”, porque se inscrevem numa mesma habitude radical.

 

 

#   Três modos de habitude radical e três formalidades de alteridade nos viventes

+   “Vegetar para suster-se” (trépho) = favorecer o desenvolvimento do submetido a crescimento; as coisas estão presentes ao vegetal como “trófemas”.

+   “Puro sentir” = apreender estimulicamente em impressão; as coisas estão presentes ao animal como meros “estímulos”.

+   “Inteligir sencientemente” = apreender realmente em impressão; as coisas estão presentes ao homem como “realidades”.

=   Terceiro estrato: potências e faculdades

#   A habitude tem duas faces: por uma, a habitude é determinante do tipo de processo vital; por outra, a habitude é algo determinado pela índole mesma das estruturas do vivente.

#   Portanto, o modo de haver-se o vivente com as coisas e consigo mesmo é sempre algo intermédio, por assim dizer, entre a ação do vivente e as suas estruturas.

#   Por exemplo, a intelecção senciente é uma habitude que determina todo o processo vital humano; mas, por sua vez, é algo determinado pelas estruturas humanas.

#   Pois bem, as estruturas, enquanto determinantes da habitude, constituem aquilo que chamamos de potências e de faculdades.

#   Modos de potências e faculdades

+   Suscetibilidade

-   Em todo vivente, as coisas, como estímulos, determinam o processo vital; toda célula, seja vegetal seja animal, é estimulável e está estimulada.

-   Neste aspecto, todo vivente, inclusive vegetal, tem aquilo que chamamos de “suscetibilidade”.

-   A suscetibilidade dos vegetais consiste em mera suscetibilidade: as estruturas vegetais determinam a habitude vegetal “trófica”.

+   Sentir (sentiscência e sensibilidade)

-   Há viventes cuja suscetibilidade tem um caráter próprio: são os animais.

-   Todo vivente é estimulável; mas o animal é o vivente que faz da estimulação uma função biologicamente autônoma: esta autonomização da estimulação constitui o “sentir”.

-   O sentir não é uma criação animal; é só a autonomização duma função própria de todo vivente, quer dizer, da suscetibilidade.

-   Sentir é um momento estrutural do vivente animal que consiste em que os estímulos estimulam o animal em impressão.

-   Esta estrutura impressiva, enquanto determinante da habitude de mera estimulidade, é a “potência-faculdade” do “puro sentir”.

-   A estrutura somática animal (e, portanto, as suas potências e as suas faculdades de sentir) adota duas formas diversas: sentiscência e sensibilidade.

*   Nos animais mais rudimentares, trata-se dum sentir muito difuso que chamamos de sentiscência.

*   Nos animais mais desenvolvidos, trata-se de sensibilidade.

   A sensibilidade consiste na sistematização das estruturas de impressão estimúlica.

   Esta sistematização da impressividade estimúlica é a índole formal própria daquilo que chamamos de “sistema” nervoso.

   A impressividade converte a sentiscência em estrita sensibilidade.

   A sistematização da impressividade tem, por sua vez, um caráter peculiar: a centralização do sistema nervoso é o transmissor sistemático do estímulo.

   Esta sistematização da impressividade vai crescendo desde os primeiros centros nervosos até o cérebro e, dentro do cérebro, até a cortexação com a qual culmina a formalização.

+   Inteligência senciente

-   No homem, ademais da potência do sentir (da autonomização biológica dos estímulos), há a potência do inteligir determinada pela hiperformalização das suas estruturas sencientes.

-   Esta potência do inteligir não é de seu faculdade; é faculdade só em unidade intrínseca e estrutural com a potência do sentir.

-   A unidade estrutural de inteligir e sentir é determinante da habitude de intelecção senciente, cujo ato formal é a impressão de realidade.

-   Enquanto determinante desta habitude, a estrutura unitária “sentir-inteligir” é a faculdade de inteligência senciente.

-   Em virtude dessa estrutura unitária sentir-inteligir, a intelecção humana é, em certo modo (não exclusivamente), cerebral.

-   O cérebro humano é o órgão senciente que determina os três momentos nos quais consiste o momento estrutural senciente da intelecção senciente humana:

*   Hiperformalização exigitiva: o cérebro humano, pela sua hiperformalização, determina exigitivamente a necessidade da intelecção para poder responder adequadamente aos estímulos.

*   Estado de vigília: o cérebro tem uma função ainda mais profunda, que é manter em vigília a intelecção.

*   Modulação intrínseca: a atividade cerebral, por ser senciente, modula intrinsecamente e formalmente a intelecção mesma, a impressão de realidade.

-   A obra da inteligência senciente “como faculdade”: meio, campo e mundo

*   As estruturas do animal determinam a sua habitude de estimulidade; em virtude desta, o animal está aberto a um “meio”; meio é o entorno do animal enquanto formalizado no sentir animal.

*   Campo e mundo

   As estruturas do homem determinam a sua habitude de realidade; em virtude desta, o homem está aberto não só a um meio, como animal que é, mas também a um “campo” e a um “mundo”.

   Campo de realidade é o meio enquanto sentido intelectivamente, quer dizer, como meio real.

   Mundo da realidade.

¬    O campo de realidade é o mundo intelectivamente sentido.

¬    O campo de realidade está transcendentalmente aberto ao mundo da realidade, que é a unidade de todo o real enquanto real, sentido intelectivamente ou não.


V

 

ESTRUTURA MODAL

DA APREENSÃO SENCIENTE DE REALIDADE

 

 

 

 

A.   A diversidade do sentir intelectivo segundo a diversidade de “conteúdos” de realidade que nos apresenta.

 

 

1.     A diversidade do sentir intelectivo estriba, em primeiro lugar, na diversidade de conteúdos que os sentidos intelectivos nos oferecem (cor, forma, som, temperatura, etc.), quer dizer, estriba, em primeiro lugar, na distinta riqueza das qualidades sensíveis que nos apresentam.

 

 

2.     O sentir intelectivo, efetivamente, está especificado pela distinção dos órgãos receptores sensitivos que são, pelo menos, dez: visão; audição; olfato; gosto; sensibilidade labiríntica e vestibular; tato (contato-pressão); calor e frio; dor e prazer; cinestesia (que abrange o sentido muscular, tendinoso e articular); cenestesia ou sensibilidade visceral.

 

 

3.     Discute-se a especificidade dalguns destes receptores sensitivos; é um assunto de psico-fisiologia que não nos interessa.

 

 

 

B.   Mas a diversidade “radical” do sentir intelectivo estriba na diversidade de “modos de intelecção” senciente da realidade que ele nos apresenta.

 

 

1.     Introdução

 

a.   Os órgãos dos sentidos humanos sentem com um sentir tal, que o sentido é sentido como realidade.

b.   Mas cada sentido me apresenta a realidade dum modo distinto: há diversos modos de impressão de realidade.

c.    Aqui está a diferença radical dos modos do sentir intelectivo: não no conteúdo da impressão, mas no modo dessa impressão, no modo distinto com o qual os sentidos intelectivos nos apresentam a realidade.

d.   A filosofia ignorou completamente esta diversidade.

=   Pensou, sem mais nem menos, que a coisa sentida é sempre algo que está “ante” mim.

=   Isto, além de ser uma ingente vaguidade, é falso; estar ante mim é só um dos distintos modos de estar-me presente a coisa real: a apresentação visual da coisa.

e.    A apreensão das coisas “como reais” constitui a intelecção; por isso, os diversos modos de estarem presentes as coisas como reais no sentir humano são diversos modos de estrita intelecção.

 

 

2.     Os diversos modos da “realidade” que está presente na intelecção senciente.

 

a.   “Realidade ante mim” (vista); a vista apreende a coisa real como algo que está “ante mim” segundo a sua própria configuração, segundo o seu próprio eidos.

b.   “Realidade notificante” (ouvido); no ouvido, a coisa real sonora não está contida na audição; o som nos remete a ela, nos dá notícia dela.

c.    “Realidade como rasto” (olfato); no olfato, a coisa real se nos apresenta como “rasto”.

d.   “Realidade fruível” (gosto); no gosto, a coisa real está presente como realidade possuída, degustada, fruível.

e.    “Realidade nua” (tato; contato-pressão); no tato, a coisa real se nos apresenta como nua.

d.   “Realidade em “para”” (cinestesia); na cinestesia a coisa real se nos apresenta como algo em “para”; não como “para” a realidade, mas como realidade mesma num “para”.

e.    “Realidade temperante” (frio-calor); frio e calor nos apresentam a coisa real como “temperante”.

f.     “Realidade afetante” (dor-prazer); dor e prazer nos apresentam a coisa real como “afetante”.

g.   “Realidade como posição centrada” (sensibilidade labiríntica e vestibular); a sensibilidade labiríntica e vestibular nos apresenta a coisa real como “posição”, como algo “centrado”.

h.   “Realidade íntima ou minha” (cenestesia); graças à cenestesia ou sensibilidade visceral, o homem apreende que está realmente em si mesmo; é aquilo que chamamos de apreensão de “intimidade real” ou “realidade minha”; a cenestesia, em certo modo, é o sentido do “mim” enquanto tal.

i.    Uma observação importante

=   É radicalmente falso que “o” modo de presença da realidade seja a visão, e que os outros modos não sejam mais do que sucedâneos da visão quando esta falta.

=   Certamente, não todos os modos de sentir intelectivo são equivalentes, mas todos são, em si mesmos e por si mesmos, modos próprios de apresentação da realidade.

=   O grau de preponderância duns modos sobre outros não procede de que sejam sucedâneos da visão, mas da índole mesma da realidade que está presente.

#   Há realidades que não podem ter mais modo de apresentação que a nua realidade tatilmente apreendida.

#   Nesses casos, pode ser que a realidade assim sentida seja de grau muito superior a toda realidade sentida ante mim.

 

 

3.     Os diversos modos da “intelecção senciente” enquanto apresentante da realidade

 

a.   Neste ponto, a filosofia clássica caiu em dois erros fundamentais.

=   A filosofia clássica afirma: nada há na inteligência que antes não tenha estado no sentir, com exceção da inteligência mesma (nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu nisi ipse intellectus); isto é falso.

#   O erro procede, como já vimos, do dualismo clássico que contrapõe dualisticamente inteligir/sentir e da concepção da inteligência como “inteligência sensível”.

#   Já vimos que não há contraposição sentir/inteligir, e que a inteligência não é sensível, mas senciente.

#   E isto é verdade, também quando se trata da intelecção da inteligência mesma (como veremos em seguida): a inteligência só está em si sencientemente.

=   A filosofia clássica deu tal preponderância à apresentação do real na visão, que aquilo que não se vê declara-se eo ipso praticamente ininteligível; isto é absurdo cientificamente e filosoficamente.

#   Cientificamente

+   As partículas elementares são realidades, tanto que delas se faz uma esplêndida descrição matemática na mecânica quântica.

+   No entanto, as partículas elementares não são visualizáveis como os corpúsculos; a sua estrutura real é tal que se emitem e absorvem como se fossem corpúsculos, e se propagam como se fossem ondas; mas não são nem corpúsculos nem ondas.

+   Não é que “de fato” não vejamos as partículas elementares; é que são “em si mesmas” realidades não-visualizáveis.

#   Filosoficamente (como diremos melhor em seguida).

+   É filosoficamente falsa a identificação do visível com o inteligível.

+   Toda intelecção é senciente; portanto, todo modo de apreensão senciente do real (ainda que não seja nem visual nem visualizável) é verdadeira intelecção.

b.   Modos de intelecção senciente do real

=   Na visão, a intelecção é “vidência” do real.

=   Na audição, a intelecção é “auscultação” do real.

=   No gosto, a intelecção é “fruição” do real (tanto gostosa quanto desgostosa).

#   Não se trata duma fruição consecutiva à intelecção; trata-se do fruir mesmo como modo de apreensão da realidade.

#   Não esqueçamos que saber e sabedoria vêm etimologicamente de sabor...; efetivamente, os latinos traduziram sophia por sapientia.

=   No tato, a intelecção é “tenteio” do real, intelecção “às apalpadelas” do real.

=   No olfato, a intelecção é “rasteio” do real.

=   Na cinestesia, a intelecção é “tensão dinâmica” no real; não se trata duma tensão para a realidade, mas da realidade mesma como um “para” que nos tem tensos.

=   No frio e no calor, a intelecção é “temperação” ao real.

=   Na dor e no prazer, a intelecção é “afeiçoamento” do real.

=   Na sensibilidade labiríntica e vestibular, a intelecção é “orientação” no real.

=   Na cenestesia, a intelecção é “penetração íntima” no real.

c.    Unidade dos modos de intelecção senciente do real

=   Os diversos sentidos não se justapõem, mas se recobrem parcialmente ou totalmente.

#   Se se tratasse do recobrimento do conteúdo de cada sentir isso seria impossível; seria absurdo, por exemplo, pretender ter sabor do fogo ou duma estrela...

#   Mas se trata do recobrimento dos diversos modos de apresentação do real, dos diversos modos de intelecção senciente; sendo assim, posso ter perfeita intelecção fruitiva duma estrela.

#   Ainda que não apreendamos algo segundo o conteúdo próprio dum sentido, ao apreender esse algo em outros sentidos, o apreendemos também com o modo de intelecção próprio daquele sentido.

=   Alguns exemplos típicos de recobrimento dos modos de intelecção

#   Recobrimento vista-tato: tenho “ante mim a nua realidade”.

#   Recobrimento vista-tato-gosto: tenho “a nua realidade fruível ante mim”.

#   Recobrimento vista-tato-ouvido: tenho “ante mim a nua realidade que soa”.

#   Recobrimento do frio e calor com cada um dos sentidos: sinto-me temperado em toda realidade enquanto realidade.

#   Recobrimento da sensibilidade labiríntica e vestibular com cada um dos sentidos: toda intelecção se orienta na realidade pela realidade.

#   Recobrimento da cenestesia com cada um dos sentidos: toda intelecção do real externo é um intento de intimar com o apreendido.

=   Um modo de recobrimento de extrema importância: o recobrimento do modo da apreensão da realidade em “para” (cinestesia) com os demais sentidos.

#   Recobrindo a presença ante mim da realidade na vista, determina nesta um intento de visão para “dentro”.

#   Recobrindo a notícia da realidade na auscultação, determina nesta uma notificação “através” da notícia para o notificante.

#   Recobrindo todo o apreendido em todos os demais modos de intelecção, a intelecção em “para” nos lança ao real “além” do já apreendido!

#   Recobrindo a cenestesia, o “para” da cinestesia determina a “reflexão”, da qual falaremos mais adiante.

=   A plenitude da impressão de realidade é a unidade dos dez modos de apresentação do real; cada modo, tomado por si mesmo, é só um modo reduzido e deficiente da impressão de realidade.

d.   “Privação” de algum modo de intelecção senciente

=   Se um homem está radicalmente privado dum sentido, está privado não só dos conteúdos próprios desse sentido, mas também do seu modo próprio de apresentação do real.

=   É o caso, por exemplo, dum cego de nascença: não só não vê cores, mas é que não pode ter (por recobrimento) a apresentação do real pelos outros sentidos como algo que está “ante ele”.

=   Não é o caso, ao invés, dum cego que antes via: não tem atualmente visão das cores, mas conserva o ato de apreender o real pelos demais sentidos como algo real “ante ele”.

e.    A unidade da apreensão de realidade não é uma síntese feita pela inteligência, como pensa a filosofia clássica, mas uma unidade física de realidade.

=   Exposição

#   A filosofia clássica pensa na diversidade do sentir só desde o ponto de vista do conteúdo sensível específico apreendido por cada sentir.

#   Assim pois, para ela, os diversos sentidos constituem uma diversidade primária, de tal modo que a unidade da apreensão impressiva é uma síntese ulterior da diversidade dos diversos modos de sentir feita pela inteligência.

#   A filosofia escolástica concebeu esta síntese como uma espécie de “sentido comum”.

=   Crítica: isto é falso, porque não responde aos fatos.

#   A filosofia clássica não percebeu que o sentir humano é sentir intelectivo e que, portanto, apreende os conteúdos com formalidade de realidade.

#   Pois bem, em virtude de que todos os modos do sentir humano nos dão a mesma formalidade de realidade, a unidade dos modos do sentir não é uma síntese, mas a unidade física de serem todos apreensores de realidade. (O puro sentir animal tem também uma unidade anterior à presumível síntese de conteúdos do sentir: a unidade de estimulidade).

#   Dado que apreender realidade é inteligir, resulta que a unidade dos modos do sentir consiste em que todos eles são momentos da “intelecção senciente”: apreender impressivamente o real como real é apreender a coisa como estando “ante mim” e em sua “nua realidade” e na sua “fruibilidade” e na sua “direção”, etc.


VI

 

ESSÊNCIA DA INTELECÇÃO SENCIENTE

ENQUANTO ATO: MERA ATUALIDADE

 

 

 

 

A.   Insuficiência das concepções filosóficas do ato de intelecção

 

 

1.     A intelecção é uma atuação das coisas sobre a inteligência (filosofia até Kant).

 

a.   Exposição: a intelecção é uma “atuação” que as coisas inteligidas produzem sobre a inteligência.

=   Platão e Aristóteles diziam: a inteligência é como uma tabula rassa (ekmageion), na qual não há nada escrito e na qual as coisas escrevem; esta escritura seria a intelecção.

=   É a mesma idéia da intelecção que Leibniz expressou muito graficamente ao falar da intelecção como “comunicação de substâncias”.

b.   Insuficiência

=   Que as coisas atuem sobre a inteligência é inegável (ainda que não precisamente do modo que pensaram gregos e medievais).

=   Mas a atuação das coisas sobre a inteligência não é a essência formal do ato de intelecção; ao máximo é uma teoria (discutível) dos mecanismos através dos quais chega a produzir-se a intelecção.

 

 

2.     A intelecção é posição (Kant), intenção (Husserl), desvelamento (Heidegger).

 

a.   Exposição

=   A intelecção é posição (Kant).

#   Que algo está presente na inteligência significa que está “posto” pela inteligência para ser inteligido por ela.

#   Não é que a inteligência “produza” as coisas inteligidas (isso seria absurdo), mas é que as coisas, para poderem ser inteligidas, têm que ser “postas” à inteligência pela inteligência mesma.

#   A essência formal da intelecção consiste, portanto, em “posição”.

=   A intelecção é intenção (Husserl).

#   A essência do estar presentes as coisas na inteligência não consiste em que estejam postas para serem inteligidas, mas em que sejam termo intencional da consciência.

#   A intelecção é só um modo de intencionalidade da consciência entre outros.

#   A essência formal da intelecção consiste, portanto, em “intenção”.

+   Intelecção é só uma intenção, um “referir-me a” o inteligido.

+   O inteligido é só mero correlato desta intenção intelectiva.

=   A intelecção é desvelamento (Heidegger); estar presente à inteligência é formalmente estar desvelado a ela.

b.   Insuficiência

=   Ao máximo, posição, intenção e desvelamento são só diversas maneiras de estar presente o inteligido na intelecção; mas jamais serão esse “estar presente” enquanto tal.

=   Efetivamente, o inteligido, antes de tudo, “está presente” na intelecção, ainda que seja dalguma dessas maneiras (como posto, como intencionado, como desvelado).

#   O presumivelmente posto “estaria” presente por posição da inteligência.

#   O presumivelmente intencionado “estaria” presente por intenção da consciência.

#   O presumivelmente desvelado “estaria” presente desvelado à consciência.

 

 

 

B.   A essência formal da intelecção senciente enquanto ato é “mera atualidade” (mero estar presente) do real na inteligência senciente.

 

 

1.     Atualidade

 

a.   Insuficiência da actualitas da filosofia clássica

=   Exposição

#   Os medievais chamam de actualitas o caráter do real como “ato”, entendendo por ato aquilo que Aristóteles chamou de enérgeia, quer dizer, a plenitude da realidade de algo.

#   Por exemplo, dizer que algo tem actualitas de cachorro, que é cachorro em ato, significa que esse algo é a plenitude daquilo em que consiste ser cachorro.

#   Nesta mesma linha conceptiva, ato pode significar também “ação”; ação é ato porque deriva de algo que é em ato.

=   Insuficiência

#   É impróprio chamar de actualitas isso tudo; esse caráter de ato há que chamá-lo de “atuidade” e não de “atualidade”.

#   É imprescindível, como vamos ver, conceituar o caráter de atualidade de algo como essencialmente distinto do seu caráter de atuidade.

b.   Distinção entre atualidade e atuidade

=   Atualidade não é o caráter de ato de algo (atuidade), mas o caráter de “atual” que tem esse algo que nos faz dizer dele, por exemplo, que tem muita ou pouca atualidade, que adquiriu ou perdeu atualidade.

=   Efetivamente, nessas frases não nos estamos referindo ao ato aristotélico (atuidade), mas a um “estar” presente fisicamente o real (atualidade).

=   É imprescindível, portanto, distinguir com rigor estes dois momentos do real.

#   Atuidade é o momento físico pelo qual algo real tem a plenitude da sua realidade.

#   Atualidade é o momento físico pelo qual algo real está fisicamente presente.

c.    Modos de atualidade

=   Há uma atualidade meramente “extrínseca” do real: é o caráter de estar presente o real “em algo”.

#   Dizemos, por exemplo: os vírus são algo que tem hoje muita atualidade; com isso estamos dizendo que os vírus são algo que nos está hoje muito presente a todos.

#   Aqui podemos perceber claramente a diferença essencial entre atuidade e atualidade.

+   Os vírus sempre tiveram atuidade, quer dizer, sempre tiveram a plenitude da sua realidade.

+   Mas só desde alguns anos têm também atualidade entre nós, quer dizer, estão presentes a todos nós.

+   Faz não muitos anos, os vírus tinham atuidade mas careciam dessa atualidade.

#   Mas, como é obvio, este modo de atualidade é uma mera relação extrínseca duma coisa real com outra (no exemplo, a relação extrínseca dos vírus com os homens que os estudam, ou estão preocupados com eles, por exemplo).

=   Há uma atualidade “intrínseca” do real: é o caráter de estar presente o real em algo “desde a sua própria realidade”.

#   Dizemos, por exemplo, que uma coisa inanimada está presente entre outras coisas inanimadas; mais ainda, dizemos que um homem se fez presente entre outros homens ou entre determinadas coisas inanimadas; assim dizemos, por exemplo, que um mau cheiro está presente na sala, que o homem se fez presente na lua, etc.

#   Estes “estar presente” são inegavelmente um momento intrínseco da coisa real que se faz presente: a coisa real, ela mesma, desde a sua própria realidade, é a que se faz presente.

#   Mas se trata dum estar presente desde a sua própria realidade em virtude do momento de “conteúdo” de realidade da coisa real que está ou que se faz presente.

=   Há uma atualidade “formal” do real: é o caráter de estar presente o real em algo desde a sua própria realidade e “na sua própria realidade”, quer dizer, “formalmente enquanto real”.

#   Qualquer coisa real tem (ou pode ter) o caráter de estar presente desde a sua própria realidade: a coisa real pode estar presente ou não, e de muitos modos, segundo seja o seu conteúdo de realidade.

#   Mas há um modo mais fundo ainda de estar presente: é o modo que tem todo o real de estar presente desde a sua própria realidade e na sua própria realidade, quer dizer, pela sua formalidade mesma de realidade e não só pelo seu conteúdo de realidade.

#   Esta é a essência da atualidade formal: “estar presente o real desde a sua própria realidade e na sua própria realidade, quer dizer, formalmente enquanto real”.

#   Este é o modo próprio do estar presente o real na intelecção senciente; com efeito, ao apreender impressivamente uma coisa real, estamos sentindo que está presente desde a sua própria realidade e na sua própria realidade, quer dizer, formalmente enquanto real, quer dizer, no seu próprio caráter formal de realidade.

=   Mas a coisa não acaba aqui; há uma atualidade “constitutiva” do real: é o caráter de estar presente o real desde a sua própria realidade, na sua própria realidade e “por sua própria realidade”, quer dizer, “formalmente enquanto real e “puramente e simplesmente por ser real””.

#   Aqui se trata já duma atualidade, dum estar presente do real que tem caráter não só formal, mas também constitutivo, quer dizer, uma atualidade que não pode não ter o real, porque se trata dum estar presente o real desde a sua própria realidade, na sua própria realidade “e por sua própria realidade”, ou seja, puramente e simplesmente em virtude do seu caráter formal e constitutivo de realidade.

#   E “onde” está presente de modo constitutivo o real?; na unidade respectiva de todo o real enquanto real, quer dizer, no mundo da realidade.

+   Todo o real, meramente por ser real, é constitutivamente respectivo a todo o real enquanto real; quer dizer, todo o real forma constitutivamente uma unidade respectiva: o mundo da realidade, ou seja, a pura e simples realidade; e, em virtude disso, todo o real é mundanal, é momento do mundo de realidade.

+   Pois bem, o real não pode não estar presente no mundo; o real está presente no mundo puramente e simplesmente por ser real; esta atualidade do real no mundo é precisamente e justamente o “ser” do real!

#   Todo o real, puramente e simplesmente por ser real “é”, ou seja, tem atualidade mundanal, está presente no mundo.

d.   Articulação de atualidade e atuidade

=   Vimos que atualidade e atuidade não são idênticas; agora temos que ver que também não são independentes: o caráter de “estar presente” (atualidade) é caráter “de” o real em ato (atuidade).

=   Isso significa que a atualidade é sempre e só atualidade da atuidade do real; aliás, atualidade do real em ato.

=   Daí que a atualidade (apesar de ser um caráter distinto da atuidade) é um caráter, ao seu modo, físico e não intencional.

#   Há um devir do real segundo a sua atuidade: a coisa adquire, perde ou modifica o seu conteúdo.

#   Mas há também um devir do real segundo a sua atualidade: a coisa devém formalmente na sua atualidade.

+   Para devir na sua atualidade, as coisas têm possivelmente que atuar, quer dizer, têm que adquirir, perder ou modificar o seu conteúdo.

+   Mas esta atuação não é aquilo em que formalmente consiste a atualidade que as coisas obtêm com essa atuação.

+   O devir de atualidade não é formalmente um devir de atuidade.

 

 

2.     A atualidade intelectiva senciente do real

 

a.   Entre as muitas atualidades que uma coisa real pode ter, está a sua atualidade na intelecção senciente.

b.   A essência formal da intelecção senciente enquanto ato é justamente essa “atualidade” do real “na intelecção senciente” (atualidade intelectiva senciente do real).

=   Vimos, efetivamente, que a apreensão intelectiva senciente consiste em que as coisas “estão” presentes impressivamente na apreensão como reais (como “de seu”, como “em próprio”).

=   Acabamos de ver que este momento de “estar” presente o real é “atualidade”.

=   Portanto, a apreensão intelectiva senciente é a atualidade (o “estar” presente) intelectiva senciente (na intelecção senciente) do real.

=   A atualidade intelectiva senciente do real é atualidade “do real desde a sua própria realidade e na sua própria realidade” (atualidade intrínseca e formal).

#   Na impressão de realidade, efetivamente, a formalidade de realidade tem caráter de prius a respeito da apreensão mesma, como vimos.

#   O apreendido é apreendido “em” a apreensão senciente como real (como “em próprio”, como “de seu”) ““já” real “antes”” (já-antes = prius) da sua apreensão senciente.

c.    Agora há que analisar demoradamente em que consiste esta atualidade intelectiva senciente do real “enquanto atualidade” e “enquanto intelectiva senciente”.

 

 

3.     A atualidade intelectiva senciente do real “enquanto atualidade”

 

a.   Três momentos da atualidade intelectiva senciente enquanto atualidade: em toda atualidade intelectiva senciente enquanto atualidade temos “realidade” “presente” na sua “atualidade”.

=   Primeiro momento: atualidade

#   A intelecção senciente é atualidade (“estar” presente) do real na intelecção senciente; isto não é uma teoria, mas um fato que posso constatar considerando qualquer ato intelectivo senciente.

#   A atualidade intelectiva senciente não é atuação.

+   Como já dissemos, a atuação, tanto do real como da inteligência senciente, concerne aos mecanismos de produção da intelecção senciente, mas não à intelecção senciente enquanto tal.

+   Para que chegue a haver intelecção senciente, é verdade que entra em jogo a atuação de estruturas muito complexas, tanto do real quanto da inteligência senciente.

+   Tanto é assim, que essa atuação delimita e perfila o conteúdo que está presente como real na inteligência senciente.

+   No entanto, no ato de intelecção senciente enquanto tal, esse conteúdo meramente está presente nela como real, quer dizer, está meramente “atualizado” na intelecção senciente.

#   A atualidade intelectiva senciente não é uma “relação” da inteligência senciente com as coisas inteligidas.

+   Por exemplo, se vejo uma pedra, essa minha visão da pedra não é uma relação minha com a pedra, mas algo anterior a toda possível relação ulterior entre a pedra e eu; a minha visão da pedra é meramente atualidade da pedra na minha visão.

+   Precisamente porque já se deu essa atualidade da pedra na minha visão, poderá haver “ulteriormente” todo tipo de relações entre mim e a pedra já vista.

=   Segundo momento: presencialidade

#   A intelecção senciente consiste primariamente e radicalmente em atualidade, quer dizer, num físico (e não intencional) “estar” do real na inteligência senciente.

#   Nesse seu físico “estar”, o real está “presente” na intelecção senciente: é o momento de “presencialidade” da atualidade do real na intelecção senciente.

#   Atenção que a intelecção senciente não é uma mera “presença do real”, mas uma ““atualidade” presencial do real”; entender bem isto é essencial para não cair no grave erro de Berkeley.

+   Exposição

-   “Ser é ser-percebido” (esse est percipi); quer dizer, aquilo que chamamos de coisas são só, em verdade, puras percepções [colocadas em nós diretamente por Deus!], porque ser-coisa é ter um “ser” que consiste meramente em “ser percebido”, em mera presença perceptiva.

-   Que o percebido está presente “como real” significa, em verdade, que o percebido se apresenta “como se fosse real”.

+   Crítica: tudo isto é falso porque não responde ao fato da percepção.

-   A presencialidade do percebido é sim um momento do percebido, mas fundado num momento formalmente anterior do percebido: o seu mero físico “estar”, a sua mera física atualidade.

-   O real, efetivamente, pode “estar” de muitas maneiras, entre elas, pode “estar presente”; uma pedra, por exemplo, pode estar em descomposição, estar enterrada, estar fria, estar caindo, estar presente, etc., e tudo isso fundado num físico “estar” da pedra.

-   Assim pois, o percebido é presente na percepção por “estar” presente na percepção, pela sua “atualidade” presencial na percepção.

-   Berkeley não viu o físico “estar” presente do percebido na percepção, do momento de física “atualidade” do percebido, e caiu na pura presencialidade do percebido na percepção.

-   Mas, se atendemos ao fato da percepção, e não a sonhos ou elucubrações do tipo que forem, temos que afirmar que apreendemos o percebido não “apresentando-se como se fosse real”, mas ““estando” presente como real”, coisa muito diferente.

-   Ve-lo-êmos mais demoradamente em seguida, ao falar da “realidade” das qualidades sensíveis percebidas.

=   Terceiro momento: realidade

#   Atualidade e realidade são dois momentos de toda intelecção senciente, mas não da mesma categoria: o caráter de realidade (“de seu”, “em próprio”) é um prius da coisa apreendida a respeito da sua apreensão; a coisa é apreendida como real “já” real “antes” (prius) da sua apreensão.

#   Portanto, a atualidade do real na intelecção senciente está fundada, como tal atualidade, na realidade do real atual.

+   A apreensão intelectiva senciente é sempre e só atualidade “de” a realidade.

+   Quer dizer, a atualidade é atualidade da realidade, e não a realidade realidade da atualidade.

b.   Índole própria da atualidade intelectiva senciente enquanto atualidade: “mera” atualidade.

=   “Mera atualidade” quer dizer que o real não só se atualiza na intelecção senciente, mas que não faz mais que atualizar-se nela; a intelecção senciente é “mera atualização do real” na inteligência senciente.

=   Atenção ao grave erro de pensar que dizer que “a intelecção senciente é mera atualização do real”, significa dizer que “as coisas reais estão presentes na intelecção senciente com o seu conteúdo de realidade mundanal”, que é aquilo que afirma expressamente a filosofia grega e medieval.

#   Isso é formalmente absurdo, porque supõe, em definitiva, que realidade é aquilo que as coisas são em si mesmas “além” da intelecção, quer dizer, aquilo que elas são no mundo independentemente de que eu as intelija ou não; no entanto, como repetiremos até a saciedade, realidade é puramente e simplesmente ter em próprio, “de seu”, os próprios caracteres, seja aquém da intelecção seja além da intelecção.

#   Mas é que, ademais, isso é insustentável, porque as coisas reais do mundo não têm porque estar presentes na intelecção senciente com o seu conteúdo de realidade mundanal; a ciência moderna prova que, efetivamente, isso não é assim (voltaremos sobre o tema).

=   Dizer que a intelecção senciente é “mera atualidade do real” significa o seguinte.

#   Na intelecção senciente, o conteúdo real (seja o que for!) “só está” presente como real nela, e mais nada; não é algo representado ou elaborado ou interpretado ou coisa semelhante.

#   Em virtude da sua formalidade de realidade, o conteúdo apreendido (seja o que for!) está presente, e “só” está presente, na intelecção senciente como algo real, como algo “de seu”, como algo “em próprio”.

 

 

4.     A atualidade intelectiva senciente do real “enquanto intelectiva senciente”

 

a.   As qualidades sensíveis apreendidas são impressões “minhas”.

=   Segundo a filosofia e a ciência modernas, as qualidades sensíveis apreendidas são “só impressões minhas”.

#   Efetivamente, consideram a apreensão impressiva como mera afecção impressiva do homem, sem atender ao momento de conteúdo-formalidade de realidade do apreendido impressivamente pelo homem.

#   Por isso afirmam que as minhas impressões sensíveis são só afecções do meu sentir ou representações minhas, e que o seu conteúdo não tem realidade alguma.

=   Isso é inadmissível; as qualidades sensíveis apreendidas são “impressões minhas”, mas não “só impressões minhas”.

#   Não se pode separar, na impressão, o momento de afecção e o momento de alteridade.

#   Que as qualidades sensíveis apreendidas são impressões minhas significa que “me” estão presentes como reais, mas “impressivamente”; isto não significa em absoluto que as qualidades sensíveis apreendidas sejam “só impressões minhas”, quer dizer, que só me estejam presentes impressivamente e não como reais.

#   Na apreensão impressiva humana, efetivamente, as qualidades sensíveis são sensíveis porque estão apreendidas em impressão, mas são reais porque são apreendidas como algo “de seu”, “em próprio”, e não como mero estímulo.

+   Por exemplo, o verde que apreendo na minha impressão é “de seu” verde, é “de seu” de tal ou qual tonalidade, intensidade, etc.

+   É um erro gravíssimo pensar que o verde que apreendo é verde só pelas estruturas dos meus receptores sensitivos; seja como forem essas estruturas, aquilo que nelas me está presente, me está presente como “de seu” verde, e não como verde estimúlico.

b.   As qualidades sensíveis apreendidas são “impressões de realidade”.

=   Ver verde não consiste em que o meu processo senciente visual seja verde (seria grotesco!), mas em que o verde visto é visto como “de seu” verde, e não como verde estimúlico.

=   Ser visto consiste só em estar presente na minha visão como real; e isto é assim na acepção mais estrita do termo “realidade”.

#   Não é que o verde visto esteja presente na minha visão com pretensão de realidade, quer dizer, como se fosse real.

#   É que o verde visto está presente com formalidade de realidade, quer dizer, como verde “em próprio”, como “de seu” verde.

=   Isto não significa só que a percepção seja real, mas que é real o conteúdo qualitativo apreendido: este verde apreendido é um conteúdo que é “de seu” verde.

c.    O real “em” a impressão e o real “além” da impressão coincidem na sua formalidade de realidade.

=   Realidade, como já dissemos, não é aquilo que as coisas são “além” da impressão, quer dizer, a “área” das coisas “além” da área das minhas impressões; realidade é sempre e só a formalidade “de seu”.

#   Aquilo que há que distinguir não é realidade, por um lado, e as minhas impressões, por outro, mas o real “em” minha impressão e o real “além” da minha impressão.

#   Dito de outro modo: não se trata de opor realidades, por um lado, e minhas impressões, por outro, mas o conteúdo de realidade na área da minha impressão, e o conteúdo de realidade na área além da minha impressão.

=   Pode suceder que o real “em” minha impressão só seja real em minha impressão; concordamos; mas isso não quer dizer que não seja real em minha impressão.

#   As cores, por exemplo, são realidades só na impressão visual humana.

#   Hoje sabemos que se desaparecessem os homens videntes, desapareceriam as cores reais; não é que só desapareceriam umas determinadas afecções impressivas humanas, as visuais; é que desapareceriam realidades!

#   No entanto, nesse caso, aquilo que está presente na apreensão impressiva humana como cor real, permaneceria incólume na sua realidade além da apreensão impressiva humana.

=   Isto não é um jogo de palavras; o real “além” da impressão é real não por estar “além” da impressão, mas porque além da impressão é algo “de seu”.

=   Realidade na impressão e realidade além da impressão são só dois modos de realidade, quer dizer, de algo “de seu”.

d.   O real na impressão nos lança a inteligir o real “além” da impressão.

=   Estes dois modos de realidade (na impressão e além da impressão) não coincidem forçosamente enquanto ao seu conteúdo, mas formam uma “unidade real”; efetivamente, não são dois casos particulares dum mesmo conceito (do conceito “de seu”), mas dois modos da unidade física de realidade, da física formalidade “de seu”.

=   Pois bem, vimos que a impressão de realidade nos atualiza a formalidade de realidade de modos distintos e que um deles é o modo de realidade em “para” (intelecção senciente cinestésica); isso significa que o real mesmo em impressão de realidade está nos levando realmente “para” o real “além” da impressão.

=   Atenção que não se trata dum ir da impressão à realidade, mas dum ir do real na impressão ao real além da impressão!

=   Este ir deixa em aberto qual é o termo do “para”.

#   O termo do para é um termo essencialmente problemático (de fato hoje sabemos que as qualidades sensíveis não são reais além da impressão).

#   Averiguar o que são no mundo, quer dizer, no real além da impressão, as qualidades sensíveis reais na impressão, é precisamente a tarefa da ciência.

=   De todos modos há que afirmar energicamente duas coisas.

#   As qualidades sensíveis são reais na impressão.

#   Inteligir qual realidade além da impressão corresponde às qualidades sensíveis reais na impressão, só é possível graças à unidade física da formalidade de realidade do real na impressão e do real além da impressão.

e.    O tema da realidade das qualidades sensíveis é tão crucial que dedicaremos o próximo capítulo a tratá-lo mais amplamente e em confrontação com aqueles que a discutem ou a negam.

 

 

5.     A unidade da atualidade intelectiva senciente enquanto atualidade “e” enquanto intelectiva senciente é “comum atualidade”.

 

a.   Na intelecção senciente está presente unitariamente a realidade do inteligido (está presente algo real na minha audição, por exemplo), e a intelecção dessa realidade (está presente, por exemplo, a minha audição nesse algo real).

b.   Portanto, na intelecção senciente do real há uma “mesma atualidade”: a atualidade da intelecção senciente no real e a atualidade do real na intelecção senciente são uma mesma e única atualidade, são uma “comum atualidade”.

=   Comum significa aqui mesmidade numérica: a atualidade do real na intelecção senciente e a atualidade da intelecção senciente no real são numericamente e identicamente uma mesma e única atualidade.

#   Obviamente, aquilo que é atual é distinto: o real inteligido sencientemente é distinto da intelecção senciente do real; mas a sua atualidade, enquanto atualidade, é numericamente idêntica.

#   Isto não é uma construção teorética, mas a mera análise de qualquer ato intelectivo senciente; por exemplo, o estar presente este cheiro real no meu olfato é exatamente o mesmo estar presente o meu olfato neste cheiro real.

=   Trata-se duma comunidade coisa-real/intelecção-senciente de “mera atualidade”.

#   Não se trata duma “ação comum” produzida pela coisa real e pela minha inteligência.

+   Isso seria uma “comunidade de atuidade”; por exemplo, uma comunicação de substâncias ao modo de Leibniz.

+   Pois bem, essa presumível comunidade de atuidade não é um fato, mas uma construção metafísica e, além do mais, muito problemática.

#   Trata-se duma “comunidade de mera atualidade”: no ato mesmo de ver esta pedra real, por exemplo, a atualidade da pedra real vista é a mesma atualidade que a atualidade da visão da pedra real.

#   Nesta identidade de mera atualidade se atualiza precisamente a diferença entre a pedra real e a minha visão intelectiva; trata-se de “uma única” mera atualidade que atualiza ambos termos como duas realidades distintas.

+   Efetivamente, ao falar de mera atualidade comum do real na intelecção senciente e da intelecção senciente no real, estamos nos referindo não só à realidade das coisas reais, mas também à realidade da nossa própria intelecção senciente enquanto ato real.

+   O meu próprio ato de intelecção senciente é um ato real, é uma realidade; esta realidade do meu ato de intelecção senciente é atual na realidade da coisa real, na mesma e comum atualidade que a coisa real é atual na realidade do meu ato de intelecção senciente.

 

 

6.     A estrutura da “comunalidade” da atualidade “comum” da coisa-real e da inteligência-senciente consiste na unidade de três momentos: “com”, “em”, e “de”.

 

a.   “Com”: ao atualizar-se a coisa real na intelecção senciente, a intelecção senciente fica “co-atualizada” (“com”-atualizada) nessa mesma atualidade da coisa real.

b.   “Em”: nesta co-atualidade, está presente a coisa real “em” a intelecção senciente e a intelecção senciente “em” a coisa real.

=   Descrever a intelecção senciente só como um estar presente a coisa na inteligência senciente seria fazer uma descrição unilateral, porque tão presente está a inteligência senciente “em” a coisa real quanto está presente a coisa real “em” a inteligência senciente.

=   Naturalmente, não estamos dizendo que a intelecção senciente esteja “atuando” na coisa real inteligida, por exemplo, no sol; isso seria grotesco...; aquilo que estamos dizendo é que a intelecção senciente do sol se “atualiza” “em” a mesma atualização do sol na intelecção senciente.

c.    “De”

=   A atualidade comum é atualidade “de” realidade (“de” a realidade da coisa e “de” a realidade da intelecção senciente); é atualidade “de” uma mesma formalidade de realidade.

=   Este momento do “de” compete à intelecção senciente precisamente e formalmente em virtude da atualidade da intelecção senciente na mesma atualidade da coisa real; não é um caráter imediato, em contra daquilo que pensa Husserl.

 

 

7.     Na mesma e única atualidade comum da coisa-real e da inteligência-senciente é unitariamente “co-atual” a minha intelecção senciente dessa comum atualidade (=“con-sciência”).

 

a.   “Na mesma una e única comum atualidade” de algo real na minha intelecção senciente e da minha intelecção senciente nesse algo real, é “unitariamente co-atual” também a minha “intelecção senciente” de estar inteligindo sencientemente esse algo real; quer dizer, ao inteligir sencientemente algo real estou “unitariamente co-inteligindo sencientemente” a realidade do meu próprio ato de intelecção senciente desse algo real.

b    Isto é um tema complicado que há que analisar com todo rigor e precisão para evitar um sem fim de erros, como confundir intelecção com consciência (filosofia moderna), e consciência com reflexão ou introspecção (filosofia medieval).

=   Estou intelectivo-sencientemente em “mim” (na minha própria realidade) de modo irrefragável e inamissível em virtude, sobretudo, da intelecção senciente cenestésica da minha própria realidade.

=   Em virtude disso, esse “estar” senciente-intelectivamente em “mim”, na minha própria realidade, recobre inexoravelmente todo e qualquer “estar” intelectivo-senciente meu em outra coisa real; quer dizer, qualquer “estar” intelectivo-senciente “materialmente “meu”” - por assim dizer - em outra realidade, é um “estar” intelectivo-senciente “formalmente “meu””, porque o “estar” intelectivo-senciente na minha própria realidade inexoravelmente “co-está unitariamente” no meu “estar” intelectivo-senciente em outra realidade.

=   No mesmo e único “comum estar” intelectivo-senciente no qual “estou” numa coisa real e no qual essa coisa real “está” em mim, “co-está unitariamente” o meu estar intelectivo-senciente da minha intelecção-senciente dessa coisa real.

=   Importa salientar energicamente que se trata dum mesmo único e físico “comum estar co-estando” de atualidade intelectivo-senciente (e, consequentemente, dum mesmo único e físico “ato” de intelecção senciente); do contrário, abrir-se-ia uma série infinita de “estar” (e de “atos”) que faria completamente inviável a “minha” intelecção senciente do real.

#   Não há um comum estar da minha realidade na coisa real e da coisa real na minha realidade, e “depois” um segundo estar meu naquele comum estar da minha realidade na coisa real e da coisa na minha realidade; efetivamente, para isso teria que estar no estar em que estou, e teria que estar no estar do estar em que estou, e teria que estar no estar do estar no estar em que estou, e assim ao infinito.

#   É que não se trata de dois “estou”, mas dum mesmo e único “estou estando”, quer dizer dum único e mesmo “estou” (na coisa e a coisa [está] em mim) “estando” (em mim), quer dizer, se trata de que “co-estou no comum estar” meu na coisa e da coisa em mim.

#   Tudo isto, dito assim, parece uma bagunça soberana, mas é aquilo que se expressa planamente em castelhano, por exemplo, na forma “medial” do “mim” que é o “me”.

+   Costumamos dizer em castelhano, com perfeita exatidão, por exemplo, expressões como estas: ““me” veo una película”; ““me” oigo un disco”; ““me” huelo un perfume”; ““me” saboreo esta cerveza”, etc., e não simplesmente: “veo una película”; “oigo un disco”; “huelo un perfume”; “saboreo esta cerveza”, etc.

+   À parte de outra dimensão fundamental desse “me” (que agora aqui não nos interessa), com esse “me” estamos também expressando medialmente que co-sentimos-intelectivamente estar tendo intelecção senciente de algo real, como é: ver um filme, ouvir um disco, cheirar um perfume, saborear uma cerveja, etc.

=   Analisemos isto no exemplo de “ver uma pedra”.

#   Na mesma e única “comum atualidade” intelectivo-senciente visual, “estão” a realidade da pedra e a realidade da minha visão: “estou” realmente vendo a realidade duma pedra ou, o que é a mesma coisa, uma pedra “está” realmente na realidade da minha visão (efetivamente, é o mesmo “vejo pedra” que “pedra à vista!”...).

#   Mas resulta que, ao estar intelectivo-sencientemente na minha própria realidade, sobretudo em virtude da minha intelecção senciente cenestésica, não posso não “co-estar” intelectivo-sencientemente no “estar” a minha realidade realmente vendo a realidade duma pedra.

#   Omitindo, para simplificar, o momento intelectivo, digamos: “me” sinto vidente duma pedra; dito de outro modo: vejo uma pedra co-sentindo-me vidente dela.

#   Se isto não fosse assim, aquilo que eu teria é um sentir meu de visão da pedra (caindo na série infinita de atos já ditos), mas jamais um “estar sentindo-“me”” na “minha visão” da pedra.

c.    Como a intelecção senciente do real é chamada usualmente (e impropriamente) de “ciência”, esta “co”-atualidade da intelecção senciente na sua intelecção senciente do real é chamada usualmente (e impropriamente) “con”-sciência.

=   Este “com” de “con-sciência” se funda no momento radical do “com” da comum atualidade da coisa real e da inteligência senciente, do qual falamos acima; no caráter de ““co”-atualidade” da atualidade comum da coisa real e da inteligência senciente, radica o meu ““co”-sentir” intelectivamente a realidade da minha própria intelecção senciente da coisa real.

=   A con-sciência, fundada na comum atualidade da coisa real e da intelecção senciente, radica assim mesmo nos momentos do “em” e do “de” dessa comum atualidade, dos quais também falamos acima, e é, por sua vez, consciência-em e consciência-de.

#   Consciência-em

+   Ao co-sentir intelectivamente (=con-sciência) a realidade da minha intelecção senciente de algo real, também estou co-sentindo-me “em” a coisa real, e co-sentindo que a coisa real está “em” mim, quer dizer, também estou con-scientemente “em” a coisa real e “em” minha própria intelecção.

+   Por esse motivo, às vezes dizemos, com acerto, que alguém “não está “em” a coisa”, para expressar que está distraído num assunto ou que não o conhece bem.

#   Consciência-de: ao co-sentir intelectivamente (=con-sciência) a realidade da minha intelecção senciente de algo real, também tenho consciência “de” a coisa real e “de” minha intelecção senciente mesma.

=   Fique claro que a consciência não é primariamente e radicalmente “consciência-de”, mas “con-sciência”; a “consciência-de” está fundada na “consciência-em”, que está fundada, por sua vez, na “con-sciência”.

=   A filosofia moderna, partindo erradamente da “consciência-de” (Bewusstsein-von), como de algo que repousa sobre si, caiu no grave erro de identificar “consciência” e “consciência-de”, e de identificar intelecção e consciência!

d.   Algumas observações importantes sobre a con-sciência.

=   A consciência humana é radicalmente “consciência senciente”, porque toda intelecção humana, e portanto também a co-intelecção da própria intelecção (=consciência), é intelecção impressiva, intelecção senciente.

=   Intelecção não é consciência, porque inteligir é apreender as coisas como reais e não co-inteligir que se está apreendendo as coisas como reais; mas, obviamente, toda intelecção é necessariamente consciente, quer dizer, em toda intelecção necessariamente se co-intelige que se está apreendendo as coisas como reais.

=   Não todos os atos humanos são conscientes; os intelectivos, obviamente sim, como acabamos de dizer; mas não são intelectivos por serem conscientes; ao invés: são conscientes sendo já intelectivos.

#   Não estou apreendendo algo real porque co-apreendo que estou apreendendo algo real.

#   Estou co-apreendendo que estou apreendendo algo real no estar já apreendendo algo real.

=   Consciência sensitiva (meramente animal) e consciência senciente (animal-humana)

#   Consciência de estimulidade (meramente animal)

+   Em virtude do momento de formalidade de estimulidade, o mero animal sente estimulicamente o sentido e “unitariamente” “co-sente” estimulicamente a sua própria impressão.

+   Este co-sentir estimúlico é aquilo que constitui a “consciência sensitiva” do mero animal, a sua consciência estimúlica; fala-se muito dela, mas nunca se nos diz em que consiste; ao máximo se nos dá a entender que o mero animal se dá conta de muitas menos coisas que o homem...

#   Consciência de realidade (animal-humana)

+   O sentir humano é co-atualização de realidade (não de estimulidade como no mero animal); neste “com” de atualidade se funda a “consciência senciente de realidade” própria do homem.

+   O mero animal não é que só se dá conta de muitas menos coisas do que o homem; é que a sua consciência sensitiva animal (estimúlica) é “essencialmente” distinta da consciência senciente humana (de realidade).

=   Consciência não é reflexão nem introspecção.

#   A filosofia medieval considera que a consciência é “reflexão” entendida esta como um entrar dentro de si mesmo de volta das coisas (=reditio in seipsum), quer dizer, aquilo que a filosofia moderna chama de “introspecção” (= olhar-se a si mesmo).

#   Isto é falso.

+   Primeiro, porque, é falsa essa concepção da “reflexão”.

-   Essa presumível “entrada” em mim mesmo de “volta” das coisas seria impossível, porque, uma vez mais, constituiria um processo infinito no qual nunca conseguiria entrar em mim; efetivamente, ao voltar sobre mim mesmo teria que voltar sobre a minha própria volta, e assim infinitamente.

-   É que é radicalmente falso que a reflexão consista em ““entrar” em mim de “volta” das coisas”, porque é radicalmente falso que tenha que entrar em mim já que jamais saio de mim.

*   Já o dissemos: estou intelectivo-sencientemente em “mim” (na minha própria realidade) de modo irrefragável e inamissível em virtude, sobretudo, da intelecção senciente cenestésica da minha própria realidade.

*   E também dissemos: quando estou senciente-intelectivamente nas coisas, co-estou senciente-intelectivamente na realidade da “minha” própria intelecção senciente das coisas; de tal modo que, quando estou senciente-intelectivamente nas coisas, precisamente estando nas coisas é assim como estou em mim.

+   Segundo, porque consciência não é reflexão, mas aquilo que explicamos detalhadamente.

#   O que é, então, reflexão?

+   O fundamento de toda possível reflexão, como dissemos no capítulo anterior, é a intelecção senciente cenestésica da minha própria realidade recoberta pelo modo de intelecção senciente cinestésico, quer dizer, a intelecção senciente “para dentro” da minha própria realidade.

+   Aí se fundamenta a possibilidade de toda e qualquer reflexão, que é a intelecção senciente para dentro da minha própria realidade (e, portanto, também para dentro da realidade dos meus próprios atos, do tipo que forem) em todas as modalidades que se quiser.


VII

 

A REALIDADE DAS QUALIDADES SENSÍVEIS

 

 

 

 

A.   Colocação do problema

 

 

1.     Opiniões do realismo ingênuo, do subjetivismo científico e do realismo crítico

 

a.   O realismo clássico, chamado de ingênuo pela ciência e pela filosofia modernas, afirma que as qualidades sensíveis são reais porque nos apresentam as coisas tal qual são realmente no mundo além das nossas sensações.

b.   Subjetivismo científico

=   A ciência moderna nega o caráter de realidade das qualidades sensíveis, porque descobriu que as coisas em si mesmas, além da percepção, não são coloridas nem sonoras, etc.

=   Por isso afirma que as qualidades sensíveis são só “impressões subjetivas” nossas; efetivamente, se desaparecessem do cosmos os animais dotados de sentido visual ou auditivo, por exemplo, desapareceriam do cosmos todas as cores, sons, etc.

c.    O realismo chamado de crítico afirma que as qualidades sensíveis são, efetivamente, impressões subjetivas nossas, mas têm um certo caráter de realidade, porque são “causadas” (racionalismo antes de Kant) ou “dadas” (Kant) pelo real além da percepção sensível.

 

 

2.     O quid do problema: o que é “realidade”?

 

a.   Como pode apreciar-se claramente, o quid da questão acerca da realidade das qualidades sensíveis está em determinar o que é “realidade”.

=   Estamos perfeitamente de acordo com a ciência moderna que afirma que as coisas no mundo não são como as apreendemos em nossos sentidos; mas esse não é o quid do problema.

=   O quid radical e crucial do problema é o seguinte: o que entende a ciência moderna por “realidade” quando qualifica as qualidades sensíveis de “não-reais” e, portanto, de meras impressões subjetivas nossas?

b.   É obvio que a ciência moderna (exatamente igual que os realismos ingênuo e crítico) entende por realidade “aquilo que as coisas são no mundo além e independentemente da nossa percepção sensível”.

c.    Pois este é precisamente o quid da questão.

=   Onde está dito que realidade seja “aquilo que as coisas são no mundo além e independentemente da nossa percepção sensível”?

=   E se resulta que, como afirmamos teimosamente, “realidade” é tudo aquilo cujos caracteres lhe pertencem “de seu”, “em próprio”, seja que esteja na percepção sensível seja que esteja no mundo além da percepção sensível?

=   Mostramos de sobras que esta última é a única concepção correta de “realidade”; em virtude disso, afirmamos rotundamente quanto segue.

 

 

 

B.   As qualidades sensíveis são reais e não impressões subjetivas nossas.

 

 

1.     As qualidades sensíveis são reais.

 

a.   Repitamos uma vez mais: se atendemos ao “fato” da apreensão senciente humana e não a elucubrações, temos que afirmar que realidade não é aquilo que as coisas são além da percepção sensível, mas tudo aquilo cujos caracteres lhe pertencem “de seu”, “em próprio”, seja que esteja na percepção sensível seja que esteja no mundo além da percepção sensível.

=   Realidade é a formalidade de alteridade com a qual me está presente o apreendido sencientemente; o apreendido sencientemente por mim, não me está presente como “mero estímulo” ou como “efeito” ou “dado” de algo que está além do apreendido sencientemente, mas como real, quer dizer, como tendo “de seu”, “em próprio”, todos os seus caracteres.

=   Agora bem, esta formalidade de realidade é um prius a respeito da sua apreensão senciente; quer dizer, a coisa me está presente “em” minha apreensão senciente (não fora dela) como real “já” real “antes” (já-antes = prius) do seu estar presente na minha apreensão senciente.

=   Este caráter de prius da formalidade de realidade da coisa a respeito da sua apreensão senciente não é algo que infiro por uma espécie de dedução racional minha, mas um mero caráter da formalidade de realidade da coisa precisamente no seu estar presente em minha apreensão senciente.

b.   Esta concepção de realidade abre a possibilidade a muitas formas e modos de realidade, e a diversas áreas de realidade.

=   Não tem porque ser idêntica a realidade meramente material à realidade material viva, à realidade pessoal, à realidade social, à realidade histórica, à realidade moral, etc.; mas todas coincidem em serem realidade, quer dizer, em serem algo “de seu”, algo “em próprio”.

=   Não tem porque ser idêntica a realidade de algo na área de realidade da apreensão senciente à realidade de algo na área além da apreensão senciente, mas ambas áreas de realidade coincidem justamente nisso: em serem áreas “de realidade”, do “de seu”, do “em próprio”.

c.    Em virtude de quanto acabamos de dizer, afirmamos energicamente que as qualidades sensíveis apreendidas em intelecção senciente são reais.

=   A área de realidade do apreendido sencientemente não é menos real do que a área de realidade do “além” do apreendido sencientemente; na apreensão senciente, as qualidades sensíveis (cores, sons, cheiros, sabores, calores, etc.), são tão reais (tão “de seu”) quanto são reais (“de seu”) as coisas além da apreensão senciente (fótons, ondas elásticas longitudinais, velocidade das moléculas, etc.).

=   Consideradas as qualidades sensíveis desde as coisas reais além da apreensão senciente, quer dizer, argumentando não formalmente, mas desde o ponto de vista da ciência moderna, o que estamos dizendo é o seguinte.

#   As qualidades sensíveis são a “maneira real” como as coisas além da apreensão senciente são realidade “em” ela; as qualidades sensíveis, que segundo a ciência são produzidas na atuação mútua das coisas e dos órgãos receptores sensitivos, são apreendidas como reais, como “de seu”, na sua mera atualidade na apreensão senciente.

#   Portanto, é obvio que, se desaparecessem os órgãos receptores sensitivos, desapareceriam as cores, os sons, os cheiros, os sabores, etc., quer dizer, desapareceriam realidades que não são reais além da apreensão senciente; mas o atualmente apreendido na apreensão senciente não deixa de ser real por ser real só na apreensão senciente.

#   Que as qualidades sensíveis sejam produto da atuação das coisas nos órgãos receptores sensitivos não significa que as qualidades sensíveis não pertençam realmente às coisas, mas que pertencem a elas só nisso que a ciência chama de fenômeno da percepção.

=   Por conseguinte, não é realismo ingênuo afirmar que as qualidades sensíveis são reais; o único que é realismo ingênuo é afirmar que as qualidades sensíveis são reais além da apreensão senciente e fora dela.

 

 

2.     As qualidades sensíveis não são impressões subjetivas, mas impressões subjetuais de realidade.

 

a.   Em realidade, o cientificismo e o realismo crítico são um “subjetivismo ingênuo” porque afirmam, sem mais, que as qualidades sensíveis são subjetivas por não pertencerem às coisas reais além da percepção.

=   Certamente é um realismo ingênuo considerar hoje que as qualidades sensíveis são propriedades das coisas fora da percepção.

=   Mas também é certamente um subjetivismo ingênuo afirmar que as qualidades sensíveis são subjetivas porque não pertencem ao real além da percepção.

=   Ambas ingenuidades partem do pressuposto arbitrário de que realidade é só aquilo que as coisas são na área além da percepção.

b.   Este subjetivismo ingênuo é insustentável por três motivos.

=   Não há nenhuma possibilidade de articulação entre as qualidades sensíveis e as coisas reais além da percepção, se se parte da afirmação arbitrária de que as qualidades sensíveis são subjetivas.

#   Se todo o âmbito do sensorial é subjetivo, como pode a inteligência sair-se do sensorial e saltar à presumível realidade?

#   A resposta do racionalismo é insuficiente.

+   Exposição

-   O racionalismo, nas suas diversas modalidades, diz que esse salto o dá o conceito (ao que considera o ato primário e radical de intelecção): o conceito me diz com verdade aquilo que são as coisas.

-   Assim, por exemplo, a realidade do sol não é aquilo que percebo sensorialmente do sol, mas aquilo que do sol me dizem os conceitos da astronomia.

+   Crítica

-   Em rigor, segundo a afirmação do exemplo, os conceitos astronômicos nem conceituam de fato a realidade do sol, nem por si mesmos são capazes de conceituá-la, porque esses conceitos, por si mesmos, seriam apenas conceitos objetivos, mas jamais conceitos de realidade, já que realidade é algo abismalmente diferente de objetividade, como vimos.

-   Se o racionalismo tivesse razão, a ciência seria puramente e simplesmente um sistema coerente de conceitos objetivos, mas jamais seria ciência da realidade.

#   Para que os conceitos sejam conceitos de realidade, têm que estar fundados intrinsecamente e formalmente no âmbito “real” do sensorial, quer dizer, da realidade sencientemente apreendida enquanto realidade.

+   Os conceitos científicos são imprescindíveis; mas o concebido neles é real só se o real está já presente como real na percepção; só neste caso o conceito ganha alcance de realidade; só neste caso, por exemplo, o conceito astronômico do sol pode nos dizer aquilo que é em realidade o sol.

+   Certamente, só com a percepção do sol não há ciência astronômica do sol; mas sem realidade solar que está presente dalguma maneira na nossa apreensão senciente, não é só que não haveria ciência astronômica do sol, é que não haveria “sol real”...

+   Em virtude de que as qualidades sensíveis solares estão presentes na apreensão senciente como reais, como “de seu”, a astronomia não é meramente ciência dos conceitos objetivos do sol, mas ciência do sol real.

#   Por conseguinte, fique claro que seria impossível qualquer articulação entre a percepção sensorial e a realidade além da percepção, por muito grande que for a riqueza de conceitos, se o percebido sensorialmente, quer dizer, as qualidades sensíveis, fossem impressões subjetivas.

+   Os racionalistas recalcitrantes argumentam que a razão deduz a existência das coisas reais além das nossas impressões subjetivas, aplicando a elas o princípio de causalidade.

+   Pois bem, é claro que essa argumentação racionalista pressupõe já de alguma maneira o caráter de realidade do apreendido em nossas impressões.

-   Se se afirma que as qualidades sensíveis não são realidade no sujeito, e se nega que sejam reais em si mesmas, em que se apoiaria esse princípio de causalidade?

-   O raciocínio causal poderá nos levar dum sujeito colorido ao conceito de outro sujeito colorido distinto (!), mas jamais nos poderá levar dum sujeito a uma realidade.

-   Se o apreendido sencientemente é formalmente subjetivo, a argumentação causal cai no mais perfeito vácuo.

+   O realismo crítico racionalista, em todas as suas modalidades, é uma concepção “pseudorealista”!

#   Afirmar que as qualidades sensíveis são impressões subjetivas equivale a afirmar que são qualidades do meu sujeito e, portanto, que a minha apreensão senciente é branca, sonora, quente, etc.; seria grotesco!

=   É que as qualidades sensíveis não são impressões subjetivas, mas impressões subjetuais de realidade, coisa muito diferente, como vamos ver a seguir.

#   A ciência e a filosofia modernas chamam frivolamente de “subjetivo” tudo aquilo que é relativo a um sujeito, por exemplo, as qualidades sensíveis, porque consideram que são algo relativo aos órgãos sensoriais do sujeito, e dependente deles.

#   Pois bem, há que distinguir com todo rigor entre subjetual e subjetivo.

+   Subjetual é tudo aquilo que é próprio e depende (do modo que for) dum sujeito, dum “mim”; subjetual é tudo aquilo que é meu, “de mim”.

+   Subjetivo é tudo aquilo que é próprio e depende “só” dum sujeito e que não tem nada a ver com o resto da realidade, por assim dizer.

# Ponhamos um exemplo.

+   Quando digo: “meu Deus!”, estou dizendo, entre outras coisas, que Deus “enquanto meu”, enquanto Deus “de mim”, é o momento subjetual do “meu Deus”.

+   Não quero dizer, em absoluto, que o meu Deus seja subjetivo, isto é, que seja só uma propriedade minha, algo que depende só de mim; seria absurdo.

+   Quero dizer que o meu Deus é Ele, não mim (não subjetivo); e que só a dimensão de Deus enquanto “Deus de mim” é minha (subjetual).

#   Votemos às qualidades sensíveis; as qualidades sensíveis têm um momento subjetual: são impressões “minhas”, “de mim”; mas não são subjetivas, porque não são “só minhas”, mas são também, e sobretudo, o estar presente algo real, algo “de seu”, na “minha” apreensão senciente.

#   As qualidades sensíveis, como tantas coisas, são reais, são “de seu” ainda que sejam realidade fugaz, variável e relativa em certo modo; não deixam por isso de serem reais na sua mesma fugacidade, variabilidade e relatividade.

+   A fugacidade, a variabilidade e a relatividade das qualidades sensíveis não são caracteres da sua presumível “subjetividade”, mas da sua “unicidade” real, quer dizer, do seu caráter de realidade “única”, do seu caráter de ser algo “de seu” único; por quê?

-   Porque são uma realidade que concerne à atuação das coisas sobre os órgãos sensoriais do indivíduo humano, tal atuação é respectiva a esses órgãos e ao estado em que se encontram, e é variável não só duns indivíduos a outros, mas também dentro do mesmo indivíduo, inclusive no curso duma mesma percepção.

-   Esses órgãos e a sua interação com as coisas são algo real; todos os estados fisiológicos dum organismo, por muito individuais que forem, não por isso deixam de serem estados reais; e esses estados, quando concernem aos órgãos receptores sensitivos, individualizam aquilo que apreendem sencientemente.

-   Agora bem, o apreendido sencientemente, apesar da sua relatividade e individualidade orgânica, não por isso deixa de ser realidade; o que acontece é que essa realidade é “única”: a área do real na percepção tem esse caráter de unicidade, mas não de subjetividade.

+   A impressão de realidade das qualidades sensíveis é uma mera atualização impressiva “única” do real, e não algo “subjetivo”.

-   É tão falsa a afirmação de que o real único, por ser fugaz, variável e relativo, é subjetivo, quanto a afirmação de que só é real aquilo que está além da percepção.

-   O que acontece é que a ciência não se fez questão do que é a subjetividade...; na ciência, a apelação à subjetividade é só um expediente sumaríssimo para não ter que dar uma explicação científica nem das qualidades sensíveis nem da subjetividade!

=   O subjetivismo ingênuo parte do suposto de que o sentir é uma relação entre um sujeito e um objeto; pois bem, isso é radicalmente falso como vimos e seguiremos vendo.

#   A intelecção senciente do real não é relação, nem correlação, nem nada semelhante, mas algo muito mais simples e radical: comum atualidade do real e da inteligência senciente.

#   Daí que toda essa montagem de subjetividade versus realidade é uma construção mental apoiada em algo radical e formalmente falso, e, portanto, falseado em todos os seus passos.

 

 

 

C.   Articulação da realidade “em” a apreensão senciente (qualidades sensíveis reais) e da realidade “além” da apreensão senciente (coisas reais no mundo)

 

 

1.     Ambas áreas de realidade se distinguem pelo seu conteúdo de realidade, mas são idênticas e se articulam pela sua mesma, una e única formalidade de realidade.

 

a.   Se se quer falar de oposição, aquilo que há que opor não é o “real-objetivo” (além da percepção) ao “arreal-subjetivo” (na percepção), mas duas áreas de realidade: realidade “em” a percepção e realidade “além” da percepção.

b.   Tanto na área além da percepção quanto na área da percepção se trata sempre de autêntica e estrita realidade; ambas áreas são áreas de realidade porque se inscrevem numa mesma e única formalidade de realidade (“de seu”).

=   O real além da percepção é real não por estar além da percepção, mas por ser “de seu” aquilo que é além da percepção.

=   O real na percepção é real porque é “de seu” aquilo que é na percepção.

c.    Aquilo que é diferente nas realidades duma e de outra área de realidade é o seu “conteúdo” real, quer dizer, aquilo que elas são “de seu”.

=   O conteúdo do real além da percepção pode ser distinto do conteúdo do real na percepção.

=   Por isso, o conteúdo do real na área além da percepção é sempre problemático, é sempre algo que a inteligência senciente tem que buscar em marcha intelectiva, como veremos quando falarmos do modo ulterior de intelecção que chamamos de “razão”.

 

 

2.     A área de realidade na apreensão senciente, apreendida nesta como realidade em “para”, nos lança à área de realidade além da apreensão senciente.

 

a.   Já vimos que a apreensão senciente apreende as coisas enquanto reais de diversos modos, que constituem diversos modos de estrita intelecção senciente do real.

b.   Um desses modos de intelecção senciente, o modo próprio da intelecção senciente cinestésica ou direcional, apreende o real como real em “para”; não se trata, como dissemos,  dum “para” extrínseco à realidade, quer dizer, dum para a realidade, mas dum “para” intrínseco à realidade, quer dizer, da realidade mesma como realidade em “para”.

c.    Este modo de intelecção senciente do real “em para”, recobrindo todos os demais modos de intelecção senciente, nos lança nas qualidades sensíveis percebidas “para” o real além da percepção.

=   Ser lançados ao real além da percepção é algo inexorável, porque a percepção das qualidades sensíveis como realidade em para é um momento intrínseco da percepção das qualidades sensíveis.

#   Efetivamente, toda qualidade sensível é percebida não só desde si mesma e em si mesma como qualidade sensível real, mas também como qualidade sensível real “em para”.

#   O orto da ciência está precisamente aí, quer dizer, em que as qualidades sensíveis, justamente na sua apreensão senciente como reais, estão nos remitindo nessa sua própria realidade “para” o real além da apreensão senciente; é tarefa da ciência descobrir o problemático termo real desse “para”.

#   Daí que a ciência não seja uma ocorrência caprichosa da inteligência, nem um arbitrário sistema de conceitos, mas algo que arranca inexoravelmente da apreensão senciente das qualidades sensíveis reais.

=   Por conseguinte, tudo aquilo que a ciência afirma do mundo físico só está justificado como “fundo formal” das qualidades sensíveis apreendidas sencientemente como reais.

#   Por exemplo, a realidade das cores é a realidade das ondas eletromagnéticas ou dos fótons no seu estar presentes na apreensão senciente; a realidade dos sons é a realidade das ondas elásticas longitudinais no seu estar presentes na apreensão senciente, etc.

#   Se as qualidades sensíveis não fossem reais na apreensão senciente, a ciência seria um sistema arbitrário de conceitos, mas jamais um conhecimento do real!


VIII

 

A INTELECÇÃO SENCIENTE ENQUANTO ATUALIDADE INTELECTIVA DA REALIDADE:

A VERDADE REAL

 

 

 

 

A.   A verdade real

 

 

1.     Realidade,  verum da realidade e intelecção senciente verdadeira

 

a.   A realidade não tem porque ser só a realidade atualizada na intelecção senciente, porque, como vimos, a realidade se atualiza na intelecção senciente como já real antes (prius) da sua atualidade na intelecção senciente.

b.   Agora bem, a realidade que se atualiza na intelecção senciente ganha, em virtude dessa atualidade, um caráter novo: é vera realidade, é verum; “verdade” é primariamente e radicalmente um caráter da realidade, é a realidade “enquanto atualizada na intelecção senciente”; a sua mera atualidade na intelecção senciente acrescenta à realidade o seu caráter de verum.

=   Insistimos em que não toda realidade está atualizada na intelecção senciente nem tem porque está-lo; por conseguinte, a realidade enquanto tal não é verum nem tem porque sê-lo.

=   Agora bem, a realidade que se atualiza na intelecção senciente, em virtude dessa atualidade sua, sem ganhar nenhuma nota física nova (sem modificar em nada a sua atuidade), ganha justamente a sua atualidade na intelecção senciente, quer dizer, o seu verum: é realidade vera, é vera realitas.

c.    Em virtude disso, a intelecção senciente “enquanto atualidade da realidade” é intelecção senciente “verdadeira”, é “verdade intelectiva senciente”.

=   A realidade vera, o verum da realidade, é aquilo que dá verdade à intelecção senciente; a realidade, ao atualizar-se na intelecção senciente, “verdadea” em e à intelecção senciente.

=   Daí que sejam falsas a radice, por exemplo, as concepções cartesiana e kantiana da verdade intelectiva.

#   Falsidade da concepção da verdade intelectiva segundo Descartes

+   Exposição

-   Descartes constata o fato de que há intelecções falsas, não verdadeiras.

-   Em virtude disso, afirma que a intelecção “tanto” pode ser verdadeira “quanto” pode ser falsa (!).

-   Daí conclui (!!) que verdade e erro são duas qualidades da intelecção que funcionam ex aequo, e que, portanto, a intelecção enquanto tal é “neutra” a respeito dessa diferença verdade/erro.

-   Por conseguinte, segundo ele, o próprio da intelecção não é ter verdade, mas ter pretensão de verdade (!!!).

+   Crítica: tudo isso envolve uma série de graves inexatidões que vão associadas à análise idealista cartesiana da intelecção.

-   Em primeiro lugar, a verdade e o erro de que nos fala Descartes não são a verdade e o erro do modo primário e radical de intelecção, que é a apreensão primordial de realidade.

*   Descartes fala só da verdade e do erro dum modo “ulterior” de intelecção que é a intelecção afirmativa ou juízo (logos), que já veremos.

*   Pois bem, o modo primário e radical de intelecção, quer dizer, a apreensão primordial de realidade, é metafisicamente impossível que inclua erro; é sempre verdadeira, como vamos ver em seguida.

-   Em segundo lugar, verdade e erro não funcionam ex aequo nem sequer na intelecção afirmativa ou juízo.

*   Do fato inconcusso de que há juízos errôneos não se deriva que verdade e erro sejam duas qualidades do juízo “igualmente” possíveis ou equiparáveis, nem que o juízo seja algo “neutro” a respeito dessas duas qualidades.

*   Dado que a intelecção enquanto tal é essencialmente a atualidade do real na intelecção, toda intelecção, também o juízo, teria que ser “de seu” verdadeira.

*   Portanto, o juízo que contém erro não é que meramente “careça” de verdade (quer dizer, não é que não tenha algo que em si mesmo não tem porque ter); é que está formalmente e rigorosamente “privado” de verdade (quer dizer, não tem algo que em si mesmo deveria ter).

-   Em terceiro lugar, do dito se desprende que o próprio da intelecção afirmativa ou juízo não é simplesmente ter pretensão de verdade, mas ter que ser verdade.

#   Falsidade da concepção da verdade intelectiva segundo Kant

+   Segundo ele, a verdade intelectiva é essencialmente “consciência objetiva”.

+   Depois de tudo aquilo que expusemos, se vê claramente que essa concepção kantiana da verdade intelectiva é falsa desde a raiz.

-   Em virtude duma análise inexata do fato da intelecção, Kant chega a essas duas falsas identificações: intelecção é essencialmente consciência dos dados sensíveis; o inteligido é essencialmente objeto (síntese objetiva de dado sensível e de conceitos a priori).

-   Pois bem, já mostramos suficientemente que a intelecção não é um ato de consciência, mas o ato de apreensão senciente do real como real, e que o inteligido não é objeto (quer dizer, não tem só a formalidade de alteridade objetiva própria da apreensão senciente do mero animal) mas realidade (quer dizer, tem a formalidade de alteridade real própria da apreensão senciente animal-humana).

 

 

2.     A verdade da apreensão primordial de realidade é “verdade real”.

 

a.   A intelecção primária e radical, quer dizer, a intelecção senciente de algo real meramente como real, a denominamos com perfeita exatidão de “apreensão primordial de realidade”.

b.   Em virtude disso, a verdade intelectiva primária e radical, quer dizer, a verdade intelectiva própria e exclusiva da apreensão primordial de realidade, a denominamos com o mesmo rigor de “verdade real”.

c.    Efetivamente, na apreensão primordial de realidade (apreensão senciente do real meramente como real, quer dizer, apreensão senciente do real imediatamente, diretamente e unitariamente como algo “de seu”), a realidade meramente atual nela não faz mais do que “ratificar a sua realidade”.

d.   Assim pois, verdade real é esse modo primário e radical de verdade intelectiva que consiste puramente e simplesmente em ser “mera ratificação do real na sua atualidade intelectiva senciente primordial e radical”.

=   A verdade real é verdade porque é um caráter da apreensão primordial de realidade enquanto que nela está presente o real verdadeando-a, dando-lhe a sua verdade.

=   A verdade real é real porque é o real mesmo que, meramente ratificando a sua realidade na sua atualidade intelectiva-senciente primária e radical, está verdadeando, dando verdade à apreensão primordial de realidade.

e.    Duas observações essenciais acerca da verdade real

=   A verdade real é essencialmente uma “mera ratificação” do real; daí a radical insuficiência da concepção clássica da verdade intelectiva.

#   Ao não reparar no modo primário e radical da verdade intelectiva, quer dizer, na verdade real, a filosofia pensou sempre que a verdade intelectiva é essencialmente a conformidade da intelecção (que, para ela, é primariamente e radicalmente conceito, juízo e razão) com aquilo que são as coisas reais além da intelecção, quer dizer, à parte e fora dela; daí a célebre definição clássica: verdade intelectiva é a conformidade do pensamento com as coisas.

#   Tudo isso é radicalmente insuficiente.

+   O modo primário e radical de verdade intelectiva é a verdade real, quer dizer, a verdade intelectiva da apreensão primordial de realidade.

+   Pois bem, na apreensão primordial de realidade e, portanto, na sua verdade real, não há nem conceito nem juízo nem razão; a intelecção em que a apreensão primordial de realidade consiste não é nem concepção da realidade nem juízo sobre a realidade nem raciocínio acerca da realidade, mas mera apreensão senciente (não concebente nem lógica nem racional) de realidade, quer dizer, mera impressão de realidade.

+   Mais ainda, na apreensão primordial de realidade não saímos da intelecção para algo real que estaria presumivelmente à parte e fora dela; lembremos que a apreensão primordial de realidade é mera comum atualidade do real na intelecção senciente e da intelecção senciente no real, num único e físico “estar”.

+   Daí que a verdade real, quer dizer, o caráter de verdade intelectiva que ganha a apreensão primordial de realidade em virtude da mera atualidade do real nela, consista essencialmente em “mera ratificação” da realidade do real meramente atualizado como algo real nela, e não em conformidade do tipo que for.

+   A essência desta “mera ratificação” é justamente esta positiva e árdua não-saída do real como real nos seus dois momentos: a atualidade do real e a mera ratificação do real na sua atualidade.

#   Por conseguinte, para distinguir com rigor a verdade real dos modos ulteriores de verdade intelectiva, que veremos no seu momento, vamos chamá-la também de “verdade simples” ou “verdade elementar”, mas não no sentido da simplicidade aristotélica, e sim no sentido de simplicidade que vamos explicar.

+   Segundo Aristóteles, ser simples consiste em não ter nenhuma multiplicidade; então nos diz que as qualidades sensíveis, como objeto formal próprio de cada sentido, são ta haplá (o simples).

+   Pois bem, não é certo o que nos diz Aristóteles sobre a simplicidade do conteúdo do apreendido sencientemente; essa presumível simplicidade não se dá jamais; o conteúdo do apreendido sencientemente é sempre um sistema complicadíssimo e múltiplo de qualidades sensíveis (como mostra a moderna psicologia experimental).

+   Mas é que, seja como for, a simplicidade da verdade real não radica nessa simplicidade (que nunca se dá) do conteúdo do apreendido sencientemente na apreensão primordial de realidade, mas na simplicidade do modo de apreensão senciente em que a apreensão primordial de realidade consiste.

+   A simplicidade do modo de apreensão senciente da apreensão primordial de realidade consiste em que toda a interna complicação, variedade e multiplicidade do apreendido nela é apreendida per modum unius (quer dizer, de modo unitário, direto e imediato) meramente como real.

=   Na apreensão primordial de realidade não cabe mais que verdade real e não há nenhuma possibilidade de erro!

#   Toda apreensão primária de realidade é meramente ratificante do real apreendido; portanto, é sempre e só constitutivamente e formalmente verdade real.

#   Em virtude disso, na apreensão primordial de realidade é metafisicamente impossível o erro.

+   Na apreensão primordial de realidade simplesmente me estão presentes uma série de qualidades sensíveis meramente como reais, quer dizer, como pertencentes “de seu”, “em próprio” ao que me está presente.

+   Para que haja erro, tenho que ir forçosamente desde a apreensão primordial de realidade aos outros modos ulteriores de intelecção; por exemplo, posso ter erro (me posso equivocar) quando concebo e julgo o que é em realidade e quando conheço o que é na realidade, aquilo que vi ou ouvi ou cheirei ou gostei, etc., como real.

-   Equivoco-me, por exemplo, se, quando afirmo (juízo intelectivo): “acabo de ver um gato”, aquilo que vi como real resulta que não é em realidade um gato mas um zorro; quer dizer, me equivoco ao identificar como gato o sistema de qualidades sensíveis reais que acabo de ver, mas não me equivoco de nenhuma maneira em ter visto como real (apreensão primordial de realidade) um determinado sistema de qualidades sensíveis que, depois, identifico falsamente como sendo em realidade gato.

-   Equivoco-me também, por exemplo, se, quando afirmo (juízo intelectivo): “acabo de ver algo real que é real além da minha visão”, aquilo que vi como real resulta que não é real além da minha visão (pelo motivo que for); me equivoco ao identificar como real além da minha visão o sistema de qualidades sensíveis reais que acabo de ver, mas não me equivoco de nenhuma maneira em ter visto como real (apreensão primordial de realidade) um determinado sistema de qualidades sensíveis que, depois, identifico falsamente como sendo real além da minha visão.

+   Que na apreensão primordial de realidade é metafisicamente impossível o erro, é perfeitamente certo, também em todos os casos de má formação dos órgãos receptores sensoriais, como é o caso do daltonismo, por exemplo.

-   Um homem daltônico vê cor cinza escura onde um homem “normal” (?) vê cor vermelha.

-   Pois bem, em ambos os casos, dentro da apreensão primordial de realidade, tão cinza escuro real é aquilo que vê o daltônico quanto vermelho real é aquilo que vê o normal.

-   Não só, mas é tão falso dizer que aquilo que vê o daltônico é realmente cinza escuro além da sua visão, quanto dizer que aquilo que vê o normal é realmente vermelho além da sua visão, porque além da visão, as coisas não têm cor nenhuma...

 

 

 

B.   Dimensões da verdade real

 

 

1.     A realidade tem estruturalmente três dimensões.

 

a.   “Totalidade”: ao estar presente algo real na minha apreensão primordial de realidade (uma cor, uma pedra, um cachorro, um astro, uma paisagem, etc.), me está presente como um “todo”.

b.   “Coerência”: ao estar presente esse todo real na minha apreensão primordial de realidade, me está presente não como uma espécie de amálgama de qualidades sensíveis, mas como um todo “coerente” na sua intrínseca e formal unidade.

c.    “Duratividade”: ao estar presente esse todo coerente real na minha apreensão primordial de realidade, me está presente não como algo evanescente, mas como algo que “está sendo” um todo coerente, quer dizer, como algo que tem uma “duratividade” intrínseca e formal pela qual me está presentecomo um todo coerente “que dura”.

 

 

2.     Ao atualizar-se o real na apreensão primordial de realidade, ratificam-se nela as três dimensões estruturais do real, dando assim três dimensões à verdade real.

 

a.   Riqueza: ao ratificar-se a dimensão de totalidade do real na apreensão primordial de realidade, a verdade real tem a dimensão da “riqueza” do real apreendido.

b.   Quê: ao ratificar-se a dimensão de coerência do real na apreensão primordial de realidade, a verdade real tem a dimensão do “quê” do real apreendido, quer dizer, daquilo em que consiste o real apreendido.

c.    Estabilidade: ao ratificar-se a dimensão de duratividade do real na apreensão primordial de realidade, a verdade real tem a dimensão da “estabilidade” do real apreendido.

 

 

3.     A ratificação do real na verdade real não é algo amorfo, mas em cada dimensão da verdade real se dá um modo próprio de ratificação; assim pois, a ratificação do real na verdade real tem três modos diversos de ratificação.

 

a.   “Manifestação”: a totalidade do real se ratifica na verdade real como riqueza segundo um modo próprio de ratificação que é “manifestação”; na verdade real, o real “manifesta” a riqueza da sua totalidade.

b.   “Firmeza”: a coerência do real se ratifica na verdade real como quê segundo um modo próprio de ratificação que é “firmeza”; na verdade real, o real “firma” o quê da sua coerência.

c.    “Constatação”: a duratividade do real se ratifica na verdade real como estabilidade segundo um modo próprio de ratificação que é “constatação”; na verdade real, o real “constata” a estabilidade da sua duratividade.

 

 

4.     Duas considerações sobre as dimensões da verdade real

 

a.   As três dimensões da verdade real se podem apreciar na lingüística.

=   Alétheia  (riqueza; manifestação)

#   Os gregos chamaram a verdade de alétheia  (descobrimento, patentização); o termo contém a raiz ladh- (estar oculto) com um -dh- sufixo de estado; em latim, lateo, de a-t (Benveniste); em indo-iraniano, rahú- (o demônio que eclipsa o sol e a lua); talvez em grego alastós (aquele que não esquece os seus sentimentos, os seus ressentimentos, o violento, etc.).

#   Sentido originário do termo alétheia.

+   O termo alétheia  tem a sua origem no adjetivo alethés, do qual é um abstrato.

+   Por sua vez, alethés deriva de léthos (láthos), que significa “esquecimento”.

+   Originariamente, portanto, alétheia  significou “algo sem esquecimento”, “algo em que nada caiu em esquecimento “completo”” (Kretshmer, Debrunner).

+   A única patência à qual originalmente alude alétheia, portanto, é simplesmente a da lembrança.

+   Daí, pelo que tem de completo, alétheia  veio significar mais tarde a simples patência, o descobrimento da verdade.

=   Vero, aman, ammatu, emtu (quê, firmeza)

#   Vero (latim-celta-germânico)

+   O latim, o celta, e o germânico expressam a idéia de verdade à base da raiz vero, cujo sentido original é difícil de precisar.

-   Aparece como segundo termo do composto latino: se-verus (se]d[verus), que significa “estrito, sério”.

-   Isso faz supor que vero significava “confiar alegremente” (daí heorté, festa).

+   A verdade é a propriedade de algo que merece confiança, seguridade.

#   Aman, ammatu (hebraico-acádico-Amarna)

+   O mesmo processo se dá nas línguas semíticas.

+   Em hebraico, aman  (ser de fiar, em hifil “confiar”) deu: emunah (fidelidade, firmeza), amen (verdadeiramente, assim seja) e emeth (fidelidade, verdade).

+   Em acádico, ammatu (fundamento firme); em Amarna, talvez emtu (verdade).

=   É-” (estabilidade, constatação)

#   O grego e o indo-iraniano partem da raiz é- (“ser” no sentido de realidade).

#   Assim, em védico, sátya- e, em avéstico, haithya- (aquilo que é realmente, o verdadeiro).

#   O grego deriva da mesma raiz o adjetivo etós, eteós, de s-e-tó: “o que é em realidade” [etá = alethé (Hesych.)].

#   A verdade é propriedade do ser real.

#   A mesma raiz dá lugar ao verbo etázo (verificar), e a estó (substância, ousía).

b.   A expansão das três dimensões da verdade real nos modos ulteriores de intelecção modaliza três tipos fundamentais de atitude intelectual do homem perante o problema da verdade do real.

=   Atitude intelectual que prima o descobrimento da riqueza da realidade (totalidade-riqueza-manifestação).

#   O homem pode realizar os seus movimentos e marchas intelectivas preferentemente como uma aventura na riqueza insondável do real.

#   O homem que intelige com esta atitude intelectual, vê nas notas do real a sua riqueza em erupção; está inseguro de tudo e de todas as coisas; não sabe se chegará a alguma parte; não lhe inquieta demasiado encontrar exigüidade e insegurança; aquilo que a ele lhe interessa é agitar a realidade (sacudi-la, por assim dizer) para pôr de manifesto e desenterrar as suas riquezas; fora disso, o máximo que fará é tentar concebê-las e classificá-las com certa precisão.

=   Atitude intelectual que prima a consecução da firmeza da realidade (coerência-quê-firmeza).

#   O homem pode realizar os seus movimentos e marchas intelectivas preferentemente indo às apalpadelas como sob luz crepuscular, a imprescindível para não tropeçar e não desorientar-se, e buscando no real seguranças às quais aferrar-se intelectualmente com firmeza.

#   O homem que intelige com esta atitude intelectual, busca certezas do que são as coisas em realidade; é possível que, procedendo assim, deixe de lado grandes riquezas das coisas, com tal de conseguir o seguro delas, o seu “quê”; corre atrás do firme, atrás do certo como do “verdadeiro”; o resto, por muito rico que for, não é para ele mais do que simulacro de verdade e de realidade: o “vero-símil”.

=   Atitude intelectual que prima a consecução da constatação da realidade (duratividade-estabilidade-constatação).

#   O homem pode realizar os seus movimentos e marchas intelectivas preferentemente recortando com precisão o âmbito e a figura das suas intelecções da realidade.

#   O homem que intelige com esta atitude intelectual, busca a clara constatação da realidade, o perfil anguloso do que é efetivamente; em princípio, nada fica excluído desta pretensão; ainda que seja preciso levar a termo dolorosas amputações, as aceita; prefere que fique fora do inteligido tudo aquilo do qual não consegue constatação; o seu propósito intelectual é a claridade efetiva.

 

 

 

C.   Estamos possuídos e arrastados pela verdade real.

 

 

1.     Esta idéia da ratificação do real na sua atualidade intelectiva senciente não é uma mera precisão conceitual; essa ratificação é o fundamento da força com a qual a realidade se nos impõe na intelecção senciente.

 

 

2.     Em virtude disso, não é que vamos para a verdade real; é que a verdade real nos tem apanhados - por assim dizer -; não é que possuamos a verdade real; é que a verdade real nos tem possuídos.

 

 

3.     Esta possessão não é uma espécie de estado mental nosso ou coisa parecida; é nada menos que a estrutura formal da nossa própria intelecção: estamos possuídos pela verdade real e arrastados por ela desde a apreensão primordial de realidade para ulteriores modos de intelecção da realidade.


IX

 

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS

DA APREENSÃO PRIMORDIAL DE REALIDADE

 

 

 

 

A.   A essência da apreensão primordial de realidade enquanto modo de intelecção consiste em que nela ficamos “atentamente retidos” pelo real na sua própria realidade.

 

 

1.     O essencialmente constitutivo da apreensão primordial de realidade enquanto modo de intelecção é “atenção”.

 

a.   A apreensão primordial de realidade não consiste em apreender uma só nota ou qualidade sensível, mas em apreender como real desde si mesmo e em si mesmo seja uma só nota (tanto elementar quanto dentro dum sistema de notas) seja um sistema complexo de notas.

b.   A apreensão primordial duma só nota não se identifica com a “sensação pura” da psicologia experimental.

=   Para a psicologia experimental, sensação pura ou elementar é a sensação duma nota única separada das demais (por exemplo, a sensação de verde); discute-se se isso existe.

=   Mas apreender como real uma só nota desde si mesma e em si mesma não consiste em apreender isoladamente uma nota separada das demais (sensação pura), mas em apreender fixadamente uma nota só ainda que dentro dum sistema; por exemplo, posso apreender uma árvore com todas as suas notas, mas me fixo só na cor verde das suas folhas.

c.    O modo intelectivo essencialmente constitutivo da apreensão primordial de realidade consiste em intelecção “atentiva”, em “atenção” (centração e precisão).

=   Apreendo algo real desde si mesmo e em si mesmo quando me fixo nesse algo unitariamente considerado.

=   Esta fixação é formalmente intelecção “atentiva” ou “atenção”.

#   Atenção não é um fenômeno psicológico entre outros, mas um modo de intelecção que não consiste simplesmente em fixar-se em algo, mas em fixar-se “só” nesse algo.

#   A atenção enquanto fixação tem dois momentos.

+   Momento de “centração”: é o momento que consiste em centrar-se no apreendido.

+   Momento de “precisão”: é o momento que consiste em “marginar” da atenção o não-centrado e em “precisar” o centrado.

-   Marginação do não-centrado.

*   O não centrado é apreendido como fora do centro, quer dizer, como “impreciso”.

*   Apreendido como impreciso não quer dizer apreendido sem exatidão, com confusão ou coisa parecida, mas como não tendo a ver com aquilo que precisamente estou apreendendo (o centrado) e, portanto, como im-precisamente marginado do centro.

*   Imprecisão não é “divisão” ou “extração” do não centrado, já que o dividido ou extraído do centrado não é apreendido de modo nenhum; pelo contrário, o impreciso é apreendido, mas imprecisamente.

-   Precisão do centrado.

*   O centrado é apreendido com precisão (precisamente ou precisivamente), quer dizer, apontando a minha atenção só a ele e não a outra coisa.

*   Aqui precisão não é “exatidão”: o preciso como apreendido exatamente e distintamente está fundado no “preciso” como algo só ao qual aponta a atenção.

 

 

2.     O essencialmente constitutivo da atualidade do real na apreensão primordial de realidade enquanto modo de intelecção é “retenção”.

 

a.   Na apreensão primordial de realidade, o real se atualiza “só como real desde si mesmo e em si mesmo”.

b.   Este modo de atualização do real só como real desde si mesmo e em si mesmo é “retenção” do real na sua própria realidade: o real nos retém na sua própria realidade.

c.    Daí que, em virtude da apreensão primordial de realidade, estamos irremissivelmente instalados intelectivamente na realidade.

=   A realidade não é algo ao que temos que ir intelectivamente, mas algo em que inexoravelmente já estamos e nunca deixaremos de estar intelectivamente instalados.

=   Esta instalação intelectiva na realidade tem um duplo caráter.

#   Estar instalado intelectivamente numa determinada coisa real.

+   Ao inteligir uma coisa real, ficamos instalados nela.

+   Mas a instalação nessa coisa real é muito fugaz: imediatamente sobrevém outra coisa real e, ao inteligi-la, ficamos instalados nessa outra coisa real.

#   Estar instalado intelectivamente na pura e simples realidade, quer dizer, no mundo, na unidade respectiva de todo o real enquanto real.

+   A formalidade de realidade que inteligimos em cada apreensão primordial de realidade é identicamente e numericamente a mesma em todas as apreensões primordiais de realidade; o conteúdo múltiplo e distinto de cada coisa real apreendida primordialmente se inscreve numa mesma e única formalidade de realidade.

+   Isso significa que, ao estar instalados intelectivamente numa coisa real, no fundo, estamos instalados na pura e simples realidade, quer dizer, no mundo, na unidade respectiva de todo o real enquanto real.

=   Instalados intelectivamente nela, a realidade se nos impõe com força; é a força de imposição da realidade sobre nós; daí que a realidade não é algo que tenha que ser justificado intelectivamente mediante elucubrações racionais ou coisa parecida, mas algo em que estamos irrefragavelmente instalados desde a primeira apreensão primordial de realidade.

 

 

3.     O exercício da apreensão primordial de realidade como intelecção atentiva-retentiva tem três graus.

 

a.   “Indiferença”: se dá quando a apreensão primordial de realidade nos fixa em algo real dum modo mais ou menos indiferente, quer dizer, como “de passagem”.

b.   “Detenção”: se dá quando a apreensão primordial de realidade nos detém mais ou menos em algo real.

c.    “Absorção”: se dá quando a apreensão primordial de realidade nos faz ficar em algo real como se não houvesse mais do que esse algo real; na absorção, a nossa intelecção fica como que despejada completamente no apreendido; tão despejada, que “quase” não inteligimos que estamos inteligindo o inteligido...

 

 

 

B.   A apreensão primordial de múltiplas coisas reais e a apreensão primordial das coisas reais como campais e como mundanais

 

 

1.     A apreensão primordial de múltiplas coisas reais

 

a.   Em geral, a apreensão primordial de realidade não apreende uma só coisa real, mas uma multiplicidade de coisas reais.

b.   Esta multiplicidade pode provir de duas fontes distintas.

=   Fragmentação do apreendido

#   A intelecção atentiva pode fixar a sua atenção em uns aspectos do apreendido mais do que em outros: o apreendido fica, então, fragmentado em distintas coisas.

#   Por exemplo, aquilo que unitariamente desde si mesmo e em si mesmo era “uma paisagem”, se fragmenta numa árvore, num rio, numa casa, etc.

=   Independência das coisas: outras vezes, se dão originariamente na apreensão primordial de realidade distintas coisas independentes umas das outras.

c.    Em ambos os casos, há uma única apreensão primordial de realidade cujo termo é formalmente múltiplo.

=   Não se trata duma multiplicidade de apreensões primordiais de realidade, cada uma das quais apreende uma coisa.

=   Trata-se duma única apreensão primordial de realidade de coisas múltiplas apreendidas unitariamente mas não pro indiviso, e sim distintamente.

 

 

2.     A apreensão primordial das coisas reais como campais e como mundanais

 

a.   Em virtude da sua formalidade de realidade, cada coisa real é apreendida primordialmente como formalmente e constitutivamente aberta respectivamente a outras coisas reais.

b.   Esta abertura respectiva de cada coisa real enquanto real às demais coisas reais enquanto reais, que é apreendida primordialmente, tem duas direções: campo e mundo.

=   Cada coisa real enquanto real é apreendida primordialmente como aberta respectivamente ao “campo de realidade”, quer dizer, à unidade respectiva de todas as coisas reais enquanto reais já apreendidas primordialmente.

#   O campo de realidade não é algo extrínseco às coisas reais, mas um momento intrínseco de cada coisa real apreendida primordialmente: é o seu momento campal.

#   Ao apreender primordialmente qualquer coisa real, apreendo o seu momento campal, quer dizer, o momento de abertura respectiva da sua realidade apreendida à realidade de todas as outras coisas reais já apreendidas.

#   Entre cada coisa real e o campo de realidade há uma rigorosa respectividade cíclica.

+   A formalidade de realidade de cada coisa real, enquanto respectivamente aberta à formalidade de realidade de todas as outras coisas reais já apreendidas, funda o campo de realidade, quer dizer, a unidade respectiva de todas as coisas reais enquanto reais já apreendidas; o campo de realidade, assim fundado, adquire uma certa autonomia a respeito das coisas reais que o fundam, e reflui sobre cada uma delas.

+   É a mesma coisa que acontece com os campos do cosmos.

-   A carga elétrica e a massa dos corpos geram os campos eletromagnético e gravitatório respectivamente.

-   Esses campos adquirem uma certa autonomia a respeito dos corpos que os fundam, e refluem sobre as cargas elétricas e sobre as massas de ditos corpos.

+   Para compreender melhor esta respectividade cíclica que há entre as coisas reais e o campo de realidade, comparemo-la à respectividade cíclica que há entre as luminárias e o campo de claridade que geram.

-   Cada coisa real é como uma luminária que derrama luz gerando um campo de claridade.

-   Esse campo de claridade adquire uma certa autonomia a respeito da luminária que o gera, e reflui sobre ela; efetivamente, no campo de claridade vemos não só as demais coisas, mas também a própria luminária que gera esse campo de claridade.

+   O conceito de campo é parte essencial do saber científico atual.

-   Campo físico

*   O espaço constitui campo físico quando, dada uma determinada magnitude, ela tem um valor, em cada ponto do espaço, que é determinado só pela sua posição nele.

*   Por isso diz Einstein que campo físico não é mais do que “o estado físico do espaço”.

   O espaço como uma espécie de recipiente vazio de toda estrutura é uma perfeita quimera.

   Isso que chamaríamos de espaço vazio é puramente e simplesmente o nada...

-   Campo filético, em biologia, é o campo constituído por cada uma das distintas linhas dos phylum biológicos.

=   Cada coisa real enquanto real é apreendida primordialmente como aberta respectivamente ao “mundo da realidade”, quer dizer, à unidade respectiva de todas as coisas reais enquanto reais já apreendidas primordialmente ou não.

#   O mundo da realidade não é algo extrínseco às coisas reais, mas um momento intrínseco de cada coisa real apreendida primordialmente: é o seu momento mundanal.

#   Ao apreender primordialmente qualquer coisa real, apreendo o seu momento mundanal, quer dizer, esse momento de abertura respectiva da realidade da coisa real apreendida à realidade de todas as outras coisas reais já apreendidas ou não.

#   Efetivamente, a formalidade de realidade de cada coisa real é numericamente e formalmente a mesma; em virtude disso, todas as coisas reais, na sua imensa multiplicidade e diversidade de conteúdo, têm uma unidade própria: são “mundo”.

#   Neste sentido, cada coisa real é momento do mundo, quer dizer, da pura e simples realidade, da unidade respectiva de todo o real enquanto real.

#   Atenção que o mundo não é uma “unificação” extrínseca das coisas reais, mas a “unidade” intrínseca e constitutiva das coisas reais enquanto reais, porque a unidade mundanal é momento intrínseco e constitutivo de cada coisa real enquanto real.

#   Por isso, ainda que só houvesse uma coisa real, essa única coisa real constituiria formalmente mundo, em virtude do seu momento de abertura respectiva a todo o real enquanto real.


X

 

A APREENSÃO PRIMORDIAL DE REALIDADE

E OS DOIS MODOS ULTERIORES DE INTELECÇÃO:

LOGOS SENCIENTE E RAZÃO SENCIENTE

 

 

 

 

A.   A apreensão primordial de realidade

 

 

1.     Como repetimos até à saciedade, o modo primário e radical de intelecção senciente (ignorado por toda a filosofia ocidental) é a apreensão primordial de realidade, que descrevemos amplamente até aqui.

 

 

2.     Pois bem, na apreensão primordial de realidade, se atualizam compactamente (unitariamente, diretamente e imediatamente numa mesma e única atualização) todos os momentos da coisa real que vamos dizer.

 

a.   O momento individual da realidade da coisa real: a coisa real se atualiza como algo real desde si mesmo e em si mesmo.

b.   Os momentos campal e mundanal da realidade da coisa real: a coisa real se atualiza como algo campalmente e mundanalmente real, envolvendo dois momentos:

=   A coisa campalmente e mundanalmente real enquanto fundante do campo de realidade e do mundo da realidade.

=   A coisa campalmente e mundanalmente real enquanto incluída pelo campo de realidade e pelo mundo da realidade que ela mesma funda.

 

 

3.     Mas a atualização do real não se esgota na apreensão primordial de realidade; a atualização do real na inteligência senciente tem dois modos ulteriores que determinam dois modos ulteriores de intelecção senciente: o logos senciente e a razão senciente.

 

 

 

B.   Os dois modos ulteriores de atualização do real na inteligência senciente e os dois modos ulteriores de intelecção senciente: o logos senciente e a razão senciente

 

 

1.     A coisa real, já atualizada primariamente e radicalmente na apreensão senciente, se atualiza ulteriormente na intelecção senciente de dois modos.

 

a.   Entre e em função do campo de realidade, quer dizer, entre e em função da unidade respectiva das demais coisas reais já apreendidas.

b.   Fundada no mundo da realidade, quer dizer, fundada na pura e simples realidade, na unidade respectiva de todo o real como real (apreendido ou não).

 

 

2.     Esses dois modos ulteriores de atualização do real na inteligência senciente determinam os dois modos ulteriores de intelecção senciente: o logos senciente e a razão senciente.

 

a.   O logos senciente

=   O logos senciente é a “intelecção campal do real”, quer dizer, a intelecção ulterior do real (já apreendido primordialmente) entre e em função do campo de realidade, ou seja, entre e em função das demais coisas reais já apreendidas.

=   O logos senciente ou intelecção campal do real consiste formalmente em inteligir o real “em realidade”, entendendo por “em realidade” precisamente “entre e em função do campo de realidade”.

#   A inteligência senciente, no ato primário e radical de intelecção, que é a apreensão primordial de realidade, já inteligiu algo real “como real” (e como campal e como mundanal).

#   Agora, a inteligência senciente, no primeiro ato ulterior de intelecção, que é o logos senciente, intelige “em realidade” esse mesmo algo real, quer dizer, entre e em função do campo de realidade, na realidade campal.

=   Inteligir “em realidade” algo já inteligido como real é inteligir, por exemplo, que aquilo que estou ouvindo como real é “em realidade” o canto dum pássaro, etc.

b.   A razão senciente

=   A razão senciente é a “intelecção mundanal do real”, quer dizer, a intelecção ulterior do real (já apreendido primordialmente e campalmente) fundada no mundo da realidade, ou seja, fundada nas demais coisas reais já apreendidas ou não.

=   A razão senciente ou intelecção mundanal do real consiste formalmente em inteligir o real “na realidade”, entendendo por “na realidade” precisamente “fundada no mundo da realidade”.

#   A inteligência senciente, no ato primário e radical de intelecção, que é a apreensão primordial de realidade, já inteligiu algo real “como real” (e como campal e como mundanal).

#   Depois, a inteligência senciente, no primeiro ato ulterior de intelecção, que é o logos senciente, já inteligiu “em realidade” esse mesmo algo real, quer dizer, entre e em função do campo de realidade, na realidade campal.

#   Agora, a inteligência senciente, no segundo ato ulterior de intelecção, que é a razão senciente, intelige “na realidade” esse mesmo algo real já inteligido como real e em realidade, quer dizer, o intelige fundado no mundo da realidade, na realidade mundanal.

=   Inteligir “na realidade” algo já inteligido como real e em realidade é inteligir, por exemplo, que aquilo que estou ouvindo como real e que é em realidade o canto de um pássaro, etc., é “na realidade” uma onda longitudinal elástica, com uma frequência x, com um nível de potência de x decibéis, etc.

 

 

3.     Articulação dos modos ulteriores de intelecção com a apreensão primordial de realidade

 

a.   Logos e razão são modos de intelecção “ulteriores” à apreensão primordial de realidade, porque, como dissemos, consistem em inteligir “em realidade” (logos) e “na realidade” (razão) o real já apreendido “como real, campal e mundanal” (apreensão primordial de realidade).

b.   É radicalmente falso que a intelecção “por excelência” consista nos seus dois modos ulteriores, e que a apreensão primordial de realidade seja algo sumamente pobre.

=   Certamente, pelo que diz respeito ao “conteúdo” da coisa real inteligida, a apreensão primordial de realidade é insuficiente, enquanto que os dois modos ulteriores de intelecção são riquíssimos e de perspectivas incalculáveis.

=   Mas lembremos que a essência formal da intelecção não estriba no conteúdo do apreendido (também os meros animais apreendem conteúdos riquíssimos no puro sentir deles), mas na formalidade de realidade do apreendido.

=   Pois bem, neste sentido, a apreensão primordial de realidade não só é o modo de intelecção mais rico, mas é “a” intelecção por excelência, já que apreende a realidade enquanto realidade do apreendido.

=   Na apreensão primordial de realidade, o real se atualiza desde si mesmo e em si mesmo na sua realidade; por conseguinte, os dois modos ulteriores de intelecção são mais ricos não porque contenham mais “realidade”, mas porque contêm atualizações mais ricas do “conteúdo” da realidade.

c.    Os dois modos ulteriores de intelecção são “possíveis e necessários” só porque a apreensão primordial de realidade é insuficiente.

=   Só porque é insuficiente a apreensão primordial de algo “como real”, é possível e necessário inteligir esse algo real “em realidade” e “na realidade”.

=   Se a apreensão primordial duma coisa real nos atualiza-se todas as estruturas do conteúdo real dessa coisa, não seriam possíveis nem necessários os dois modos ulteriores de intelecção.

=   Efetivamente, os dois modos ulteriores de intelecção são uma “expansão”, por assim dizer, do conteúdo do real já apreendido como real em apreensão primordial de realidade.

d.   Só por referência à apreensão primordial de realidade, os dois modos ulteriores de intelecção são intelecções “do real”.

=   Toda a enorme riqueza do inteligido “em realidade” e “na realidade” se inscreve na apreensão primordial desse mesmo inteligido meramente como real.

=   Se assim não fosse, todo o sistema da ciência, por exemplo, seria algo constitutivamente vão.


XI

 

DOIS MOMENTOS DO CAMPO DE REALIDADE:

POSICIONALIDADE E FUNCIONALIDADE

 

 

 

 

A.   Posicionalidade das coisas reais no campo de realidade

 

 

1.     Posicionalidade de atuidade e posicionalidade de atualidade intelectiva das coisas reais

 

a.   As coisas reais estão fisicamente umas “entre” outras; é o momento de posicionalidade “de atuidade” das coisas reais: estão posicionadas fisicamente umas entre outras.

b.   Em virtude disso, as coisas reais também se atualizam intelectivamente umas “entre” outras.

=   É o momento de posicionalidade “de atualidade” intelectiva das coisas reais do campo de realidade.

=   A campalidade de cada coisa real atualizada intelectivamente tem, antes de tudo, um momento de “entre” que determina a “posicionalidade” dumas coisas reais a respeito de outras no campo de realidade.

 

 

2.     Estrutura da posicionalidade das coisas reais no campo de realidade

 

a.   “Primeiro plano”: é aquilo que se está apreendendo diretamente.

b.   “Centro”: é o primeiro plano quando se reduz a uma única coisa.

c.    “O demais”: é todo o incluído no campo que não forma parte do primeiro plano; “o demais” está constituído por dois elementos.

=   “O fundo”: é o demais que constitui o fundo sobre o qual se apreende o primeiro plano; em virtude disso, o primeiro plano se “destaca” sobre o fundo do demais.

=   “A periferia”: é o demais que não é nem fundo.

#   Na periferia, as coisas têm distinta “proximidade” e “afastamento”.

#   A periferia é a área campal do indefinido, seja porque é algo indeterminado seja porque é algo que passa inadvertido.

d.   “Horizonte”: é a linha que formam as coisas que delimitam o campo e, portanto, aquilo que determina o que abrange ou inclui o campo; atenção que o horizonte não é uma linha externa ao campo, mas um momento intrínseco dele.

e.    “Panorama”: é o caráter de totalidade que tem o campo enquanto determinado pelo horizonte.

=   “Sinopse”: é o modo específico de apreensão do campo enquanto panorama.

=   “Sintaxe”: é a disposição que têm as coisas dentro do campo enquanto panorama.

f.     “Fora”: é aquilo que o horizonte determina como o que está fora do campo, quer dizer, o não-definido; atenção que não-definido (fora) não é o mesmo que o indefinido (periferia).

=   O indefinido (periferia) está definido como indefinido.

=   O não-definido (fora) não está definido de nenhum modo, nem sequer como indefinido.

g.   “Amplitude” é o momento do campo em virtude do qual não é fixo, mas variável de dois modos:

=   Por “deslocamento” do horizonte: as coisas novas que entram no campo deslocam o horizonte.

=   Por “reorganização” interna do campo: as coisas novas que entram no campo, ou que saem dele, ou que se movem dentro dele, reorganizam o primeiro plano, o fundo, a periferia, etc.

 

 

 

B.   Funcionalidade das coisas reais no campo de realidade

 

 

1.     Funcionalidade

 

a.   As coisas reais não só se atualizam intelectivamente umas “entre” outras (posicionalidade), mas também umas “em função de” outras; é o momento de atualização intelectiva da “funcionalidade” das coisas reais.

b.   Funcionalidade é a dependência dumas coisas a respeito de outras no sentido amplíssimo do termo.

c.    A funcionalidade se expressa com a preposição “por”: toda coisa é real “por” alguma outra realidade.

d.   Alguns tipos de funcionalidade

=   Sucessão: uma coisa real pode vir atrás de outra coisa real que a precede.

=   Coexistência: uma coisa real pode coexistir com outra coisa real.

=   Posição: cada coisa real ocupa uma determinada posição no campo por uma função campal nele; aqui não se trata já da mera posicionalidade das coisas umas entre outras, que vimos antes, mas duma posicionalidade funcional, quer dizer, duma posição das coisas determinada “pela sua função” no campo.

=   Espacialidade ou espaço

#   As coisas materiais são “espaçosas”

+   As coisas materiais é como se estivessem constituídas por pontos matemáticos.

+   Cada ponto duma coisa material está “fora” (ex) dos demais pontos dela, mas está ex em unidade construta a respeito “de” os demais pontos, de tal modo que todo ponto é um ex-de; nisto consiste a espaçosidade das coisas materiais.

+   Espaçosidade, portanto, é uma propriedade de cada coisa material segundo a qual está “fora” das demais mas em unidade construta a respeito “de” elas.

#   Espacialidade ou espaço é a funcionalidade das coisas reais enquanto espaçosas.

+   O movimento espacial é a determinação da estrutura do espaço pelas coisas espaçosas.

+   A estrutura do espaço é o vestígio geométrico físico do movimento espacial.

=   Causalidade (o veremos em seguida).

e.    Como a funcionalidade é campal, o campo de realidade é campo de funcionalidade; por isso, a funcionalidade é sempre recíproca; na funcionalidade de sucessão, por exemplo, “B” é consequente a “A” e “A” é antecedente de “B”.

f.     A funcionalidade que concerne ao conteúdo do real é sempre muito problemática; a funcionalidade do real enquanto real não tem nada de problemática, como vamos ver.

 

 

2.     Funcionalidade e causalidade

 

a.   Causalidade não é funcionalidade, mas só “um” tipo de funcionalidade entre outros.

b.   A problematicidade da causalidade

=   Para Aristóteles, e para toda a filosofia clássica, causa é tudo aquilo que exerce um influxo produtor ou originante (ou eficiente ou final ou material ou formal) sobre algo, chamado, por isso, de efeito; causalidade é, em definitiva, produção originante, algo perfeitamente dado nas nossas apreensões sensoriais.

=   O problema está em que, como advertiu Hume, a percepção nunca percebe o influxo produtor duma coisa real sobre outra...

=   Daí que no âmbito intramundano (deixando de lado as ações humanas), não há refutação possível do ocasionalismo metafísico.

c.    Crítica à crítica de Hume à causalidade

=   Diz Hume:

#   Nunca há percepção da causalidade; o único que há é a sucessão de duas percepções.

#   Por exemplo, não percebo que o puxamento da corda “produza” o som do sino; aquilo que tenho è só a percepção do puxamento da corda “sucedida” pela percepção do som do sino.

=   Hume tem razão em dizer que não há percepção da causalidade, mas não viu outros aspectos essenciais da questão.

#   Tanto a sucessão quanto a causalidade são só dois tipos da funcionalidade do real entre outros; isso quer dizer que, negada a percepção da funcionalidade causal, permanece em pé a percepção da funcionalidade sucessional, por exemplo.

#   Agora bem, a percepção da funcionalidade sucessional não consiste na sucessão de duas percepções, mas numa única percepção de duas coisas reais em funcionalidade sucessional; é necessário esclarecer bem isto.

+   Aquilo que me está presente numa única impressão de realidade não são dois “meros conteúdos”, mas dois “conteúdos reais”.

+   Pois bem, nessa única impressão de realidade me estão presentes esses dois conteúdos-reais em funcionalidade sucessional; por exemplo, me estão presentes o real puxamento da corda e o real som do sino em funcionalidade sucessional.

+   Por conseguinte, na funcionalidade sucessional do exemplo deve-se distinguir com rigor dois momentos:

-   A funcionalidade sucessional do real puxamento da corda, enquanto puxamento da corda, e do real som do sino, enquanto som do sino; esta funcionalidade sucessional sempre será algo problemático; é problema da ciência.

-   A funcionalidade sucessional do real puxamento da corda, enquanto real, e do real som do sino, enquanto real; esta funcionalidade sucessional não constitui problema; é algo imediatamente apreendido numa única impressão de realidade.

+   Em outras palavras: que a realidade do som do sino é real em função da realidade do puxamento da corda, quer dizer, que o som do sino chega a constituir algo real em função da realidade do puxamento da corda, é algo que me está presente numa una e única impressão de realidade.

d.   Crítica à concepção kantiana da causalidade

=   Exposição

#   Na sua Crítica da Razão Pura, Kant assume a afirmação de Hume: a causalidade não está “dada” na percepção.

#   Daí conclui que a causalidade é uma categoria conceitual a priori que, em síntese com os dados sensíveis, possibilita os juízos sintéticos a priori na sua modalidade causal.

=   Isso é inaceitável.

#   A funcionalidade do real não estriba no juízo seja analítico (Leibniz), seja sintético (Kant).

#   Efetivamente, a funcionalidade do real enquanto real não é uma categoria conceitual a priori, mas um momento intrínseco e constitutivo do real primordialmente “dado” pelo real no seu estar presente na impressão de realidade em “para”.


XII

 

O LOGOS SENCIENTE E A SUA ESTRUTURA

 

 

 

 

A.   O logos é “intelecção campal senciente” do real.

 

 

1.     O logos não é formalmente intelecção declarativa, mas intelecção campal.

 

a.   Segundo a filosofia grega, o logos é formalmente intelecção declarativa.

=   O termo grego lógos procede do verbo légein, que significa originariamente “reunir, recolher” (este sentido se aprecia ainda, por exemplo, no termo “flori-légio”); do significado de reunir, légein passou a significar “enumerar, contar”; finalmente, daí passou a significar “dizer”.

=   Em virtude disso, o substantivo lógos significa “o dito”, incluindo dois momentos distintos: dizer o dito (légon) e o dito mesmo (legómenon).

=   Os gregos construíram a sua reflexão filosófica sobre o logos enquanto legómenon, quer dizer, sobre “o dito mesmo”.

#   Para os gregos, o logos “por antonomásia” é o “logos declarativo” (logos apophantikós), quer dizer, o logos que declara (afirma, julga, diz) “algo” (1) de “algo” (2) [légein tí (1) katá tinós (2)].

#   Como pode se ver, esse logos envolve dois algos, mas os gregos ficaram no primeiro algo, ou seja, no algo que se diz; por isso pensaram que esse algo que se diz pode ser em si mesmo simplesmente uma idéia.

=   É que os gregos tiveram sempre a tendência a logificar a intelecção; já em Parmênides, pode-se apreciar uma crescente importância do phrázein (expressar) que culmina no seu “discernir com logos”.

b.   Pois bem, o logos, antes de ser declaração e precisamente para poder sê-lo, é formalmente intelecção campal do real.

=   Toda declaração é inexoravelmente declaração do que “algo real” é “em realidade”; aqui há que fazer duas observações essenciais.

#   O logos não apreende algo como real (isso está já apreendido na apreensão primordial de realidade), mas aquilo que esse “algo real” (já apreendido como real) é em realidade; por isso não é filosoficamente legítimo deixar fora do logos esse “algo real” acerca do qual o logos declara aquilo que é em realidade.

#   Toda declaração daquilo que é algo real, é declaração daquilo que esse algo real é “em realidade”, ou seja, “entre e em função de outros “algo real” do campo de realidade”, quer dizer, entre e em função do campo de realidade; as chamadas “idéias” vêm sempre e só das “coisas reais” (já veremos como)!

=   Por conseguinte, o logos, antes que declaração, é formalmente “intelecção campal” do real, porque é intelecção daquilo que é “em realidade” (entre e em função do campo de realidade) uma coisa já apreendida como real.

=   Isso significa que o logos é um modo de intelecção do real que não repousa sobre si mesmo, mas sobre a “intelecção primordial” do real; o logos não é o modo primário e radical de intelecção, mas o primeiro modo “ulterior” de intelecção!

#   Inteligência não é logos (Deus, por exemplo, é inteligência [absolutamente absoluta] e não tem logos [no sentido de intelecção campal, claro está]; logos é só um modo ulterior “humano” de intelecção.

#   Em lugar de “logificar a intelecção”, urge “inteligificar o logos”!

 

 

2.     O logos não é logos sensível mas logos senciente.

 

a.   Os gregos, abordando o logos no plano do “que é” e do “uno”, conceberam o logos como “logos sensível”.

=   Parmênides

#   O logos é a forma suprema do nous, quer dizer, o nous expressado ou expressável; o resto é mera dóxa (no sentido de opinião).

#   Inteligir algo é identicamente (tautón) inteligir que este algo “é”, porque o inteligido é ón (que é).

#   O logos envolve sempre uma certa dualidade, mas o inteligido, o ón (o que é), é hén (uno).

=   Platão

#   A identidade do inteligido e do que é, conduz Platão ao problema da negação: se diz de algo que “não é”; mas inteligir que algo “não é” é sempre inteligir que “é” aquilo que “não-é”.

#   À parte desse problema, Platão, e com ele todos os gregos, atribui a dóxa (opinião) ao sentir (aísthesis) como algo contraposto ao inteligir (logos).

#   Agora bem, o logos é sensível, porque intelige aquilo que lhe é dado pelos sentidos.

=   Aristóteles.

#   Aborda o problema do inteligir não desde a identidade do inteligido (legómenon) com o que é (ón), mas desde a presumível unidade mesma do que é (ón): “que é “se diz” de muitas maneiras”.

#   Aristóteles não rompe a unidade do ser: o logos é um “uno” copulativo; mas lhe atribui diversas maneiras de unidade: o ser possui distintos modos de unidade.

b.   Há que abordar o problema do logos no plano do campo de realidade e concebê-lo como “logos senciente”.

=   A filosofia grega se baseia em dois pressupostos falsos.

#   A realidade consiste última e radicalmente em “ser” (é a entificação da realidade operada pelos gregos); isso é falso.

+   As coisas não consistem última e radicalmente em ser, mas em “realidade”; daí que o termo formal do inteligir não é o ser, mas a realidade.

+   Em lugar de entificar a realidade, urge reificar o ser!

#   Inteligir consiste primariamente em “logos” (é a logificação do inteligir operada pelos gregos); isso é falso.

+   Inteligir não consiste primariamente em logos, mas em apreender algo como realidade; daí que o modo primário de intelecção seja a apreensão primordial de realidade.

+   O logos é só o primeiro modo ulterior de inteligir o já inteligido como real na apreensão primordial de realidade; o logos diz o que “é em realidade” o já inteligido como real.

+   Em lugar de logificar o inteligir, urge inteligificar o logos!

=   É falsa a contraposição sentir/inteligir, porque o logos é “logos senciente”.

#   A intelecção humana é intelecção senciente, porque o seu ato formal consiste em apreender realidade (inteligir) em impressão (sencientemente).

#   O logos é só o primeiro modo ulterior da intelecção senciente humana: a intelecção senciente campal (=em realidade) humana do já inteligido como real na apreensão primordial de realidade; é a “expressão” campal da “impressão” primordial de realidade.

#   Por conseguinte, o logos é intrinsecamente e formalmente “logos senciente”; efetivamente, não é que o logos elabore os dados sensíveis da impressão (logos sensível); é que a impressão de realidade, ela mesma, é a que se desdobra e expande ulteriormente em logos (logos senciente).

#   Mas atenção, o logos é formalmente logos senciente não em virtude do conteúdo do inteligido no logos (o logos apreende, por exemplo, um número irracional; é obvio que esse número irracional não é sentido como a cor na impressão de realidade), mas em virtude do modo intelectivo do logos (apreensão de realidade): a formalidade de realidade da cor e do número irracional são numericamente a mesma formalidade de realidade sentida.

 

 

 

B.   Estrutura do logos senciente

 

 

1.     Estrutura “dual” do logos senciente

 

a.   O logos não é apreensão primordial, mas apreensão “dual”.

=   A apreensão primordial de realidade apreende primordialmente (diretamente, imediatamente e unitariamente) algo como real.

=   O logos, no entanto, é uma apreensão “dual”, porque não apreende primordialmente (diretamente, imediatamente e unitariamente) o que é algo em realidade, mas “dualmente”, já que apreender o que é algo real “em realidade” é precisamente apreendê-lo “entre e em função de outros algo real do campo de realidade”.

#   Por exemplo: apreender que o algo real que vejo é “em realidade” uma árvore, consiste em apreender que esse algo real que vejo é igual a outro algo real visto que era em realidade árvore.

#   Em rigor, o logos não é uma apreensão dual, mas plural, porque geralmente o logos apreende aquilo que uma coisa real é em realidade não entre e em função de outra coisa real, mas entre e em função de várias coisas reais; mas, para simplificar, englobamos essa pluralidade na “dualidade”.

b.   A dualidade do logos consiste na idêntica formalidade de realidade que intervém duas vezes, por assim dizer; efetivamente, logos é inteligir o que é “em “real”idade” o já apreendido primordialmente “como “real””.

=   A dualidade do logos consiste em algo assim como em apreender o “em realidade” de algo, “à luz” da realidade de outro algo anteriormente apreendido.

=   O primeiro algo real “comparece” à luz da realidade do algo real anterior; por isso pode haver uma “comparação” entre ambos algos reais.

=   Esta luz é o campo de realidade.

c.    Fundamento da dualidade do logos

=   A dualidade do logos está fundada numa espécie de “desdobramento” na coisa real mesma de dois momentos delas: a sua “realidade” (momento de realidade individual) e o seu “em realidade” (momento de realidade campal).

=   A atualidade intelectiva do real no logos é uma “atualidade intelectiva remetente” da realidade de algo ao seu em realidade; daí que o modo próprio de atualidade intelectiva do real no logos é um modo que consiste numa estrita “atualidade intelectiva dual”.

=   Esta dualidade intelectiva é o fundamento intrínseco e formal duma “única” apreensão de “dois” algos (algo que se diz e algo do qual se diz).

#   Só porque há uma atualidade remetente dual do real pode haver e há a apreensão duma coisa anteriormente apreendida que nos ilumina a nova.

#   A realidade de a(s) coisa(s) anteriormente apreendida(s), quer dizer, o campo de realidade, é o princípio de inteligibilidade do que é em realidade a nova coisa real.

 

 

2.     Estrutura “dinâmica” do logos senciente

 

a.   O logos é uma apreensão dinâmica, quer dizer, uma apreensão “em movimento intelectivo”; efetivamente, no logos apreendemos aquilo que uma coisa real é em realidade “indo intelectivamente para” outra coisa real anteriormente apreendida e “voltando intelectivamente desde” ela.

b.   Ponto de partida e ponto de chegada do movimento intelectivo em que o logos consiste.

=   Ponto de partida: estamos retidos na realidade da coisa real.

#   Pela apreensão primordial da coisa real, estamos retidamente instalados na sua realidade.

#   Essa coisa real apreendida primordialmente como realidade em “para” nos lança inexoravelmente à intelecção dual em movimento (logos) do que é ela “em realidade”.

#   Mas, pela força de imposição da realidade da coisa apreendida primordialmente, nesse movimento intelectivo dual (logos), a realidade da coisa real apreendida primordialmente nos retém na sua própria realidade.

=   Ponto de chegada: o que é “em realidade” o já apreendido como real e que nos tem retidos na sua realidade.

c.    Caracteres do movimento intelectivo em que o logos consiste.

=   É um movimento intelectivo “senciente”, porque é um movimento “em” o campo da realidade sentida como “para”; efetivamente, a coisa sentida primordialmente como realidade em “para” nos retém na sua realidade e nos lança “para” as demais coisas reais sentidas “entre” as que se encontra, para, “entre e em função de” elas, inteligir o que é em realidade essa coisa real.

=   É um movimento em “distanciamento” intelectivo dentro do campo de realidade.

#   Movendo-nos para e desde um segundo algo real já apreendido anteriormente, inteligimos o que é em realidade o primeiro algo real.

#   Ambos algos reais são distintos e estão distanciados entre si dentro do campo de realidade.

#   Por conseguinte, o movimento intelectivo recorre esse “entre” de distanciamento campal, que é, portanto, distanciamento “na” realidade, e não “da” realidade (jamais podemos situar-nos “fora” da realidade, porque estamos inamissivelmente instalados nela pela apreensão primordial de realidade!).

=   É um movimento intelectivo “optativo” no campo de realidade como “campo de liberdade”.

#   Estão já fixados tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada do movimento intelectivo, como vimos.

#   Mas o movimento intelectivo que vai desde o ponto de partida até o ponto de chegada, recorrendo o campo de realidade, pode ter distintas trajetórias; efetivamente, posso inteligir aquilo que algo é em realidade não entre e em função duma só, mas de muitas coisas reais do campo de realidade.

#   Por conseguinte, posso optar por uma das diversas trajetórias de intelecção daquilo que é em realidade a coisa real; daí que o movimento intelectivo em que o logos consiste seja um movimento intelectivo optativo.

=   É um movimento intelectivo formalmente e constitutivamente “expectante”.

#   Enquanto dura o movimento intelectivo, quer dizer, enquanto não chegamos a apreender o que é em realidade a coisa real “para e desde” outra coisa real anterior, o movimento intelectivo é uma “expectação”, ou seja, uma espécie de “olhar desde longe” o que é em realidade essa coisa real.

#   A forma proposicional do movimento intelectivo expectante é a “pergunta”: o que é em realidade a coisa real?

d.   De tudo o dito se desprende que a idéia da Lógica de Hegel, segundo a qual a “dialética” (=movimento intelectivo) é a estrutura formal da inteligência, é radicalmente falsa, ao menos por dois motivos.

=   Não existe “a” inteligência, mas “inteligência senciente” no sentido de intelecção senciente.

=   O movimento intelectivo não é a estrutura formal da intelecção enquanto tal, mas só um caráter do primeiro modo ulterior de intelecção, quer dizer, do logos; nenhuma dialética está montada sobre si mesma, em contra do que pensa Hegel...

e.    O movimento intelectivo em que o logos consiste em dois momentos.

=   Retração - simples apreensão

#   O primeiro momento do movimento intelectivo consiste em que a coisa real, retendo-nos na sua realidade individual, impele-nos a tomar distância, a “retrair-nos” na sua realidade campal autonomizada (campo de realidade), deixando em suspenso aquilo que essa coisa real é em realidade.

#   Este momento de retração, de tomar distância, não tem nada a ver com o que pensa o idealismo.

+   Todos os idealismos, desde Descartes a Schelling (e, no fundo, até Husserl e Heidegger) pensam que a inteligência ““está” sobre as coisas “por si mesma””.

+   Isto é um erro gravíssimo.

-   Primeiro, porque a inteligência não está sobre as coisas “por si mesma”, mas “chega a estar” sobre elas por um movimento intelectivo de retração ao qual lhe impele a atualidade do real “em para” na apreensão primordial de realidade.

-   Segundo, porque a inteligência não chega a estar “sobre as coisas”, mas só sobre aquilo que as coisas são “em realidade”.

#   Estar retidos na realidade da coisa real, deixando em suspenso aquilo que essa coisa real “possa ser” em realidade, é estar retraídos em que “seria” em realidade essa coisa real que apreendemos primordialmente como real.

#   Pois bem, a apreensão do que a coisa real “seria” (possa ser) em realidade é aquilo que constitui precisamente a chamada “simples apreensão”.

+   Crítica à concepção clássica da simples apreensão

-   Acerca da simples apreensão, a filosofia clássica pensou sempre o seguinte:

*   A simples apreensão, ou seja, as “idéias” (!?), consiste em apreender algo prescindindo do seu caráter de realidade.

*   As idéias repousam sobre si mesmas como momento “material” (predicado) do qual está composto o logos declarativo (afirmação, juízo).

*   A simples apreensão é o ato primário de intelecção.

*   A intelecção de algo como real é algo próprio do logos declarativo (afirmação, juízo).

-   Pois bem, estas quatro afirmações são falsas.

*   A simples apreensão mantém formalmente o caráter de realidade do apreendido, como veremos demoradamente.

   A simples apreensão não é uma retração da coisa real “enquanto real” (isto é impossível), mas daquilo que essa coisa real é “em realidade”.

   A simples apreensão, quer dizer, a apreensão daquilo que “seria” (possa ser) em realidade a coisa real, consiste justamente na unidade de estar retidos na coisa como real e de estar retraídos no seu em realidade.

   O “seria” da simples apreensão não é um “seria realidade” (um poder ser real), mas um “seria em realidade” (um poder ser em realidade).

*   Portanto, a simples apreensão não repousa sobre si mesma, mas sobre a realidade da coisa já apreendida em apreensão primordial de realidade.

*   A simples apreensão não é o ato primário de intelecção, mas o primeiro modo ulterior do ato primário de intelecção que é a apreensão primordial de realidade.

*   A intelecção de algo como real não é algo próprio do logos, mas da apreensão primordial de realidade, que é anterior a todo logos.

=   Reversão - afirmação

#   O segundo momento do movimento intelectivo consiste em que a coisa real, retendo-nos na sua realidade individual nos “reverte” desde a sua realidade campal autonomizada (campo de realidade) a “afirmar” aquilo que essa coisa real é em realidade.

#   Este momento de reversão do movimento intelectivo (logos) consiste no intentum afirmativo, que não é um intentum de chegar à realidade da coisa (não é um intentum de realidade), porque jamais saímos dela no momento de retração, mas um intentum de reverter tensamente na realidade da coisa, afirmando o que é em realidade (realidade em intentum).

#   O intentum afirmativo não é formalmente a “intencionalidade” da filosofia escolástica e da fenomenologia atual.

+   Intencionalidade na filosofia escolástica e na fenomenologia atual

-   Para a filosofia escolástica, intencionalidade é o caráter que tem a coisa inteligida considerada só enquanto inteligida; se algo não tem mais entidade que o ser inteligido, se diz que tem só existência intencional.

-   Para a fenomenologia atual, intencionalidade não é um caráter da entidade inteligida, mas um caráter do ato de consciência; a consciência é só um “referir-se a” (nóesis) algo (nóema).

+   O intentum afirmativo não é intencionalidade em nenhum desses dois sentidos.

-   A intencionalidade supõe que temos que ir “para” a realidade; pois bem, é impossível no intentum afirmativo irmos para a realidade, porque, durante todo o movimento intelectivo, estamos tensamente retidos nela em virtude da apreensão primordial de realidade.

-   Por isso, o intentum afirmativo tem caráter físico e não puramente intencional.

*   A intelecção afirmativa (intentum) é um ato físico da intelecção, ou seja, é o físico “estar” da inteligência no real inteligido.

*   Já vimos, efetivamente, que a intelecção senciente (nous) não é noética mas noérgica.

 

 

3.     Estrutura “medial” do logos senciente

 

a.   O campo de realidade é o meio no qual se move intelectivamente o logos senciente.

=   O campo de realidade não é uma “coisa” real a mais, mas a unidade do físico momento campal de cada coisa real apreendida enquanto real.

=   Por isso, a função medial do campo de realidade no logos não é ser visto, por assim dizer, “em si mesmo”, mas “fazendo ver” aquilo que são as coisas reais em realidade.

=   O campo de realidade na sua função medial, quer dizer, enquanto campo de movimento intelectivo, é algo assim como a luz e o espelho: não são tanto algo que se vê, quanto algo que faz ver; para vê-los diretamente há que fazer um grande esforço de retorsão visual sobre eles.

b.   Para inteligir aquilo que as coisas reais são em realidade não bastam a inteligência e as coisas; é essencial também o meio de intelecção.

=   Não é o mesmo inteligir uma coisa individualmente (por ela mesma) que inteligi-la num meio social, gremial, religioso, etc.; esses meios nos fazem inteligir diversos aspectos da coisa.

=   Mas, no fundo de todos esses meios intelectivos, está o meio intelectivo radical que faz inteligir o que são em realidade as coisas reais; esse meio intelectivo, próprio do logos, é justamente o campo de realidade.


XIII

 

ESTRUTURA DINÂMICA DO LOGOS (1):

A SIMPLES APREENSÃO

 

 

 

 

A.   A simples apreensão

 

 

1.     Em que consiste

 

a.   A simples apreensão consiste em apreender o conteúdo das coisas reais do campo de realidade já não como conteúdo “seu”, mas simplesmente como “reduzido a princípio de inteligibilidade” daquilo que são em realidade novas coisas reais apreendidas primordialmente como reais.

b.   O conteúdo do simplesmente apreendido é o conteúdo dalguma coisa real anteriormente apreendida, tomado só como aquilo que “seria” (possa ser) o conteúdo em realidade duma nova coisa real.

 

 

2.     O simplesmente apreendido é formalmente “irreal”

 

a.   Na simples apreensão, o conteúdo da coisa real simplesmente apreendida já não é formalmente o “seu” conteúdo, mas só conteúdo daquilo que “seria” em realidade outra coisa real; em virtude disso, o simplesmente apreendido já não é propriamente algo real, mas algo “irreal”.

b.   Atenção que irrealidade não é a-realidade.

=   Arrealidade é não ter nenhuma realidade; por exemplo, as qualidades sensíveis meramente estimúlicas que apreende o mero animal são perfeitamente arreais para ele.

=   Irrealidade é um modo peculiar de ter a ver com a realidade, é um modo de realidade: é a “realidade irreal”.

c.    A irrealidade do simplesmente apreendido tem três momentos essenciais.

=   A irrealidade do simplesmente apreendido é realidade “des-realizada”, no sentido de que é o momento campal da realidade duma coisa real autonomizado do momento individual da realidade dessa coisa real.

#   Irreal ou desrealizado não quer dizer inexistente, quer dizer, uma essência sem existência (as “puras essências” clássicas).

+   Efetivamente, realidade não é existência, mas a formalidade “de seu”, que está além da essência e da existência clássicas.

+   O existente é real, só se tem existência real, quer dizer, só se a existência lhe pertence “de seu”, “em próprio”.

+   Algo existente, que não fosse “de seu” existente não seria realidade mas uma espécie de “espectro de realidade” (talvez assim poder-se-ia interpretar a metafísica do Vedanta...).

#   Assim pois, o simplesmente apreendido, enquanto realidade desrealizada, enquanto irreal, tem essência e existência “irreais”: é o momento campal da realidade duma coisa real autonomizado do momento individual da realidade dessa coisa real.

+   Na simples apreensão nos mantemos na realidade da coisa real anterior, mas distendendo nela a unidade do seu momento individual de realidade e do seu momento campal de realidade.

+   Então, o momento campal da realidade da coisa real se autonomiza do seu momento individual de realidade e apreendemos o momento campal da realidade da coisa real como autônomo, como distanciado do momento individual da realidade da coisa real.

+   Desse modo, apreendemos o momento campal da realidade da coisa real “sem” o momento individual da sua realidade individual própria; este “sem” é justamente o perfil negativo do positivo “des” da des-realização da realidade.

+   Dito de outro modo: o momento campal da realidade da coisa real já não é forçosamente aqui e agora momento dessa coisa real individualmente determinada (portanto é realidade “desrealizada”), mas agora é um “de seu” (portanto é “realidade” desrealizada) que de seu pode realizar-se naquilo que é em realidade essa coisa determinada ou em outra.

+   Assim surge a irrealidade do simplesmente apreendido, cuja irrealidade é o seu modo des-realizado de estar realmente no campo de realidade.

#   Por conseguinte, a simples apreensão “não prescinde da realidade” (como se diz secularmente!), mas o simplesmente apreendido envolve formalmente e fisicamente a realidade: é o momento campal duma realidade sem o seu momento individual próprio de realidade.

=   A irrealidade do simplesmente apreendido é o modo de “atualidade intelectiva” do real na simples apreensão; o real, atualizado como real campal e mundanal na apreensão primordial de realidade, se reatualiza na simples apreensão como irrealidade, como realidade desrealizada no sentido que explicamos.

=   A irrealidade do simplesmente apreendido é “coisa real livre”.

#   O simplesmente apreendido, obviamente, não é uma “coisa real a mais” porque não tem momento individual de realidade.

#   O simplesmente apreendido também não é uma “coisa mental” tratada “como se fosse real”.

#   O simplesmente apreendido é “coisa real livre”, quer dizer, libertada do seu momento individual de realidade.

 

 

 

B.   Os três modos da simples apreensão: perceito, ficto e conceito

 

 

1.     Perceito (isto irreal)

 

a.   O primeiro modo de simples apreensão consiste em desrealizar uma coisa real desrealizando por inteiro o seu conteúdo apreendido em apreensão primordial de realidade.

b.   O simplesmente apreendido neste primeiro modo de simples apreensão é um “isto” que consiste não em “esta coisa real” (isto real), mas em “o conteúdo inteiro desrealizado” desta coisa (isto irreal).

=   Na apreensão primordial de realidade (chamemo-la aqui de “percepção”) se apreende “esta coisa real”, quer dizer, um conteúdo (individual-campal) real.

=   Na simples apreensão se reduz esse conteúdo individual-campal real inteiro a “mero conteúdo campal real inteiro”, ou seja, a mero termo da percepção.

=   Desse modo, o conteúdo inteiro real da coisa já não é “isto” enquanto desta coisa real” (isto real), mas só “enquanto percebido” (isto irreal).

c.    Por isso chamamos de “perceito” ao simplesmente apreendido como um “isto irreal”.

=   Jamais a filosofia incluiu entre as simples apreensões o perceito; mas deve incluí-lo, porque não só é algo simplesmente apreendido, mas é o modo primário do simplesmente apreendido e a possibilidade dos demais modos do simplesmente apreendido.

=   Atenção que o perceito não é perceito de realidade, mas realidade em perceito.

 

 

2.     Ficto (como irreal)

 

a.   No primeiro modo de simples apreensão, se desrealiza o conteúdo real inteiro duma coisa e se cria um “isto irreal”, um “perceito”, mas mantendo intato o “como” da sistematização do conteúdo.

b.   Pois bem, num segundo modo de simples apreensão, se pode desrealizar o real resistematizando livremente o como do conteúdo dum perceito ou criando livremente um novo como com notas tomadas de diversos perceitos.

c.    Em ambos os casos criou-se livremente um “como fingido”, um “ficto”, algo simplesmente apreendido em ficção.

d.   Cinco observações sobre o ficto

=   A simples apreensão do real em ficção é realidade em ficção, não ficção de realidade; efetivamente, na simples apreensão do real em ficção, não se finge a realidade; aquilo que se finge é que a realidade possa ser (seria) em realidade assim.

=   Como o perceito, o ficto é algo livremente criado; mas o ficto é dupla criação livre (de conteúdo e de como).

=   A criação livre do ficto jamais é feita no vazio, mas está sempre orientada às coisas reais, quer dizer, para fingi-lo como elas, diferente delas, parecido com elas, oposto a elas, etc.

=   O ficto não é uma imagem produto da imaginação criadora, porque imaginação criadora também a têm os meros animais (com ela criam imagens estimúlicas); o homem tem “fantasia”; com ela cria realidade em fantasmas (em sentido etimológico), que são “intelecções” fantásticas.

=   O ficto é um modo de simples apreensão; portanto, é um ato de estrita intelecção senciente.

 

 

3.     Conceito (quê irreal)

 

a.   Na apreensão primordial de realidade não só se apreende compactamente o “isto” e o “como” da coisa real, mas também o seu “quê” (aquilo em que consistem o conteúdo e o como da coisa real).

b.   Pois bem, no terceiro modo de simples apreensão se pode desrealizar o “quê” da coisa real reduzindo-o a “quê” simplesmente apreendido: é a livre criação do “conceito”.

c.    Quatro observações sobre o conceito

=   O conceito não é conceito de realidade, mas realidade em conceito.

=   O modo de simples apreensão em que consiste o conceber é um movimento intelectivo libertador, desrealizador, do “quê” das coisas reais para obter quês irreais (conceitos).

#   A simples apreensão tem a liberdade inexorável de conceber conceitos em si mesmos e por si mesmos, que são meros quês irreais daquilo que “seria” em realidade o real.

#   Mas atenção: nenhuma concepção é um ato de liberdade oco e feito no vazio; é uma liberdade que nos dão precisamente as coisas reais apreendidas em apreensão primordial de realidade para inteligi-las entre e em função de outras coisas reais.

=   O modo de simples apreensão em que consiste o conceber é um movimento intelectivo que cria livremente quês irreais abstraindo “e” construindo.

#   Por um lado, a desrealização que se opera na concepção é abstração.

+   Abstração não é extração.

-   Extrair é “dividir” algo em partes e “separar” uma ou várias; o resultado da extração é uma “coisa extrata”, quer dizer, um modo de ficto.

-   Abstrair é um modo de “centração” e “precisão”: é inteligir centradamente em simples apreensão um aspecto ou vários duma coisa real, prescindindo de outros; o resultado da abstração é um “quê-abstrato”.

+   Usualmente costuma-se atender só ao resultado da abstracção (ao abstrato) ressaltando o seu caráter negativo; mas há que atender à abstração como movimento intelectivo positivo e criador: é uma livre criação no âmbito do “abs” como âmbito de irrealidade.

+   O abstrato não é “abstrato de realidade”, mas “realidade em abstração”.

#   Por outro lado, a desrealização que se opera na concepção é construção.

+   A maioria dos conceitos (sobretudo os científicos), livremente criados pela inteligência em simples apreensão, não são meramente algo abstraído (como pensa a filosofia usual), mas algo fundamentalmente construído.

+   Esta livre criação construtiva da concepção não opera com notas separadas, extraídas (como no ficto), mas com notas abstratas.

+   A livre criação conceptiva pode também construir um ficto ao fio dum conceito construto: é o caso, por exemplo, da construção físico-matemática.

+   O construto não é construção de realidade, mas realidade em “construção”.

=   A organização dos conceitos não está já logicamente prefixada (como acostuma se pensar), mas é um movimento intelectivo livre e criador; basta um exemplo: a organização de conceitos em gêneros, diferenças e espécies, expressada em definições.

#   Dizer simplesmente que o homem é animal “e” racional não é propriamente uma definição; para que o seja é necessário que “animal” seja gênero, que “racional” seja diferença, e que “homem” seja espécie.

#   Mas isto é uma livre construção, porque se poderia escolher “racional” como gênero, “animal” como diferença, e “homem” como espécie; nesse caso, o homem se definiria como um racional que caiu em matéria animal (foi, no fundo, a concepção do homem segundo Orígenes).


XIV

 

ESTRUTURA DINÂMICA DO LOGOS (2):

A INTELECÇÃO AFIRMATIVA

(AFIRMAÇÃO OU JUÍZO)

 

 

 

 

A. Em que consiste a intelecção afirmativa ou juízo.

 

 

1.     Duas concepções falsas da afirmação

 

a.   Afirmação é “crença”.

=   Afirmar é “crer que o afirmado é assim”; esta concepção da afirmação tem diversas versões segundo se entenda o que é “crença”.

#   Crença é um mero sentimento; afirmar, portanto, é expressar uma espécie de sentimento intelectual.

#   Crença é uma decisão da vontade; afirmar, portanto, é um querer dizer (Descartes); a verdade é a bondade da inteligência; a falsidade é o pecado da inteligência.

#   Crença é um ato de “admissão”: afirmar, portanto, é admitir algo.

=   Esta concepção da afirmação é falsa, porque nas suas três versões minimiza o caráter intelectivo da afirmação, ao confundir “afirmação” com “asseveração”.

#   Asseverar (crer, decidir, admitir, etc.) é um ato mental meu que pode ter por termo, entre outros, uma afirmação.

#   Mas a intelecção afirmativa em si mesma é afirmar que ““A” é “B””, por exemplo, independentemente de que seja ou não asseverado por mim.

#   Mais ainda, a afirmação é a possibilidade da asseveração; efetivamente, uma mesma afirmação pode ser termo de distintos modos de asseveração.

b.   Afirmação é “predicação” (Aristóteles).

=   Afirmar é dizer algo de algo, ou seja, predicar de “A” (sujeito) que “é” “B” (predicado); esta concepção da afirmação (com algumas variantes) percorreu toda a história da filosofia.

=   No entanto, a concepção da afirmação como predicação é inadmissível por dois motivos.

#   Diz que afirmar é dizer, mas não conceitua formalmente o que é a afirmação enquanto tal, porque a considera como o modo primário e radical de intelecção e, portanto, como algo irreduzível; mas isso não é assim, como dissemos repetidamente.

#   Identifica afirmação com “predicação” (“A” é “B”); essa identificação é falsa, porque a afirmação predicativa é só uma das três formas possíveis de afirmação, como vamos ver.

 

 

2.     Concepção da afirmação

 

a.   Concepção da afirmação enquanto movimento intelectivo

=   A afirmação é o segundo momento do movimento intelectivo em que o logos consiste, quer dizer, o seu momento de reversão (intentum) à coisa real apreendida primordialmente, para inteligir entre e em função dos diversos “seria” das simples apreensões aquilo que essa coisa real “é” em realidade.

=   Portanto, afirmar é um inteligir em movimento de “chegada”, um inteligir chegando, que não consiste em ir duma intelecção a outra (não é uma intenção de intelecção, quer dizer, um chegar a afirmar), mas que consiste em constituir a intelecção no chegar mesmo (é intentum intelectivo, ou seja, chegar afirmando).

=   Daí a insuficiência da concepção do dinamismo dialético intelectivo na filosofia até Kant inclusive.

#   Exposição

+   O dinamismo intelectivo chamado de dialético é o movimento da inteligência que vai dumas intelecções a outras combinando-as adequadamente; o dinamismo intelectivo, em definitiva, é raciocínio.

+   A filosofia estabeleceu com todo rigor as leis dialéticas primárias desse dinamismo dialético da inteligência.

+   Kant viu na dialética algo a mais do que uma mera combinação de afirmações; por isso fez delas um impressionante “sistema lógico”.

#   Insuficiência

+   Ao considerar que o dinamismo do raciocínio dialético é um simples fato, nenhuma filosofia (nem sequer o sistema lógico de Kant) nos diz porque acontece esse dinamismo.

+   No entanto, o dinamismo do raciocínio dialético não é um simples fato, mas uma estrutura da afirmação fundada na estrutura dinâmica do logos (que já explicamos), a qual, por sua vez, está fundada na estrutura dual do logos (que também explicamos).

=   Crítica à dialética de Hegel

#   Diz Hegel: o movimento dialético é mais do que o mero fato do movimento dumas afirmações a outras; é nada menos que a estrutura mesma da intelecção enquanto tal.

#   Isto é falso.

+   Certamente, o movimento é um caráter estrutural da intelecção e não um mero fato.

+   Mas não é um caráter estrutural da intelecção enquanto tal (a apreensão primordial de realidade não consiste em movimento intelectivo nenhum), mas só do logos (simples apreensão - afirmação).

b.   Concepção do movimento intelectivo enquanto afirmação

=   Afirmação, simples apreensão e apreensão primordial de realidade

#   A afirmação é, certamente, muito “mais” do que a simples apreensão, mas é, certamente, muito “menos” do que a apreensão primordial de realidade na qual ambas se fundam.

#   A afirmação não só não acrescenta nada à apreensão primordial de realidade, mas é um modo deficitário de estar intelectivamente naquilo que já se inteligiu como real.

#   Efetivamente, a afirmação, por um lado, é uma “expansão” da apreensão primordial de realidade; mas, por outro lado, é uma “atualização intelectiva reduzida” do real.

=   A afirmação não é uma espécie de “arrebatamento intelectivo” em virtude do qual a inteligência se “decide” a afirmar algo como real.

#   Afirmar não é algo assim como jogar-se na água para comprometer-se com aquilo que se pensa que é o real.

#   A inteligência já está retida na realidade do real desde a apreensão primordial de realidade; no logos, e, portanto, no seu momento afirmativo, aquilo que faz a inteligência é mover-se intelectivamente na realidade em que já está.

#   Não há nenhuma espécie de arrebatamento (não há um ““eu” me lanço a afirmar”); ao invés, preciso afirmar, porque o real, retendo-me campalmente na sua realidade, se afirma na minha intelecção.

=   A afirmação é um movimento meu; mas movimento meu significa ato meu e não atividade espontânea minha.

#   A asseveração sim que é atividade espontânea, mas a afirmação enquanto tal não.

#   A afirmação é um movimento meu, mas “imposto” à minha inteligência pela atualidade intelectiva campal que me leva tensamente a afirmar.

#   Em outras palavras: o movimento afirmativo me pertence certamente, é um ato meu; mas é um ato meu que não resulta duma atividade espontânea minha, mas dum intentum dinâmico ao qual se vê forçada a minha inteligência.

=   Quatro momentos constitutivos do movimento afirmativo completo

#   Primeiro, o momento de realidade primordial que vem à afirmação da apreensão primordial da coisa real da qual vai se afirmar o que é em realidade.

#   Segundo, o momento do discernir (krínein) entre os muitos “seria” (perceitos, fictos e conceitos) qual vai ser afirmado como aquilo que “é” a coisa real em realidade.

#   Terceiro, o momento, em movimento reversivo, de cumular a distância criada na simples apreensão (que foi se retraindo desde a coisa real ao que essa coisa real “seria” em realidade), chegando desde aquilo que “seria” em realidade essa coisa real àquilo que “é” em realidade; este momento é a essência da afirmação enquanto tal.

#   Quarto, o momento afirmativo enquanto tal de chegar afirmando aquilo que a coisa real é em realidade.

=   A afirmação não afirma algo acerca de algo simplesmente apreendido, mas duma coisa real apreendida em apreensão primordial de realidade.

#   Poder-se-ia pensar, efetivamente, que aquilo sobre o qual recai a afirmação é algo simplesmente apreendido.

+   Por exemplo, se afirmo “este papel é branco”, poder-se-ia pensar que afirmo acerca de “branco” (“seria irreal”) que se dá, que se realiza, que “é” real, neste papel.

+   Nesse caso, estaria afirmando, em definitiva, a realidade da simples apreensão “branco”.

#   Mas isto não é assim: a afirmação recai sempre sobre algo real apreendido como real em apreensão primordial de realidade.

+   De algo real já apreendido como “real”, afirmo o que é “em realidade”.

+   Que isto é assim, é obvio nas afirmações sobre coisas reais: por exemplo, quando se afirma: “esta sopa está quente”, supõe-se que esta sopa é real.

+   Que isto é assim, também fica claro quando se afirma sobre coisas-sentido, porque toda coisa-sentido é uma coisa real que tem condição de coisa-sentido (uma mesa [coisa sentido] é uma coisa real que tem condição de funcionar como mesa na nossa vida).

+   Mas, também afirmo acerca de algo real quando faço uma afirmação sobre o espaço geométrico ou sobre Don Juan, por exemplo?; sim!

-   É certo que os elementos matemáticos ou as personagens de ficção não são reais como o é esta pedra; mas também é certo que não são algo puramente e simplesmente a-real.

-   A construção matemática e a construção da literatura de ficção constroem livremente com o simplesmente apreendido, quer dizer, com perceitos, fictos e conceitos, que são irreais, mas não a-reais.

-   Portanto, nem na matemática nem na ficção nem nas elucubrações mentais mais abstratas ou fantásticas, abandonamos jamais a realidade apreendida em apreensão primordial de realidade.

+   Assim pois, o impropriamente chamado de “sujeito” da afirmação, não é em realidade o sujeito da afirmação, mas o “objeto”, por assim dizer, sobre o qual recai a afirmação, quer dizer, o real acerca do qual se afirma o que é em realidade.

=   Aquilo que se afirma na afirmação não é “a realidade” da coisa (como sempre se diz), mas “o que é em realidade” a coisa real já apreendida como real.

 

 

 

B.   As formas do juízo ou afirmação

 

 

1.     Introdução

 

a.   É insuficiente a divisão clássica dos juízos canonizada por Kant.

=   Kant classifica os juízos em quatro classes: juízos de qualidade, juízos de quantidade, juízos de relação e juízos de modalidade.

=   Mas essas quatro classes de juízo pertencem só a uma das três formas de juízo: ao juízo predicativo; no entanto, não todo juízo é predicativo; há juízos ante-predicativos, como vamos ver.

=   É que Kant pensa, com toda a tradição filosófica, que a afirmação é formalmente predicação; mas já vimos que isso não é assim.

b.   Há três formas de juízo que correspondem às três diversas funções que desenvolve no juízo a coisa já apreendida como real em apreensão primordial, acerca da qual se julga o que é em realidade.

=   Juízo posicional: a coisa real, acerca da qual se julga o que é em realidade, tem função posicional; é posta para o juízo do que é em realidade.

=   Juízo proposicional: a coisa real, acerca da qual se julga o que é em realidade, tem função proposicional; é proposta (posta de novo) para o juízo do que é em realidade.

=   Juízo predicativo: a coisa real, acerca da qual se julga o que é em realidade, tem função predicativa; é predicada no juízo sobre o que é em realidade.

 

 

2.     As três formas do juízo: juízo posicional, juízo proposicional e juízo predicativo

 

a.   Juízo posicional

=   Exemplo: a exclamação “Fogo!” que emito depois de abrir a janela e ver algo real em apreensão primordial de realidade.

#   Há algo sentido intelectivamente como real em apreensão primordial de realidade: aquilo que vejo ao abrir a janela; esse algo está apreendido com toda a sua riqueza e variedade de notas e com formalidade de realidade, mas ainda não inteligi o que é “em realidade”.

#   No juízo posicional, afirmo que esse algo real que vi é “em realidade” fogo.

=   Chamamos de “posicional” esta forma de juízo, porque a coisa real inteira, apreendida em apreensão primordial de realidade (sem ser apreendida previamente numa simples apreensão que a qualifique) está simplesmente “posta” para a afirmação do que é em realidade.

#   Justamente por isso, no juízo posicional só há uma denominação: a do simplesmente apreendido (fogo, no exemplo) que se afirma sendo aquilo que é em realidade a coisa real apreendida em apreensão primordial de realidade.

#   Já não haveria juízo meramente posicional se se afirmasse: “isto é fogo”; aqui, efetivamente, há já duas denominações correspondentes a dois algos simplesmente apreendidos: “isto” (simples apreensão e denominação do real que vejo) e “fogo” (simples apreensão e denominação daquilo que afirmo que é em realidade o real que vejo).

=   A conotação afirmativa do juízo posicional se expressa no tom exclamativo do mesmo.

b.   Juízo proposicional

=   Alguns exemplos.

#   A corrupção do melhor, a pior (corruptio optimi, pessima).

#   Todo o excelente, escasso (omnia praeclara, rara).

#   Os homens, todos iguais (homines, omnes aequales).

#   A mulher, sempre volúvel (varium et mutabile semper femina).

#   Gênio e figura, até a sepultura.

#   Para verdades, o tempo.

#   Este, meu papel.

#   Tu, o único Santo, o único Senhor.

#   Tu, meu Deus.

#   Tu, Senhor.

=   No juízo proposicional, o real do qual se afirma o que é em realidade, foi já apreendido por sua vez em simples apreensão e afirmação; por exemplo, se o real, do qual se julga o que é em realidade, é “A”, “A” não só é algo apreendido “como real” em apreensão primordial de realidade, mas algo já afirmado desde uma simples apreensão como sendo “em realidade” “A” .

=   Chamamos de “proposicional” esta forma de juízo, porque a coisa real da qual se julga o que é em realidade, não está meramente “posta”, mas “pro-posta” (posta de novo) para uma afirmação daquilo que é em realidade.

#   Primeiro, a coisa real foi “posta” para uma afirmação anterior do que é em realidade desde uma simples apreensão também anterior; resultou ser em realidade “A”.

#   Agora, a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, e por isso já denominada como “A”, é “pro-posta” (posta de novo) para outra afirmação daquilo que é em realidade.

=   No juízo proposicional, portanto, há claramente dois momentos.

#   O momento “A”, quer dizer, a realidade de algo apreendido já como real em apreensão primordial e afirmado já como sendo em realidade “A”, que é proposto agora para uma nova afirmação do que é em realidade.

#   O momento “B”, que é algo irreal apreendido numa simples apreensão e que, unido complexivamente (como vamos ver) ao simplesmente apreendido como “A” (=“AB”), é posto como aquilo que é em realidade a realidade do que numa primeira afirmação resultava ser em realidade “A”.

=   A afirmação proposicional enquanto afirmação é, portanto, uma afirmação complexiva, uma afirmação de algo que a coisa real é complexivamente em realidade; no exemplo, a afirmação de que a coisa real, que resultava ser em realidade “A”, resulta agora ser em realidade a unidade complexiva “AB” (isto o veremos melhor em seguida ao diferenciar o juízo proposicional do juízo predicativo).

=   A expressão do juízo proposicional é a frase nominal.

#   Carece de verbo; não se trata de que o verbo esteja subentendido, mas de que é uma frase positivamente a-verbal.

#   Tem pelo menos dois nomes ou denominações (à diferença da frase posicional que só tem um).

#   Os dois nomes não são sujeito e predicado, mas formam uma unidade complexiva (“AB”) (o vamos explicar, como dissemos, no juízo predicativo).

=   A conotação afirmativa se expressa mediante a “pausa” (ou vírgula) entre os dois nomes.

=   Normalmente emprega-se em invocações, sentenças, etc.

c.    Juízo predicativo

=   Exemplo: “esta parede é branca”;  o esquema clássico é ““A” é “B”” (já veremos que não necessariamente o verbo é sempre “ser”).

=   O juízo predicativo é um modo especial de juízo proposicional.

#   A coisa real, posta já como sendo em realidade “A”, é proposta (novamente posta) para ser afirmada como sendo em realidade “B”; neste aspecto, portanto, o juízo predicativo é um juízo proposicional.

#   Mas é um modo especial de juízo proposicional, porque não se afirma que a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, seja em realidade a unidade complexiva “AB”, mas a simples unidade conectiva ou copulativa “A-B”.

=   Em que consiste a afirmação da unidade conectiva ou copulativa “A-B”, à diferença da afirmação da unidade complexiva “AB”? (Estávamos devendo esta explicação).

#   A afirmação predicativa afirma que a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, é em realidade “B”, mas “não forçosamente de modo necessário” (coisa que sim se afirma na afirmação meramente proposicional).

#   Com outras palavras: na afirmação predicativa se afirma que a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, certamente é em realidade “B”, mas “não necessariamente a índole mesma” daquilo que é em realidade essa coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”; quer dizer, aquilo que é em realidade a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, se mantém em certo modo formalmente distinto de “B”.

#   Por isso, entre aquilo que é em realidade a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, e “B” se afirma uma unidade de mera “conexão”: a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, é efetivamente em realidade “B”, mas nem a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, “consiste forçosamente” em ser em realidade “B”, nem “B” “consiste forçosamente” em ser aquilo que é em realidade a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A” (coisa que se afirma, no entanto, no juízo proposicional mediante a unidade complexiva “AB”).

#   Por conseguinte, a unidade conectiva “A-B” afirmada no juízo predicativo é ao mesmo tempo união e distinção (ou separação); pode ser uma unidade conectiva necessária ou só de fato; mas é sempre uma unidade conectiva “derivada” daquilo que é necessariamente em realidade a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”.

#   Vejamos com um exemplo aquilo que estamos dizendo.

+   Ao dizer: “A mulher, volúvel” (juízo proposicional), afirma-se que o real que é em realidade mulher é em realidade volúvel “precisamente por” (unidade complexiva) ser em realidade mulher, quer dizer, pela índole mesma daquilo que é em realidade o real que é em realidade mulher.

+   Ao dizer: “A mulher é volúvel” (juízo predicativo), afirma-se que o real que é em realidade mulher “certamente é” em realidade (momento unitivo da unidade conectiva) volúvel, mas que o real que é em realidade mulher “não forçosamente consiste em ser” em realidade (momento separativo da unidade conectiva) volúvel, quer dizer, que aquilo que é em realidade o real que é em realidade mulher pode ser que tenha a sua índole própria independente da volubilidade.

= O juízo predicativo visto desde a lógica formal lingüística e visto desde a lógica real intelectiva.

#   O juízo predicativo desde a perspectiva da lógica formal lingüística.

+   “A” e “B” são duas variáveis do mesmo caráter cuja diferença é meramente funcional: “A” é sujeito e “B” é predicado.

+   Mas essa posição funcional pode perfeitamente permutar-se (é aquilo que se chama “conversão de proposições”); então, “B” é sujeito e “A” é predicado.

+   Por exemplo: a proposição “todos os homens são mortais” pode ser convertida na proposição “alguns mortais são homens”.

#   O juízo predicativo, desde a perspectiva da lógica real intelectiva (que é aquela na qual estamos, quer dizer, o juízo predicativo enquanto um modo do momento afirmativo do movimento intelectivo) é essencialmente diferente.

+   A coisa real, já apreendida como sendo em realidade “A” e, por isso, denominada como “A”, não forma parte do afirmado no juízo predicativo, mas é simplesmente a “realidade proposta” para afirmar novamente dela o que é em realidade.

+   Esta “realidade proposta” costuma ser chamada de sujeito do juízo predicativo; mas, em rigor, deveria ser chamada de “objeto” (por assim dizer) sobre o qual o juízo predicativo afirma o que é em realidade; efetivamente, o real já apreendido como sendo em realidade “A” não é sujeito-de “B”, mas, em todo caso, sujeito-a (objeto-de) o afirmado no juízo predicativo, que é a unidade conectiva “A-B”.

+   Por conseguinte, “B” não é um termo homogêneo a “A” e diferente de “A” só pela sua colocação no juízo predicativo, mas é essencialmente distinto de “A”.

+   É um contra-sentido, portanto, (desde a perspectiva da lógica real intelectiva) converter o juízo predicativo “a parede é branca” pelo juízo predicativo “algo branco é parede”, ou o juízo proposicional “toda mulher, volúvel” pelo juízo proposicional “algo volúvel, mulher”.

=   Não se trata, em absoluto, de invalidar a lógica formal moderna; ao contrário, se trata de fundá-la na lógica real intelectiva.

#   A conexão “A-B” não é primariamente uma relação de posição funcional entre “A” e “B” (perspectiva da lógica formal que justifica, portanto, a conversão de proposições), mas é primariamente uma unidade intelectiva que funda precisamente aquela possível relação posterior.

#   Efetivamente, o verbo do juízo predicativo (“é”, no exemplo) desenvolve uma função tripla.

+   Expressa “a afirmação” enquanto tal de que a coisa real, já afirmada como sendo em realidade “A”, é em realidade “A-B”.

+   Expressa “o afirmado”, quer dizer, a unidade conectiva “A-B”.

+   Expressa a “relação” copulativa que fica estabelecida entre “A” e “B”, relação que é consecutiva à unidade conectiva “A-B” e fundada nela; esta relação é aquela que é termo do estudo da lógica formal.

#   Esta tripla função é própria de “todo” verbo e não só do verbo ser.

+   Se digo: um pássaro canta, esse cavalo corre, aquele homem fala, etc. estou fazendo um juízo predicativo.

-   Expresso “a afirmação” enquanto tal de que àquilo que é em realidade a coisa real, já afirmada como sendo em realidade pássaro, cavalo, homem, etc., lhe compete a unidade conectiva pássaro-cantar, cavalo-correr, homem-falar, etc., ou seja, a unidade conectiva entre pássaro, cavalo, homem, e as ações cantar, correr, falar.

-   Expresso “o afirmado”, quer dizer, a unidade conectiva pássaro-cantar, cavalo-correr, homem-falar, etc.

-   Expresso a “relação” copulativa resultante entre as ações de cantar, correr, falar, e o pássaro, o cavalo e o homem.

+   Por isso, o esquema do juízo predicativo não é necessariamente o esquema clássico “A “é” B”, como tínhamos adiantado.

=   Insistamos mais uma vez na distinção entre a estrutura lógico-formal e a estrutura lógico-real do juízo predicativo.

#   Estrutura lógico-formal do juízo predicativo “A é B”.

+   O sujeito é um objeto expressado somente sob um de seus aspectos denominado “A”.

+   O predicado é esse mesmo objeto sob outro de seus aspectos denominado “B”.

+   A cópula é o verbo ser que designa a unidade relacional de ambos os aspectos (“A”, “B”) do mesmo objeto; o verbo ser repousa em certa maneira sobre si mesmo.

#   Estrutura lógico-real do juízo predicativo “A é B”.

+   O impropriamente chamado de sujeito é a coisa real inteira, apreendida como real em apreensão primordial de realidade, já afirmada como sendo em realidade “A”, e proposta agora para uma nova afirmação daquilo que é em realidade.

+   O predicado, quer dizer, o afirmado, é a unidade conectiva “A-B”.

+   A chamada de cópula (“é”) não só afirma a unidade conectiva “A-B”, mas que essa unidade conectiva “A-B” compete àquilo que é em realidade a coisa real inteira, apreendida como real em apreensão primordial de realidade, e já afirmada como sendo em realidade “A”; por conseguinte, o verbo ser não repousa sobre si mesmo, mas sobre a realidade inteira da coisa real, apreendida como real em apreensão primordial de realidade, e já afirmada como sendo em realidade “A”.

 

 

 

C.   Os modos da afirmação ou juízo

 

 

1.     Atualidade intelectiva campal “indeterminada” da coisa real e afirmação de “ignorância” do que é em realidade a coisa real.

 

a.   Atualidade intelectiva campal “indeterminada” da coisa real

=   Pode acontecer que a coisa já apreendida como real se atualiza campalmente no logos de modo indeterminado; atenção que não se trata duma carência de atualidade intelectiva campal da coisa real, mas duma positiva privação de atualidade intelectiva campal determinada.

=   Nesse caso, se dá uma atualidade intelectiva campal da coisa real como “campo vazio”; fica em suspenso o que é em realidade a coisa real.

#   Atenção que nesta suspensão não se trata de que haja uma mera carência do que é em realidade a coisa real (não é que não haja determinação do que é em realidade a coisa real), mas de que há uma positiva privação do que é em realidade a coisa real (há determinação indeterminada do que é em realidade a coisa real); indeterminação é sempre um modo de determinação; a-determinação é não-determinação alguma.

#   E atenção, também, que a coisa real é determinada; aquilo que é indeterminado é o que é a coisa real em realidade.

=   Em virtude disso, a determinação indeterminada do que é em realidade a coisa real fica aberta sem limites, fica aberta a todo “o demais” do campo de realidade; nada daquilo simplesmente apreendido de que dispomos se realiza naquilo que é em realidade a coisa real.

b.   Afirmação de “ignorância” do que é em realidade a coisa real.

=   A afirmação do que é em realidade uma coisa real atualizada campalmente de modo indeterminado é afirmação de ignorância: afirmamos a nossa ignorância do que é em realidade a coisa real.

=   Atenção que ignorância não é nesciência.

#   Nesciência é não-intelecção afirmativa; se dá quando não temos nenhuma atualidade intelectiva campal de algo, porque não temos a sua atualidade intelectiva em apreensão primordial de realidade.

#   Ignorância é positiva intelecção afirmativa da nossa ignorância daquilo que é em realidade a coisa real apreendida em apreensão primordial de realidade, cuja atualidade intelectiva campal é determinadamente indeterminada.

=   Temos que aprender a ignorar (coisa nada fácil para tantos...), com o fim de poder, em simples apreensões, criar livremente novos perceitos, fictos e conceitos, que nos levem desde a ignorância a outros modos de afirmação ou juízo!

 

 

2.     Atualidade intelectiva campal “indicial (clarescente, turva, indicada)” da coisa real e afirmação de “barrunto (vislumbre, confusão, suspeita)” do que é em realidade a coisa real.

 

a.   Atualidade intelectiva campal “indicial” da coisa real

=   Pode ser que, na sua atualidade intelectiva campal, os traços do que é em realidade a coisa real só apontem vagamente e que, imediatamente, se desmoronem como invalidados.

=   Nesse caso, a atualidade intelectiva campal da coisa real é só indício do que é em realidade essa coisa real.

=   A atualidade intelectiva campal indicial do real tem vários graus.

#   Clarescência é o modo de atualidade intelectiva campal indicial do real que consiste no mero romper ao albor da claridade daquilo que é em realidade a coisa real.

#   Turvidade é o modo de atualidade intelectiva campal indicial do real que consiste em que a coisa real se atualiza campalmente no logos não só como à luz que alveja, mas também mostrando alguns traços rascunhados do que é em realidade.

#   Indicação é o modo de atualidade intelectiva campal indicial do real que consiste em que a coisa real se atualiza campalmente no logos mostrando alguns traços do que é em realidade, apontando-os marcadamente.

b.   Afirmação de “barrunto” do que é em realidade a coisa real é a afirmação do que é em realidade a coisa real atualizada campalmente no logos como indício, em seus três graus.

=   Afirmação de “vislumbre” é o modo de afirmação barruntiva do real atualizado campalmente, no logos, em clarescência.

=   Afirmação de “confusão” é o modo de afirmação barruntiva do real atualizado campalmente, no logos, em turvidade.

=   Afirmação de “suspeita” é o modo de afirmação barruntiva do real atualizado campalmente, no logos, em indicação.

 

 

3.     Atualidade intelectiva campal “ambígua” da coisa real e afirmação de “dúvida” do que é em realidade a coisa real.

 

a.   Atualidade intelectiva campal “ambígua” da coisa real

=   Dá-se quando os traços acusados daquilo que a coisa real é em realidade se mantêem.

#   Os traços formam já uma multiplicidade que não é mera indeterminação, mas uma indeterminação delimitada e definida.

#   Esses traços estão sustentados pela coisa real mesma que se atualiza campalmente no logos podendo ser em realidade “tanto” uma coisa “quanto” outra.

=   Ambigüidade é o modo de atualidade intelectiva campal da coisa real como “tanto-quanto”: a coisa real é realidade ambígua a respeito das simples apreensões.

b.   Afirmação de “dúvida” do que é em realidade a coisa real.

=   Dúvida é formalmente a afirmação de que a coisa real é em realidade ambígua.

=   A dúvida se funda numa conjunção: a coisa pode ser em realidade tanto isto quanto aquilo.

=   A dúvida não é vacilação entre duas afirmações, mas uma afirmação da ambigüidade daquilo que é em realidade a coisa real.

 

 

4.     Atualidade intelectiva campal em “preponderância (clinamen, gravidade, vencimento)” da coisa real e afirmação de “opinião (inclinação, probabilidade, convicção)” do que é em realidade a coisa real.

 

a.   Atualidade intelectiva campal “preponderante” da coisa real

=   Sem deixar de ser ambíguo aquilo que é em realidade a coisa real, aproxima-se mais a um dos dois termos da ambigüidade: a atualidade intelectiva campal da coisa real tem um certo peso (pondus): é atualidade intelectiva campal em “pré-ponderância”.

=   Mantêm-se os dois termos da ambigüidade, mas a atualidade intelectiva campal da coisa real sustenta mais um do que o outro.

#   A coisa real já não é em realidade “tanto” isto “quanto” aquilo.

#   A coisa é “melhor” isto do “que” aquilo.

=   A atualidade intelectiva campal preponderante do real tem vários graus.

#   Clinamen é a atualidade intelectiva campal levemente preponderante da coisa real.

#   Gravidade é a atualidade intelectiva campal preponderante da coisa real em que os traços daquilo que a coisa é em realidade carregam francamente mais dum lado que do outro.

#   Vencimento é a atualidade intelectiva campal preponderante da coisa real em que os traços daquilo que a coisa é em realidade vencem já francamente para um lado.

b.   Afirmação de “opinião” do que é em realidade a coisa real é a afirmação opinativa de que aquilo que é em realidade a coisa real atualizada campalmente em preponderância, no logos, em seus três graus, é opinável.

=   Inclinação é a afirmação opinativa da atualidade intelectiva campal da coisa real em clinamen; nela se afirma inclinadamente o que é em realidade a coisa real.

=   Probabilidade é a afirmação opinativa da atualidade intelectiva campal da coisa real em gravidade; nela se afirma provavelmente o que é em realidade a coisa real.

=   Convicção é a afirmação opinativa da atualidade intelectiva campal da coisa real em vencimento; nela se afirma arrastadamente o que é em realidade a coisa real.

 

 

5.     Atualidade intelectiva campal “óbvia” da coisa real e afirmação de “plausibilidade” do que é em realidade a coisa real.

 

a.   Atualidade intelectiva campal “óbvia” da coisa real

=   Os traços daquilo que a coisa real é em realidade estão já aqui univocamente determinados; mas a coisa real não se atualiza ainda como “sendo” em realidade isto; simplesmente “tem” os caracteres perfeitamente definidos disto.

#   Esses caracteres perfeitamente definidos que tem a coisa real de ser em realidade isto consistem em “aspecto”.

+   O aspecto só constitui a superfície do volume daquilo que a coisa real é em realidade.

+   O volume daquilo que a coisa real é em realidade, enquanto circunscrito por essa face, tem esse modo de atualidade intelectiva campal que é o “aspecto”.

+   É um aspecto perfeitamente preciso: a coisa real tem em realidade aspecto disto.

#   O ter pelo qual a coisa real tem em realidade aspecto disto, consiste em “manifestação”.

+   O aspecto é “de” a coisa real, pertence intrinsecamente a ela na sua atualidade intelectiva campal.

+   Esta unidade do seu aspecto à coisa real atualizada campalmente é unidade de expressão.

+   Esta expressão é manifestação daquilo que a coisa real é em realidade.

=   O modo de atualidade intelectiva campal da coisa real segundo o aspecto que tem, consiste em “obviedade”.

#   Neste modo de atualidade intelectiva campal do real, sai-me ao encontro o aspecto da coisa real; sair ao encontro é etimologicamente “ob-viar, ob-viedade”.

#   A coisa real é obviamente em realidade o manifestado no seu aspecto.

#   O aspecto está em certo modo “colado” à coisa real atual campalmente no logos, mas com “lassitude”.

#   Em rigor, a coisa real poderia ser em realidade distinta do seu aspecto.

b.   Afirmação de “plausibilidade” do que é em realidade a coisa real.

=   Plausibilidade é formalmente a afirmação do que é obviamente em realidade a coisa real; nela se afirma plausivelmente que a coisa real é em realidade tal qual manifesta o seu aspecto.

=   É aquilo que expressamos dizendo: a coisa real é em realidade isto “enquanto” não se demostre o contrário...

=   Esta idéia do plausível é aquilo que constitui, em rigor, o que Parmênides chama de dóxa.

#   Formas e nomes são o aspecto óbvio daquilo que as coisas reais são em realidade.

#   Não é questão de meras aparências fenomênicas, nem de percepções sensíveis, nem de entes concretos à diferença do ser enquanto tal; é questão de obviedade e de plausibilidade.

 

 

6.     Atualidade intelectiva campal “efetiva” da coisa real e afirmação de “certeza” do que é em realidade a coisa real.

 

a.   A atualidade intelectiva campal “efetiva” da coisa real tem três caracteres.

=   Incorporação

#   Aquilo que chamamos de aspecto da coisa real na sua atualidade intelectiva campal, agora é já um momento incorporado à coisa real mesma campalmente atualizada no logos.

#   A coisa real já não se atualiza campalmente como mero volume, mas como corpo: é atualidade intelectiva campal de “incorporação”.

=   Constituição

#   A atualidade intelectiva campal da coisa real já não é agora atualidade do aspecto da coisa real, mas atualidade da coisa mesma na sua realidade campal.

#   O constitutivo significa aqui que pertence àquilo que a coisa real é em realidade, que constitui aquilo que a coisa real é em realidade.

=   Efetividade

#   Os traços que formam corpo com aquilo que a coisa real é em realidade (e que pertencem, portanto, à constituição da sua atualidade intelectiva campal) são traços daquilo que efetivamente é em realidade a coisa real.

#   Não são traços que simplesmente manifestam aquilo que a coisa real é em realidade, mas são efetivamente aquilo que a coisa real é em realidade.

b.   Afirmação de “certeza” do que é em realidade a coisa real.

=   A efetividade da constituição daquilo que é em realidade a coisa real campalmente atualizada, determina a firmeza certa da afirmação do que é em realidade a coisa real.

=   Não se trata de estar seguro (a certeza não é um estado mental meu), mas de que a coisa real é em realidade assim com firmeza total.

=   Estar no certo não é segurança, mas alvo acertado (por assim dizer).


XV

 

ESTRUTURA MEDIAL DO LOGOS SENCIENTE (1):

A EVIDÊNCIA

 

 

 

 

A.   Concepção de evidência

 

 

1.     A coisa real, apreendida em apreensão primordial de realidade, é a que determina (cogita-exige-evidencia) o logos na sua intelecção do que é ela em realidade.

 

a.   A coisa real, apreendida em apreensão primordial de realidade “cogita” o logos para que intelija o que é ela em realidade.

=   A coisa real, ao atualizar-se campalmente no logos (e não por uma “atuação” sobre ele), é a que o move durante todo o seu movimento intelectivo.

=   Este mover a coisa real o logos não é um mover ab extrinseco, ou seja, não é um “con-duzir” (como pensam todos aqueles que consideram a intelecção como uma ação nossa “guiada” externamente pelas coisas), mas é um mover ab intrinseco, ou seja, um co-agere, um “co-agitar”, um “cogitar”!: a coisa real co-agita o logos para que intelija o que é ela em realidade.

b.   A coisa real, apreendida em apreensão primordial de realidade, “exige” ao logos que intelija o que é ela em realidade.

=   Esse co-agere em que consiste o mover a coisa real o logos, é mais exatamente um ex-agere, um ex-igir: a coisa real atualizada campalmente no logos exige a este que intelija o que é ela em realidade.

=   Esta exigência da coisa real ao logos para que intelija aquilo que ela é em realidade, é uma modulação da força de imposição da realidade da coisa real apreendida em apreensão primordial de realidade.

c.    A coisa real, apreendida em apreensão primordial de realidade, “evidencia” ao logos a intelecção do que é ela em realidade.

=   Na sua exigência ao logos, a coisa real, atualizada campalmente nele, é a que lhe determina qual ou quais das simples apreensões ficam incluídas ou excluídas das afirmações daquilo que é ela em realidade.

=   Portanto, a coisa real, atualizada campalmente, é a que “exige” ao logos “que veja” o que é ela em realidade.

=   Esta “visão” que a coisa real, atualizada campalmente no logos, “exige” a este, não é a vidência com a qual a apreensão primordial de realidade a “viu” (=inteligido sencientemente) como real; agora se trata duma “vidência exigida” pela coisa real ao logos de que “veja” o que é ela em realidade.

=   Por conseguinte, agora, no logos daquilo que as coisas são em realidade, o que há é “exigida-vidência”, ex-videntia, “evidência”!

=   Aqui está a essência da evidência: a evidência é formalmente “visão” intelectiva em movimento daquilo que as coisas reais são em realidade, “exigida” pelas coisas reais mesmas, já apreendidas como reais em apreensão primordial de realidade, e atualizadas agora campalmente no logos.

 

 

2.     Considerações essenciais sobre a evidência

 

a.   A evidência é exclusiva do logos.

=   A coisa real apreendida primordialmente não é evidente; é muito mais do que evidente: é “vidente”, é videntemente algo real.

=   Só é evidente (no logos) aquilo que essa coisa real, já vidente (já apreendida primordialmente como real), é em realidade.

b.   A evidência é fundamentalmente o “âmbito de evidência” no qual se dá toda a gama de modalidades de evidência: os dois opostos (aquilo que evidentemente se vê e aquilo que evidentemente não se vê, ou seja, o evidentemente evidente e o evidentemente inevidente) e todos os intermédios (aquilo que evidentemente se vê só a meias, mais ou menos, etc.).

=   Por isso, há que distinguir com rigor a “evidência constituinte” (a evidência como âmbito de evidência) e as “evidências constituídas” nesse âmbito da evidência.

=   Evidência constituinte ou âmbito de evidência é a “visão” intelectiva em movimento daquilo que as coisas reais são em realidade, “exigida” pelas coisas reais mesmas, já apreendidas como reais em apreensão primordial de realidade, e atualizadas agora campalmente no logos.

=   Evidências constituídas na evidência constituinte

#   No âmbito da evidência (evidência constituinte) acontecem as diversas modalidades de evidências (evidências constituídas).

+   Classicamente se pensa que as evidências surgem “imediatamente” daquilo que se vê.

+   Isto não é assim; todas as evidências são algo que é constituído acontecendo medialmente no âmbito da evidência (evidência constituinte).

#   Em virtude de serem constituídas no âmbito da evidência, as evidências constituídas têm “sempre” caráter de necessidade necessitante.

+   A necessidade necessária é um caráter da atuidade das coisas reais; por exemplo, é necessariamente necessário que o fogo queime; não é necessariamente necessário, mas contingente, que este livro esteja em cima desta mesa, quer dizer, poderia estar em outro lugar.

+   A necessidade necessitante é um caráter da atualidade intelectiva das coisas reais; nesta linha, é “sempre tão” necessitantemente necessária a evidência de que o fogo em realidade queima (algo necessariamente necessário), “quanto” a evidência do que em realidade este livro está em cima desta mesa (algo contingente).

c.    As modalidades de evidência dentro do âmbito da evidência podem ser de muitos tipos dependendo da índole de cada coisa real que se atualiza campalmente.

=   Não é o mesmo a evidência própria duma realidade meramente material, que a duma realidade pessoal, ou moral, ou estética, ou histórica, etc.

=   Por isso é grave confundir o modo de evidência dum tipo de realidade com o modo de evidência de outro tipo de realidade.

=   Mas aquilo que é gravissimamente funesto é preestabelecer (arbitrariamente, claro!) um cânon único de evidência, e chamar de inevidente tudo aquilo que não passa pelo cano desse cânon!

d.   Contrariamente àquilo que sempre se pensa, não há umas evidências fundamentais e primeiras dadas imediatamente à inteligência; não há evidência imediatamente dada; “toda” evidência é mediada e obtida.

=   Toda evidência é mediada, porque toda evidência é algo que acontece no “meio” do campo de realidade.

=   Em virtude disso, a evidência não é algo dado, mas é sempre algo obtido em movimento intelectivo (logos) no campo de realidade, diferentemente da vidência das coisas como reais, a qual é dada imediatamente na intelecção senciente em apreensão primordial de realidade.

e.    A evidência é ex-atidão.

=   Ex-atidão é o caráter daquilo que está ex-igido (ex-actus é o particípio do verbo ex-igere); exato é aquilo que está contido (constringido) nos limites estritos do exigido.

=   Em virtude de serem evidências (“vidências “ex-igidas””), as intelecções do logos têm caráter de “ex-atidão”: são constitutivamente intelecções “exatas”.

 

 

 

B.   Crítica de duas concepções falsas da evidência

 

 

1.     Segundo Descartes, a evidência é formalmente “visão clara” (clara ac distincta perceptio) na mera consciência de que algo “é assim”; pois bem, isto é radicalmente falso por dois motivos.

 

a.   A claridade não é aquilo que constitui a visão própria da evidência; pelo contrário, a claridade é consecutiva à visão evidente.

=   É inegável que na evidência há visão clara e distinta (inclusive no caso extremo da evidência da minha afirmação de evidente ignorância do que é algo em realidade); mas isso não quer dizer que a visão própria da evidência esteja constituída por essa claridade (e distinção).

=   Efetivamente, essa claridade não repousa sobre si mesma, mas sobre a visão exigida (=evidência) pela atualidade intelectiva campal da coisa real; ou seja, a claridade da minha visão evidente está intrinsecamente determinada pela exigência daquilo que estou vendo em realidade: vejo com claridade que a coisa tem que ser vista em realidade assim com necessidade necessitante.

=   Por conseguinte, a evidência não é clara ac distincta perceptio, mas, em todo caso, “percepção exigida clarificante (e distinguinte)”.

b.   A evidência não é mera consciência de que a coisa “é assim”, mas intelecção de que a coisa real “está sendo realmente assim em realidade”.

=   A prova está, nada menos, que na cartesiana evidência das evidências: no cogito.

#   O cogito de Descartes inclui dois cogito: cogito me cogitare, quer dizer, “eu penso (pensamento pensante) que eu penso (pensamento pensado)”.

#   Comecemos por analisar o pensamento pensado, quer dizer, “que eu penso”.

+   Em que pensamento pensa aqui Descartes?; não certamente em “o” pensamento “em geral” (ao modo da filosofia medieval), mas no “seu” pensamento “atual”; quer dizer, eu, Descartes, penso “que eu, Descartes, atualmente penso”.

+   Este momento de “atualidade” se expressa exatamente (como já vimos) com o verbo “estar”; ou seja, que aquilo que pensa Descartes é, de momento, “que “está” pensando”.

+   Por conseguinte, o que é em realidade aquilo que lhe está presente como real a Descartes na sua apreensão primordial de realidade (ou no seu pensamento, como ele diz)?; não simplesmente “que ele pensa”, mas “que “realmente” ele “está” pensando”.

#   Mas deixemos o pensamento pensado (me cogitare) do cogito (já que, acerca dele, diz Descartes, pode-se perfeitamente enganar), e passemos ao seu cogito radical, ao seu pensamento pensante, ao seu “eu penso”.

+   Encontramo-nos exatamente com o mesmo: esse “eu penso”, pelo dito acima, é em realidade “eu “estou” pensando”.

+   Diz-nos Descartes: em intuição imediata (intuitus), “vejo” evidentemente (clara ac distincta perceptio) que efetivamente “isso é assim”: “penso!”

+   Pois bem, nada disso; aquilo que tem que nos dizer Descartes é: em movimento intelectivo mediado (logos), ““estou” vendo” evidentemente (em visão exigida) que aquilo que apreendo da minha própria realidade em apreensão de realidade “é “em realidade”” assim: em realidade ““estou realmente” pensando”.

#   Descartes pretendeu abrir um abismo insondável entre evidência e realidade; mas não existe tal abismo.

+   A evidência envolve formalmente o momento de realidade da coisa real, já atualizada como real em apreensão primordial de realidade, e exigindo agora ao logos, em virtude da sua atualidade campal nele, que veja o que é ela em realidade; justamente essa visão exigida pela realidade da coisa real na sua atualidade intelectiva campal é a essência da evidência.

+   Certamente há ilusões e erros; há evidências tidas por tais que resultam não sê-lo (falaremos delas no capítulo seguinte); mas isso não é devido ao presumível abismo entre “a” realidade e “a” evidência, mas à intelecção em “dualidade distanciada” (logos) de dois momentos de realidade: o “como real” da coisa real, já inteligido primordialmente, e aquilo que essa coisa real é “em realidade”.

+   A problematicidade da evidência não está em se a evidência nos leva ou não à realidade (já estamos instalados e retidos na realidade desde a apreensão primordial de realidade), mas em se a atualidade intelectiva campal da realidade, que nos exige a visão (evidência) do que é em realidade, consegue levar-nos ou não a afirmar aquilo que é em realidade “tal como ela se atualiza intelectivamente em realidade”.

 

 

2.     Falsidade da concepção da evidência de Husserl

 

a.   Segundo Husserl, a essência da evidência é a “plenitude ou implecção (enchimento)” segundo a qual o que inteligimos duma coisa está “plenamente” visto nela.

=   Os meus atos intencionais intelectivos têm um sentido que pode estar vazio da visão da coisa (intenção intelectiva com visão vazia), ou plenificado pela visão da coisa (intenção intelectiva de visão plenária).

=   Plenitude é “implecção” (Erfüllung) duma intenção intelectiva vazia por uma intenção intelectiva plena; quando isso acontece, a intenção intelectiva é “evidente”.

=   O princípio de todos os princípios evidentes é a redução de toda nóese intencional à intuição originária, ou seja, à implecção do intencional pelo intuído.

b.   Tudo isso é insustentável.

=   Isso, efetivamente, se refere, no melhor dos casos, só às evidências constituídas, não à evidência constituinte que as funda.

=   Pois bem, a evidência constituinte não consiste em que uma intenção intelectiva se faça evidente por implecção (quer dizer, que de intenção vazia se torne intenção plena), mas em que a intelecção do que é em realidade uma coisa real é evidente porque é uma visão exigida pela atualização campal dessa coisa real no logos.

=   O princípio dos princípios evidentes não é um caminho desde a claridade vazia até à claridade plena (impleção intuitiva), mas desde a atualização intelectiva campal duma coisa real até a intelecção do que é em realidade.

=   Evidência não é claridade, nem plenitude, nem plena claridade, nem nada parecido, mas “força de visão exigida”, “visão fortemente exigida”.

=   Toda a filosofia de Husserl se fundamenta na consciência e no ser como o radical; mas já vimos que o radical é intelecção e realidade.

 

 

 

C.   Crítica a algumas concepções falsas da articulação entre apreensão primordial de realidade (@intuição) e evidência (@logos e razão)

 

 

1.     Crítica à contraposição antinômica entre intuição e razão

 

a.   Crítica ao racionalismo (Leibniz , Hegel, etc.)

=   Exposição

#   A intuição (para nós apreensão primordial de realidade) certamente é rica, mas é um conhecimento turvo, confuso e problemático.

#   O conhecimento supremo é o conhecimento racional (logos-razão) que conduz às evidências conceituais.

#   Por isso, o grande sonho do racionalismo é chegar a apreender totalmente o real intuído, à força de determinações conceituais evidentes, por meio de predicados ao infinito.

=   Crítica

#   A intelecção conceitual jamais esgotará, à força de evidências conceituais, certas qualidades e matizes intuitivos; a riqueza do intuído escapa sempre a uma estrita evidência racional.

#   Uma evidência por mais exaustiva que for, será sempre e só “evidência”, nunca será a visão primordial da realidade.

#   A intuição não é conhecimento confuso, mas intelecção primordial do real.

+   Só pode ser considerada como conhecimento confuso, se escolhe-se a evidência racional como “o” cânon de intelecção.

+   Mas essa escolha não só é arbitrária, mas completamente errada: a razão não é a intelecção primordial; a intelecção primordial é a apreensão senciente primordial do real.

b.   Crítica do intuicionismo (Bergson, etc.)

=   Segundo todos os intuicionismos, a evidência não passa de ser uma intuição empobrecida.

=   Isso não é assim; a evidência não é intuição empobrecida, mas intuição expandida, coisa muito diferente.

#   A evidência é mais pobre em conteúdo que a intuição, em certo sentido, mas é imensamente superior em exatidão.

#   A intuição mais rica jamais constituirá a mínima exatidão que precisa a intelecção duma coisa “entre e em função de” outras.

#   A evidência tem o rigor próprio da exatidão: é intelecção constringidamente exigida pelo real.

c.    Crítica comum ao racionalismo e ao intuicionismo: não há contraposição antinômica alguma entre intuição e evidência.

=   O grave erro tanto do intuicionismo quanto do racionalismo consiste em valorar a riqueza ou pobreza da intuição e da evidência atendendo só ao conteúdo do real e não à sua formalidade de realidade.

=   Intuição e evidência são dois modos de intelecção do real: apreensão do real “como real”, e apreensão do real “em realidade”.

=   A apreensão primordial de realidade é a forma suprema de inteligir, isto é, da atualização do real na intelecção; é insuficiente, porque não nos faz inteligir o que é em realidade o já apreendido como real.

=   A apreensão lógica nos dá a intelecção do que é em realidade uma coisa real, mas exigencialmente determinada pela apreensão primordial de realidade.

 

 

2.     Crítica da unidade kantiana de intuição e razão

 

a.   Diz Kant: intuição e conceito não são dois modos de conhecimento, mas só duas “fontes dum conhecimento único”: o conhecimento do “objeto”.

=   A intuição nos dá (=dado) um monte de qualidades do objeto, ordenadas num marco espaço-temporal a priori; mas essas qualidades são “de” o objeto; não o objeto mesmo.

=   Para chegar ao objeto, temos que recorrer ao conceito (=categorias a priori); mas o conceito é só uma referência vazia ao objeto.

=   Portanto, a intuição sem o conceito é cega; o conceito sem a intuição é vazio.

=   A unidade do objeto (e do conhecimento) é constituída pela unidade da cegueira da intuição com a vacuidade do conceito: é a “unidade sintética” de ambos no objeto de conhecimento.

b.   Isto é insustentável.

=   Como toda a filosofia precedente, Kant recebe sem crítica a idéia da impressão sensível como mera afecção subjetiva sem o momento de impressão “de realidade”.

=   Portanto, ainda que a intuição não seja vidência de objetos, é vidência de realidade.

=   Tem mais: o conceito (que não é a priori) não é referência a um objeto, mas simples apreensão do que “seria” o real em realidade (irrealidade = realidade desrealizada).

=   Portanto, nem a intuição é cega, porque vê realidade, nem o conceito é vazio, porque está cheio de irrealidade, que é “realidade” desrealizada.

=   Finalmente, a unidade de ambos, à parte de não ser sintética, mas estrutural (como vamos dizer), não é conhecimento dum objeto, mas intelecção senciente duma realidade como real e em realidade.

#   A apreensão primordial de realidade é intelecção senciente das coisas reais na unidade do seu conteúdo de realidade e da sua formalidade de realidade.

#   Esta apreensão se expande em apreensão duma coisa entre e em função de outras (logos), quer dizer, na simples apreensão do que “seria em realidade” o real, e do que “é” em realidade o real.

#   Portanto, intuição e logos não constituem unidade de síntese, mas unidade estrutural de expansão exigida.

#   A evidência é justamente o caráter da intelecção do que é em realidade algo real exigida determinantemente pela atualização campal desse algo real no logos.

=   A filosofia de Kant, no seu ponto de arranque mesmo, é insustentável.


XVI

 

ESTRUTURA MEDIAL DO LOGOS SENCIENTE (2):

A VERDADE DO LOGOS

 

 

 

 

A.   Essência da verdade do logos

 

 

1.     A verdade do logos é essencialmente “coincidência” dinâmica do logos com a atualidade intelectiva campal do real.

 

a.   A verdade própria da apreensão primordial de realidade, da verdade real, como já vimos, consiste em que a realidade de algo real, na sua atualidade intelectiva na apreensão primordial de realidade, meramente se “ratifica” nela.

b.   Pois bem, a verdade própria do logos, quer dizer, da intelecção do que é em realidade algo real já apreendido como real em apreensão primordial de realidade, é essencialmente a “coincidência” do logos com aquilo que é em realidade esse algo real já apreendido como real em apreensão primordial de realidade e atualizado campalmente agora no logos.

c.    A verdade coincidencial do logos é essencialmente e constitutivamente dinâmica, como é essencialmente e constitutivamente dinâmico o logos.

=   A verdade real se tem ou não se tem.

=   A verdade do logos, no entanto, não é algo que se tem ou não se tem, mas algo que acontece, algo ao qual se chega em movimento intelectivo (dinamismo intelectivo).

 

 

2.     A verdade do logos acontece num “meio comum” ao logos e ao real, que é o campo de realidade.

 

a.   A filosofia subjetivista do final do século XIX busca um terceiro termo que “produza” a coincidência entre a consciência e a realidade; é a célebre idéia duma “ponte” entre a consciência e a realidade; pois bem, esta idéia é formalmente absurda; não há nenhuma necessidade de ponte, porque sim há distinção, mas não separação, entre a inteligência senciente e a realidade.

=   Efetivamente, desde a apreensão primordial de realidade, a inteligência senciente está retida e instalada na realidade, em virtude da comum atualidade de ambas.

=   A atualidade intelectiva da realidade no logos, quer dizer, a atualidade intelectiva campal do real, é uma atualidade “em distância” (na distância entre o real “como real” e o real “em realidade”); mas distância não equivale a “separação”.

b.   Por conseguinte, o meio comum em que acontece a coincidência dinâmica do logos com aquilo que é em realidade algo real apreendido primordialmente como real (a verdade do logos) não é um terceiro termo, mas um momento intrínseco comum ao real e à inteligência: o campo de realidade em que ambos são atuais em comum; o meio (não intermédio [=ponte]!), no qual coincidem dinamicamente a intelecção campal do real (logos) e o real primordialmente e campalmente atualizado, é justamente a sua atualidade comum no campo de realidade.

 

 

3.     Precisando mais, temos que dizer que essa coincidência dinâmica, na qual consiste a verdade do logos, acontece no momento campal da “verdade real”.

 

a.   A verdade real, a verdade da apreensão primordial de realidade, é mera ratificação nela do real como real em seus momentos individual, campal e mundanal.

b.   Isso quer dizer que, por seu momento campal, a verdade real está campalmente aberta à intelecção campal do real (=logos).

c.    Por conseguinte, dizer que a verdade do logos (=coincidência dinâmica do logos com a atualidade intelectiva campal e primordial do real) acontece no campo medial de realidade, equivale a dizer que essa verdade do logos acontece no meio do momento campal da verdade real, ou seja, no momento campal da verdade da apreensão primordial de realidade.

d.   Por isso, em contra do que sempre costuma se dizer, afirmar o que é em realidade algo real não consiste em afirmar a verdade desse algo real, e menos ainda a sua realidade, mas consiste em afirmar “em” a verdade real (“no meio de” a verdade real) o que é esse algo real em realidade.

 

 

 

B.   A verdade do logos é pluridirecional, polivalente e fásica.

 

 

1.     A verdade do logos é pluridirecional.

 

a.   A verdade do logos tem caráter “direcional” porque o movimento intelectivo (logos) se “dirige” no campo de realidade (meio) “desde” o ponto de partida já fixado (as coisas já apreendidas, entre e em função das quais o logos vai inteligir o que é em realidade algo real), “para” o ponto de chegada já fixado (o que é em realidade algo real).

b.   Agora bem, este caráter direcional da verdade do logos é pluridirecional, porque o movimento intelectivo não tem uma direção univocamente determinada, mas pode seguir uma “pluralidade de direções”.

=   Efetivamente, para inteligir o que é em realidade um homem, por exemplo, posso dirigir-me a uma pluralidade de direções, quer dizer, a muitas coisas reais já apreendidas; dentre elas, posso dirigir-me, por exemplo, às realidades afins ao homem na escala zoológica; dentro destas abre-se-me também uma pluralidade de direções, etc.

#   Posso ir na direção da fonação e afirmar que o homem é em realidade animal loqüente.

#   Posso ir na direção da pedestação e afirmar que o homem é em realidade animal bipedestante por excelência.

#   Posso ir na direção da agrupação e afirmar que o homem é em realidade animal social.

#   Etc.

=   Nesse feixe de direções me movo intelectivamente segundo opções livres minhas.

 

 

2.     A verdade do logos é polivalente.

 

a.   A verdade do logos, quer dizer, a coincidência dinâmica entre a intelecção do que é em realidade algo real e aquilo que é em realidade esse algo real, pode ter distinta valência ou qualidade, como vamos ver.

b.   A valência ou qualidade da verdade do logos acerca do real a determina a atualidade intelectiva campal do real apreendido primordialmente como real, que vamos chamar, com perfeito rigor, o “parecer” do real.

=   A atualidade intelectiva campal de algo real apreendido primordialmente como real, quer dizer, o estar presente em realidade esse algo real no logos, é o “parecer” desse algo real; não é parecer realidade, mas realidade em parecer, parecer de realidade.

#   Os idealismos empiristas e racionalistas dizem que o apreendido em impressão é um mero parecer da coisa, e que só a razão é aquela que determina aquilo que é a coisa.

#   Isso é falso.

+   Primeiro, porque os idealismos nunca nos dão um conceito estrito de parecer.

+   Segundo, porque o apreendido em apreensão primordial “de realidade” é meramente realidade e não tem nem pode ter realidade em parecer.

+   Terceiro, porque só no logos há um radical distanciamento entre a realidade como real e a realidade em parecer, quer dizer, a realidade em realidade.

+   Quarto, porque parecer não é “aparência”, como pensam os idealismos empirista e racionalista; seria absurdo; o parecer é o modo de atualidade intelectiva do real em realidade; nessa atualidade intelectiva sua, o real é real e ao mesmo tempo é realidade em realidade, quer dizer, parece.

=   O parecer do real, quer dizer, a atualidade de algo real em realidade no logos, determina a valência ou qualidade da verdade do logos, quer dizer, da coincidência dinâmica das simples apreensões e conseguintes afirmações com aquilo que esse algo real é em realidade.

c.    Vejamos quais são essas distintas valências ou qualidades da verdade do logos.

=   Paridade e disparidade.

#   As simples apreensões e conseguintes afirmações podem ter “paridade” ou “disparidade” com aquilo que algo real é em realidade.

+   Por exemplo, se se trata de afirmar quantas asas tem em realidade o canário, e afirmo: “o canário tem em realidade “amarelo” asas”, afirmei um verdadeiro “disparate”, porque a linha qualitativa (amarelo) da minha afirmação está em “disparidade” de direção intelectiva com a linha quantitativa (quantas) que se trata de afirmar.

+   No entanto, se se trata de afirmar quantas asas tem em realidade o canário, e afirmo: “o canário tem em realidade “43” asas”, afirmei um verdadeiro erro (já o veremos), mas não um verdadeiro “disparate”, porque a linha quantitativa (43) da minha afirmação está em “paridade” de direção intelectiva com a linha quantitativa (quantas) que se trata de afirmar.

#   Toda simples apreensão “acusa” uma linha direcional da atualidade intelectiva campal do real, quer dizer, do parecer do real; isso são exactamente as “categorias” (acusações) do real em realidade.

+   As categorias não são os gêneros supremos do “que é” (Aristóteles), nem os conceitos puros a priori do juízo (Kant).

+   As categorias são as linhas direcionais da atualidade no logos do real em realidade, do parecer do real, segundo as suas diversas dimensões.

=   Sentido, sem-sentido, contra-sentido.

#   As simples apreensões e conseguintes afirmações, ademais de ter “paridade” com aquilo que algo real é em realidade, podem ter “sentido” com aquilo que algo real é em realidade, podem não ter sentido (“sem-sentido”) com aquilo que algo real é em realidade e podem ir contra o sentido (“contra-sentido”) daquilo que algo real é em realidade.

#   Alguns exemplos

+   Tem verdadeiro “sentido” (ainda que seja um erro, como veremos) afirmar que em realidade o canário agora tem duas asas, mas primitivamente tinha quatro.

+   É um verdadeiro “contra-sentido” afirmar que em realidade o canário não tem asas, mas tem duas.

+   É um verdadeiro “sem-sentido” afirmar que em realidade este canário tem duas asas, mas que, às vezes, pode chegar a ter até duas asas.

=   Verdade e erro.

#   As minhas simples apreensões e conseguintes afirmações, ademais de ter paridade e sentido com aquilo que algo real é em realidade, podem fundamentar aquilo que a mim me parece que é em realidade algo real naquilo que parece esse algo real, quer dizer, na sua atualidade intelectiva campal; nesse caso o logos é verdadeiramente verdadeiro (“verdade”).

#   As minhas simples apreensões e conseguintes afirmações, apesar de terem paridade e sentido com aquilo que algo real é em realidade, podem fundamentar aquilo que parece esse algo real, quer dizer, a sua atualidade intelectiva campal, naquilo que a mim me parece que é em realidade esse algo real; nesse caso o logos é verdadeiramente errado (“erro”).

+   Todo erro é um errar, quer dizer, um des-viar-se “em” a via da verdade; por isso o erro é verdadeiro erro, porque consiste em falsificar a via da verdade; daí que verdade e erro do logos não funcionem ex aequo, como explicaremos de novo em seguida.

+   Atenção que um logos pode ser só “materialmente” verdadeiro, por assim dizer; esse logos é também um erro, algo verdadeiramente errado, porque fundamenta aquilo que parece algo real, quer dizer, a sua atualidade intelectiva campal, naquilo que parece-nos que é em realidade esse algo real, ainda que resulte que acidentalmente coincidam aquilo que parece-nos que é esse algo em realidade com aquilo que parece esse algo real; por exemplo:

-   Afirmo rotundamente que Santa Teresa de Jesus em realidade nasceu em Ávila (porque [parece-me que em realidade] é alemã e [parece-me que em realidade] todos os alemães nasceram em Ávila).

-   Afirmo categoricamente que na Terra há cinco continentes (porque [parece-me que em realidade] os continentes da Terra são, por um lado, Marte e Júpiter e, por outro, Madrid e Barcelona, e [parece-me que em realidade] dois mais dois são cinco).

#   O suposto de grande parte da filosofia moderna é que verdade e erro funcionam ex aequo, quer dizer, que verdade e erro são duas qualidades equivalentes do logos que em si é neutro a respeito delas, e que o erro é mera carência de verdade; de tudo quanto foi dito se desprende que isto é radicalmente falso.

+   Primeiro, porque, prévia à verdade do logos e fundando-a, está a verdade real da apreensão primordial de realidade na qual é impossível o erro, como vimos.

+   Segundo, porque, como dissemos antes, o erro no logos só é possível fundado na verdade do logos, porque o erro (=verdadeiro erro) consiste precisamente em falsificar a verdade, em verdade falsificada.

+   Terceiro, porque o erro não é carência de verdade, mas positiva privação de verdade; se o erro fosse mera carência de verdade, a verdade seria mera carência de erro; ou seja, algo tão grotesco como se ser vidente consistisse em carecer de cegueira...

#   Pelos mesmos motivos, é insustentável a idéia hegeliana do erro como “verdade finita”; é que, ademais, ainda que é certo que o erro só é possível numa inteligência finita como a humana, também é certo que a verdade do logos só é possível numa inteligência finita como a humana!; já dissemos que em Deus não há nenhum logos, no sentido de movimento intelectivo, e, portanto, nele não há nenhum logos verdadeiro, nesse sentido.

 

 

3.     A verdade do logos é fásica.

 

a.   Insuficiência, a respeito, da concepção clássica da verdade do logos

=   Para a concepção clássica, por exemplo, a afirmação “a neve é branca” afirma o predicado “brancura” (conceito) do sujeito “a neve” (conceito), e é verdadeira porque a qualidade física “brancura” se encontra efetivamente na física “neve”.

=   Pois bem, tudo isso não é assim.

#   A afirmação não é uma mera “frase” afirmativa, mas uma “intelecção” afirmativa; a verdade da afirmação intelectiva, portanto, não é a verdade duma frase, mas a verdade dum modo de “intelecção”.

#   Assim pois, no exemplo, a verdade da intelecção afirmativa “a neve é branca”, não concerne a que fisicamente a neve “tenha” brancura, mas a “como chega a ser verdade” isso, a “como chega a “acontecer”” a verdade intelectiva de que a neve tenha brancura.

#   Efetivamente, a verdade do logos não é algo que “está aí” e a inteligência a detecta e a afirma (como pensa classicamente a filosofia); a verdade do logos é constitutivamente algo que “acontece em movimento intelectivo”.

+   A brancura sim que está aí na neve; a brancura é algo “tido” fisicamente pela neve.

+   Mas a verdade da intelecção afirmativa “a neve é [em realidade] branca” não está aí, não é algo tido pela inteligência, mas algo que acontece na intelecção do que é a neve em realidade.

-   A verdade do logos é o acontecer em coincidência dinâmica da atualidade intelectiva campal da neve real e da intelecção do que é a neve real em realidade.

-   Nesta coincidência dinâmica, o real, ao atualizar intelectivamente aquilo que é em realidade, ao atualizar-se em parecer, dá a sua verdade ao logos, verdadea no logos, determinando a verdadeira verdade ou o verdadeiro erro dele, etc.

#   E o acontecer da verdade do logos tem duas fases distintas como vamos ver a continuação.

b.   As duas fases da verdade do logos: autenticidade e conformidade.

=   A primeira fase da verdade do logos é a verdade de “o afirmado” no logos, quer dizer, da afirmada unidade (positiva, propositiva ou predicativa) duma simples apreensão com a atualidade intelectiva campal de algo real, e consiste em “autenticidade (ou falsidade)”.

#   Se a simples apreensão (conceito, ficto, perceito) que se afirma daquilo que é em realidade algo real coincide positivamente com a atualidade intelectiva campal desse algo real, essa simples apreensão é “autêntica”; pelo contrário, se a simples apreensão (conceito, ficto, perceito) que se afirma daquilo que é em realidade algo real está privada de coincidência positiva com a atualidade intelectiva campal desse algo real, essa simples apreensão é “falsa”.

#   Vejamos, por exemplo, este logos: “este líquido é [em realidade] vinho”.

+   Se a simples apreensão “vinho” que é afirmada daquilo que é em realidade este líquido coincide positivamente com a atualidade intelectiva campal deste líquido, o “vinho” afirmado é “vinho autêntico”, quer dizer, é “vinho” unido autenticamente com a atualidade intelectiva campal deste líquido.

+   Se a simples apreensão “vinho” que é afirmada daquilo que é em realidade este líquido está privada de positiva coincidência com a atualidade intelectiva campal deste líquido, o “vinho” afirmado é “vinho falso”, quer dizer, é “vinho” unido falsamente com a atualidade intelectiva campal deste líquido.

+   Atenção que a autenticidade ou a falsidade não concernem à realidade de “este líquido” (a nua realidade deste líquido é aquilo que é e pronto; não tem nenhuma autenticidade ou falsidade nem tem porque tê-las), mas concernem à simples apreensão “vinho” enquanto unida com autenticidade ou falsidade com a atualidade intelectiva campal deste líquido, porque coincide positivamente ou está privada de coincidência positiva com a atualidade intelectiva campal deste líquido.

+   Dito de outro modo: a atualidade campal deste líquido no logos, a sua atualidade intelectiva daquilo que é em realidade, dá a sua verdade, verdadea, autenticando a simples apreensão “vinho”, porque coincide positivamente com ela.

#   A falsidade (positiva privação de autenticidade) nesta primeira fase da verdade do logos consiste no seguinte.

-    Pode acontecer que a simples apreensão coincida positivamente com alguns (só alguns) dos caracteres da atualidade intelectiva campal da coisa real, quer dizer, com alguns dos caracteres do parecer dessa coisa real.

-    Nesse caso, o parecer da coisa real é também “aparência”, quer dizer, aparenta coincidir com a simples apreensão.

-    Pois bem, se tomo a aparência da coisa real como o parecer dela, constituo o falso, a falsidade da unidade da simples apreensão com o parecer da coisa real, quer dizer, privo positivamente de autenticidade à simples apreensão na sua unidade com o parecer da coisa real.

-    Por exemplo, se tomo por parecer vinho aquilo que só aparenta ser vinho, privo positivamente de autenticidade à simples apreensão “vinho” na sua unidade com o parecer deste líquido: constituí em “falso vinho” a atualidade intelectiva campal deste líquido.

=   A segunda fase da verdade do logos é a verdade de “a afirmação” do logos, quer dizer, da afirmação de que a unidade (positiva, propositiva ou predicativa) duma simples apreensão com a atualidade intelectiva campal de algo real é aquilo que é em realidade algo real apreendido como real em apreensão primordial de realidade, e consiste em “conformidade (ou desconformidade)”.

#   A verdade do logos não consiste só na verdade do afirmado no logos, quer dizer, em unir autenticamente uma simples apreensão com a atualização intelectiva campal de algo real (primeira fase da verdade do logos), mas na verdade da afirmação do logos, quer dizer, da afirmação de que essa unidade autêntica é aquilo que é em realidade a coisa apreendida como real em apreensão primordial de realidade (segunda fase da verdade do logos).

#   Por exemplo: a verdade do meu logos “este líquido é [em realidade] vinho” não consiste só em que aquilo que se me atualiza campalmente é vinho “autêntico” (em que é autenticamente vinho aquilo que estou apreendendo campalmente) mas, sobretudo, em que essa autenticidade de vinho, quer dizer, essa positiva coincidência da simples apreensão “vinho” com aquilo que se me atualiza em apreensão campal, é conforme com aquilo que é em realidade a coisa real que estou apreendendo primordialmente como real, quer dizer, com aquilo que é em realidade a coisa que estou vendo e cheirando como real.

#   Dito de outro modo: na fase da verdade do logos como autenticidade, trata-se da coincidência positiva duma simples apreensão com a atualidade intelectiva campal de algo; na fase da verdade do logos como conformidade, trata-se da coincidência positiva dessa primeiracoincidência com aquilo que é em realidade a coisa real atualizada primordialmente como real.

#   Por isso, a verdade do logos como conformidade não consiste na conformidade duma intelecção “minha” com uma coisa que anda “por sua conta” aí pelo cosmos (seria uma conformidade material extremamente problemática), mas consiste na conformidade da minha intelecção campal de algo real que se me atualiza campalmente com aquilo que é em realidade esse algo real que se me atualiza primordialmente como real.

#   Na segunda fase da verdade do logos, o logos é verdadeiro quando é conforme com aquilo que é em realidade a coisa real atualizada primordialmente como real; o logos é verdadeiro erro quando é desconforme, quer dizer, quando está privado positivamente de conformidade com aquilo que é em realidade a coisa real atualizada primordialmente como real, quando afirma o que é em realidade algo real desconformemente com aquilo que é em realidade esse algo real apreendido primordialmente como real.

#   Na verdade do logos, é essencial distinguir com rigor entre conformidade e adequação, para evitar nefastas confusões.

+   Sempre que há conformidade entre o logos daquilo que algo é em realidade com aquilo que é em realidade esse algo apreendido primordialmente como real, esse logos é verdade; por exemplo, se afirmo que aquilo que estou vendo é uma folha de papel escrita.

+   O logos verdadeiro do que é algo real em realidade tem adequação, ademais de conformidade, quando a sua conformidade é de tal qualidade que cobre totalmente aquilo que é em realidade esse algo real apreendido primordialmente; por exemplo, se afirmo que o real que estou vendo é em realidade uma folha de papel escrita, de tamanho A4, escrita pelos dois lados, com tipo de letra New Times 12, etc., etc., até o infinito.

+   É claro que a aproximação do logos já verdadeiro (que já tem conformidade) à adequação, é gradual e progressiva.

+   É mais claro ainda que a adequação completa do logos é um labor inacabável e irrealizável exaustivamente; a completa adequação seguirá sendo sempre para o logos uma meta longínqua, ainda que esteja cada vez mais próxima.

+   Neste sentido, toda verdade do logos é intrinsecamente e estruturalmente uma aproximação ao que teria que ser uma verdade adequada, quer dizer, à verdade real (ao estilo da aproximação de duas paralelas assíntotas); é a obra inteira do saber humano: aproximar-se intelectivamente da realidade.

 

 

 

C.   Algumas considerações essenciais sobre a verdade do logos

 

 

1.     O logos verdadeiro não é logos “objetivo”, porque o logos não é intelecção campal de objetos, mas de realidades.

 

 

2.     Em contra daquilo que pensa a filosofia clássica, a verdade do logos não se funda na verdade transcendente das coisas reais, mas na verdade transcendental delas.

 

a.   Exposição

=   A filosofia clássica, chama de “verdade ontológica” ou metafísica o caráter de verdade que têm as coisas em virtude de serem conformes com [a idéia (logos) delas em] a inteligência divina.

=   Daí que considere que a verdade intelectiva do logos se funda nessa verdade ontológica ou metafísica das coisas.

b.   Isso não é assim.

=   Em primeiro lugar, em rigor, essa verdade das coisas, que a filosofia clássica chama de “verdade ontológica ou metafísica”, teria que ser chamada exatamente de “verdade teológica ou transcendente”.

=   Em segundo lugar, a verdade intelectiva do logos não se funda nessa verdade teológica ou transcendente das coisas reais, quer dizer, na sua referência à inteligência divina, mas no verum transcendental, quer dizer, no caráter de verum que ganham as coisas reais ao atualizar-se na inteligência senciente humana.

=   Por último, a verdade intelectiva do logos não se funda na verdade do logos divino acerca das coisas, porque Deus não tem nenhum logos (no sentido de movimento intelectivo) acerca de nada; o logos como intelecção em movimento é algo exclusivo da intelecção animal (senciente) humana.

 

 

3.     Discernimento entre verdade e erro na verdade do logos

 

a.   Se esse discernimento consistisse em discernir a autenticidade-conformidade (ou falsidade-desconformidade) dum logos “meu” com uma coisa real que anda solta por aí no cosmos, por sua conta, (nua realidade), esse discernimento seria impossível, porque ficaria fechado num círculo de logos sem saída.

b.   Mas isso não é assim; é perfeitamente possível discernir a autenticidade-conformidade (ou falsidade-desconformidade) do logos.

=   Efetivamente, o real já intelectivamente atual como real em apreensão primordial de realidade, se atualiza campalmente (atualiza o que é em realidade) no logos cuja verdade ou erro queremos discernir.

=   Pois bem, como o real atualizado na intelecção (seja primordial seja campal) tem caráter de prius, quer dizer, de anterioridade a respeito da sua atualidade intelectiva, o real submerge inexoravelmente a intelecção na realidade do real; por conseguinte, é perfeitamente possível discernir a autenticidade-conformidade (ou falsidade-desconformidade) do logos.

=   Daí que o real, anterior (prius) à sua própria atualidade intelectiva campal, sempre “exija” com força ao logos que examine e reexamine, etc., a autenticidade-conformidade (ou falsidade-desconformidade) da sua “visão” acerca do que é em realidade o real; a evidência do real, quer dizer, a “exigência” do real de que o logos “veja” o que é em realidade algo real, é exigência de “vê-lo com verdade”.

c.    Aí, e não em outra coisa, radica a unidade entre a evidência e a verdade do logos.

=   Essa unidade não consiste em que haja uns primeiros logos “imediatamente” evidentes e, portanto, verdadeiros por si mesmos (como pensou sempre a filosofia), porque já vimos que não há nenhuma “evidência imediata”.

=   Esses chamados de logos primeiros recebem a sua verdade evidente do mesmo que todos os logos: do real que, ao ser anterior (prius) à sua própria atualidade intelectiva campal, exige que o logos “veja com verdade” o que é em realidade o real.

 

 

4.     A verdade do logos tem diversos modos.

 

a.   Crítica dos tipos tradicionais da verdade do logos

=   Tradicionalmente e usualmente se pensa o seguinte.

#   Há umas verdades primeiras imediatamente evidentes: são aquelas nas quais se vê com um mero olhar da inteligência (simplex mentis inspectio) a conexão do predicado com o sujeito.

#   O resto são verdades mediatamente evidentes, quer dizer, aquelas nas quais a conexão predicado-sujeito se funda num terceiro termo; se esse terceiro termo é a razão, temos as “verdades de razão”; se esse terceiro termo é a experiência, temos as “verdades de fato”.

=   Tudo isso é inaceitável.

#   Primeiro, porque esses presumíveis tipos de verdade não são modos da verdade do logos enquanto verdade, mas modos da verdade do logos enquanto concernente aos diversos tipos de realidade que se atualizam nele.

+   Já vimos no capítulo anterior que todas as evidências enquanto evidências têm o mesmo caráter de necessidade necessitante; daí que a verdade do logos enquanto verdade tenha também sempre caráter de necessidade necessitante.

+   Por isso, as chamadas verdades de fato enquanto verdades são tão necessitantemente necessárias quanto as chamadas verdades de razão mais contundentes.

+   Por exemplo, que este livro esteja em cima desta mesa, é uma realidade contingente (podia estar em outro lugar); mas se este livro está presente na minha apreensão estando em cima desta mesa, tão necessariamente necessitante é verdade a minha afirmação de que este livro está em cima desta mesa, como que o homem é um animal, como que dois mais dois são quatro, e como que nada pode ser A e não-A ao mesmo tempo no mesmo respeito formal.

#   Segundo, dentro das chamadas verdades de fato (porque se referem a fatos), há que distinguir com rigor entre verdades fáticas e verdades fatuais.

+   Verdades fáticas: são as que se referem aos meros fatos; por exemplo, a verdade da afirmação de que este livro está em cima desta mesa.

+   Verdades fatuais.

-   São as que concernem ao momento estrutural do real em virtude do qual é necessariamente necessário que o real tenha de fato determinadas notas; por exemplo, o momento estrutural de espaçosidade deste livro, em virtude do qual este livro tem que estar necessariamente em algum lugar.

-   Em virtude disso, as verdades fatuais, não são necessidades “absolutas” do real, mas são mais do que meros fatos, porque se referem ao âmbito no qual é realidade de fato todo fato.

-   Assim, por exemplo, afirmar que este livro está em cima desta mesa, é uma verdade fática (se está no chão, terei que afirmar com verdade que está no chão e seria um erro afirmar que está em cima da mesa); mas afirmar que este livro está em algum lugar, é uma verdade fatual.

#   Terceiro, como já dissemos, toda verdade evidente é mediada, acontece no meio campal de realidade; nesse sentido, não há verdades evidentes imediatas.

b.   Os modos de verdade do logos enquanto verdade, quer dizer, os modos de coincidência da intelecção do que é em realidade algo real (=logos) com aquilo que é em realidade esse algo real, são dois, correspondentes às duas fases da verdade do logos.

=   Autenticação: é o modo de verdade do logos que consiste em que o real atualizado intelectivamente no logos verdadea, dá a sua verdade ao logos, autenticando, dando autenticidade à simples apreensão na sua unidade com a atualidade intelectiva campal do real.

=   Veriditância: é o modo de verdade do logos que consiste em que o real atualizado intelectivamente na apreensão primordial de realidade e no logos, verdadea, dá a sua verdade ao logos, veriditando-lhe, ditando-lhe a sua verdade acerca do que é em realidade o real atualizado primordialmente como real.


XVII

 

ESSÊNCIA DA RAZÃO SENCIENTE

 

 

 

 

A.   A razão senciente é a intelecção mundanal do real, quer dizer, a intelecção do real na realidade, e consiste em marcha intelectiva em busca de realidade.

 

 

 

1.     A razão senciente é o segundo modo ulterior de intelecção senciente: a intelecção mundanal do real.

 

a.   Ao aprender algo real em apreensão primordial de realidade, inteligimos esse algo como real, como campal (aberto respectivamente a todo o real já apreendido [campo de realidade] e como mundanal (aberto respectivamente a todo o real, já apreendido ou não [mundo da realidade])

b.   Ao apreender algo real em intelecção campal (=logos) inteligimos esse algo real entre e em função do campo de realidade, ou seja, entre e em função de outras coisas reais já apreendidas, quer dizer, inteligimos o que é “em realidade” esse algo real.

c.    Pois bem, a razão senciente é o terceiro modo de inteligir algo real, já apreendido em apreensão primordial de realidade e em intelecção campal: apreendê-lo no mundo da realidade, quer dizer, na unidade de todo o real, já apreendido ou não; a razão senciente é a intelecção mundanal do real, a intelecção daquilo que é o real “na realidade”.

 

 

2.     A razão senciente é marcha intelectiva em busca de realidade.

 

a.   Como vimos, o logos senciente é “movimento intelectivo”, quer dizer, é a intelecção em movimento, dentro do campo de realidade, daquilo que é em realidade (=no campo de realidade) o real; pois bem, a razão senciente é “marcha intelectiva”, quer dizer, é a intelecção em marcha, no mundo da realidade, daquilo que é na realidade (=no mundo da realidade) o real.

b.   A razão senciente, a marcha intelectiva, é ““busca” intelectiva de realidade”.

=   A marcha intelectiva, que é a razão senciente, parte “desde” a grande riqueza de todo o real já inteligido em apreensão primordial de realidade e em logos senciente.

=   A marcha intelectiva, que é a razão senciente, marcha “para” a ampliação do campo de realidade, quer dizer, marcha em busca (intellectus quaerens) de mais realidade, ou seja, de coisas reais ainda não inteligidas (cfr. explorações geográficas, etc., ou mediante sofisticados aparelhos como microscópios, telescópios, radioscópios, sondas, etc.), e de dimensões novas das coisas reais já inteligidas (cfr. todas as construções teóricas produzidas pela ciência e pela metafísica).

=   A marcha intelectiva, que é a razão senciente, marcha “no mundo” sentido da realidade, quer dizer, no campo de realidade enquanto aberto respectivamente também ao real não sentido, para inteligir aquilo que é o real na realidade.

=   Na sua marcha intelectiva, a razão senciente trata de inteligir aquilo que é o real na realidade, tomando como “mensura” intelectiva o mundo sentido da realidade, quer dizer, o campo de realidade enquanto aberto respectivamente também ao real não sentido.

 

 

 

B.   A marcha intelectiva em que a razão senciente consiste é atividade intelectiva ou “pensar”

 

 

1.     Não é o mesmo ação que estar em ação e que atividade

 

a.   Ação é a execução dum ato.

b.   Estar em ação é estar executando de maneira prolongada e sustenida um ato, que já “tem” o seu conteúdo formal, mas que vai desenvolvendo-o até torná-lo pleno; por exemplo: estar vendo, estar ouvindo, estar comendo, etc.

c.    Atividade é um modo de estar em acção, quer dizer, de estar executando de maneira prolongada e sustenida um ato que “não tem” ainda o seu conteúdo formal, mas que se debate, de forma mais ou menos contínua e continuada, para “conseguir ter” o seu conteúdo formal; por exemplo: estar olhando dum lado a outro para encontrar alguém.

 

 

2.     A marcha intelectiva da razão é atividade intelectiva ou “pensar”

 

a.   A marcha intelectiva da razão senciente é estritamente atividade: é atividade intelectiva ou “pensar”.

b.   O conteúdo formal próprio do pensar é inteligir o real na realidade, quer dizer, pensar aquilo que são na realidade as coisas reais, e pensar o que é na realidade aquilo que se vai fazer ou aquilo que há que fazer.

 

 

3.     Momentos próprios do pensar

 

a.   Pensar é sempre “buscar o real “além” do real já apreendido como real e em realidade”.

=   Não se trata simplesmente de buscar outras coisas (isto o faz também o mero animal e muito bem, por certo; pense-se na necessidade dum bom cachorro buscador que têm os caçadores...), mas de buscar outras coisas “reais” ou outras dimensões “reais” das coisas reais.

=   Há algumas direções do real “além”, buscadas pelo pensar, que têm uma importância especial.

#   O real além no sentido do real “fora” do real aquém.

#   O real além no sentido do real “notificante”, notificado pelo real aquém.

#   O real além no sentido do real “para dentro” do real aquém.

#   O real além no sentido do real “desconhecido”; aqui o pensar não sabe sequer para onde o dirige o real aquém.

b.   O pensar, como não tem em princípio o seu conteúdo formal, mas trata ativamente de chegar a tê-lo, é uma intelecção “incoada” que abre diversas vias intelectivas possíveis, inicialmente muito próximas, mas que podem conduzir a intelecções muito díspares e inclusive incompatíveis entre si.

c.    O pensar ou atividade intelectiva é ativado “pela realidade” já inteligida em apreensão primordial de realidade como real e como campal, e, sobretudo, como mundanal, quer dizer, como respectivamente aberta ao mundo da realidade.

d.   A realidade já inteligida na sua abertura mundanal, enquanto ativante do pensar, é exatamente aquilo que se denomina “dado”, constituído pela unidade dos seus dois momentos de “dado-de” e  de “dado-para”.

=   Segundo Leibniz e Kant, “dado” é só “dado-para” um problema, “dado-para” pensar; Cohen o expressa assim: o dado (das Gegebene) é o proposto (das Aufgegebene).

=   Pois bem, isto é radicalmente insuficiente.

#   O racionalismo não repara no dado como “dado-de”; no entanto, o dado, antes de ser dado-para o pensar, e precisamente para poder sê-lo, é “dado-de” realidade; dado é primariamente a realidade mesma enquanto dada.

#   Ademais, o racionalismo tem uma idéia falsa do “dado-para”; efetivamente, o dado-para não é primariamente dado-para um problema ou dado-para o pensar, mas um momento do real atualizado “em para” na apreensão primordial de realidade; só porque o real é “real em para”, pode ser e é, ulteriormente, dado-para um problema.

e.    A unidade intrínseca do dado (dado-de e dado-para) se expressa com toda precisão na frase: “as coisas reais dão que pensar”; o real dando que pensar é justamente aquilo que ativa a atividade intelectiva, quer dizer, o pensar.

f.     Quatro observações essenciais acerca do pensar enquanto ativado pelo real que dá que pensar.

=   A única intelecção do real que é formalmente atividade intelectiva é o pensar da razão senciente; nem a apreensão primordial de realidade nem o logos senciente consistem em atividade intelectiva alguma.

=   Em virtude disso, é claro que o pensar não é o modo primário de intelecção (de olho em Descartes e nos sócios dele!)

=   O pensar, a atividade intelectiva, não é uma atividade espontânea, quer dizer, não brota de si mesma.

#   Leibniz e Kant nos dizem que o pensar é uma atividade espontânea, diferentemente da sensibilidade que é meramente receptiva.

#   Pois bem, isto é duplamente falso.

+   A sensibilidade humana não consiste em mera receptividade, quer dizer, em mero receber afecções, mas consiste no físico estar presentes impressivamente nela as coisas “como reais”; a sensibilidade não é pura sensibilidade, mas sensibilidade intelectiva, aliás, inteligência senciente!

+   O pensar não é uma atividade espontânea: o pensar é ativado intelectivamente pelas coisas reais que nos dão o ter que pensar aquilo que são na realidade.

=   A possibilidade e a necessidade do pensar radicam-se na apreensão primordial do real enquanto respectivamente aberto ao mundo da realidade; daí que as puras inteligências nem podem nem precisam pensar; só pode e precisa pensar a magnífica, mas animal inteligência humana.


XVIII

 

UNIDADE DA RAZÃO E DA REALIDADE

 

 

 

 

A.   A unidade da razão e da realidade vista desde a razão

 

 

 

1.     A razão é a intelecção mensurante e inquirinte do real em profundidade.

 

a.   A razão é a intelecção do real “em profundidade”.

=   Como já dissemos, na apreensão primordial de realidade o real está presente como “real em para” remetente ao mundo da realidade “além” do campo de realidade; em virtude disso, a inteligência senciente, no seu modo de razão senciente, é remitida e lançada a marchar intelectivamente em busca do real “além” do real já apreendido como real e em realidade.

=   Mas isso quer dizer que, ao buscar em marcha intelectiva o real “além”, a razão não busca algo assim como o nada, como uma espécie de vácuo de realidade, mas algo que já está apreendido como real, ainda que só seja como termo ao qual aponta e remete o real “aquém” apreendido como um para remetente.

=   Com outras palavras: o real “além” que a razão busca em marcha intelectiva é já algo real precisamente “por” ser o real “aquém” aquilo que é: algo real em para remetente.

=   Em virtude disso, o modo de intelecção do real que chamamos de “razão”, quer dizer, a intelecção do real “além”, consiste exatamente em inteligir “aquilo que é em profundidade o real “aquém””; ou seja, inteligir o real “além” é ir intelectivamente ao profundo do real “aquém”.

=   O real além que busca intelectivamente a razão, quer dizer, o profundo do real aquém, pode resultar ser simplesmente o interior profundo do real aquém, ou resultar ser realidades novas de muitos tipos:

#   Uma realidade teoreticamente concebida; por exemplo, os reais fótons ou ondas eletromagnéticas constituem o profundo das cores reais.

#   Uma realidade livremente construída em ficção literária ou em realização artística; por exemplo, o conteúdo de realidade em ficção duma novela ou o conteúdo de realidade em plasmação artística constituem o profundo forjado e plasmado do real que dá que pensar.

#   Etc.

=   O real além que busca a razão como o “pro-fundo” do real aquém, é nem mais nem menos que o “funda-mento” mundanal do real campal.

b.   A razão é a intelecção “mensurante” do real em profundidade.

=   Já dissemos que a razão, que busca o real “além”, quer dizer, o profundo do real “aquém”, o fundamento do real aquém, busca-o marchando intelectivamente “no mundo” sentido da realidade, quer dizer, no campo de realidade enquanto aberto respectivamente também ao real não sentido.

=   Em virtude disso, a razão, para inteligir aquilo que é o real além, quer dizer, aquilo que é o profundo do real aquém, ou seja, o que é o real na realidade, não tem mais remédio que tomar, como “mensura” intelectiva da di-“mensão” profunda do real, do fundamento do real aquém, a realidade já apreendida como real e em realidade, quer dizer, o campo de realidade, ou seja, o mundo “sentido” da realidade.

=   Com outras palavras, o “princípio” com o qual a razão “mensura” intelectivamente aquilo que é o real na sua “dimensão profunda”, aquilo que é o real na realidade, é o campo de realidade remitentemente aberto ao mundo da realidade.

=   Isso quer dizer que o campo de realidade, que é o “meio” intelectivo no qual o logos intelige aquilo que é o real em realidade, é agora o “princípio mensurante” intelectivo com o qual a razão intelige aquilo que é o real na realidade.

=   Para entender a diferente função intelectiva que tem o campo de realidade no logos e na razão, voltemos à comparação da luminária e do campo de luminosidade que gera.

#   O logos intelige aquilo que é o real “em realidade”, quer dizer, no “meio” do campo de realidade (no meio das coisas reais já apreendidas), ou seja, como vendo as coisas à luz da luminosidade do campo de luminosidade que elas geram.

#   A razão intelige aquilo que é o real “em “a” realidade”, quer dizer, mensurando a dimensão profunda dele tomando como “princípio mensurante” o campo de realidade na sua fonte mesma, ou seja, como vendo as coisas à luz da fonte mesma da luminosidade do campo de luminosidade que elas geram.

=   Para esclarecer aquilo que estamos dizendo, vejamos dois exemplos de como a razão toma o campo de realidade (as coisas reais já apreendidas como reais e em realidade) como “princípio mensurante” da sua intelecção da dimensão profunda do real, tanto se esta intelecção desemboca no descobrimento de realidades novas (primeiro exemplo), como se desemboca no descobrimento de modos mais profundos da realidade já apreendida (segundo exemplo).

#   Primeiro exemplo

+   Em princípio, considerava-se que todas coisas materiais eram em realidade “corpos”.

+   A ciência empreendeu a sua marcha intelectiva para inteligir o real material em profundidade (o real além do campo) e a desenvolveu durante séculos, com o metro, com o princípio mensurante do campo de realidade, quer dizer, com aquilo que se considerava que era em realidade a realidade das coisas materiais: “corpo”.

+   Desse modo a física ondulatória chegou a inteligir que não todas as coisas reais materiais podiam ser mensuradas como corpos; assim descobriu coisas materiais que não são corpos mas “ondas”, e de tipos diversos.

+   A partir daí, a ciência reempreendeu a sua marcha intelectiva para inteligir o real material em profundidade (o real além do campo) com dois princípios mensurantes: corpo e onda.

+   Desse modo a física quântica chegou a inteligir que não todas as coisas materiais “além” são corpos ou ondas, e introduziu um terceiro princípio mensurante do real material em profundidade: as partículas elementares que são matéria, mas que nem são corpúsculos nem são ondas clássicas.

#   Segundo exemplo

+   O princípio mensurante da marcha intelectiva além do campo de realidade foi durante séculos “coisa”: ser real era ser coisa.

+   Uma intelecção racional mais profunda intelige que não todo o real, por exemplo, os homens, encaixam em ser meras coisas; pode-se ser real também sendo “pessoa”.

+   Etc.

=   Do dito se desprende que a intelecção racional é uma livre criação.

#   A razão é a intelecção mundanal do real, quer dizer, do real em profundidade, ou seja, do real “além” do campo de realidade.

#   Para conseguir essa sua intelecção, a razão só conta com todas as suas intelecções prévias do real; o que faz, então, a razão para começar (só para começar, é claro)?; muito simples: criar livremente o real além do campo de realidade em base às suas intelecções prévias do real.

#   Esta livre criação racional tem três modos.

+   Modelização ou experiência livre

-   Experiência livre

*   Mais adiante daremos um conceito estrito e rigoroso de experiência; de momento, basta-nos recorrer ao significado usual de experiência como “ensaio” ou “intento”.

*   O primeiro modo de que dispõe a razão para criar livremente o real “além” em base às suas intelecções prévias do real, é tentar criar livremente o conteúdo do real “além” “modificando” de alguma maneira o conteúdo do real “aquém”.

   Não é que a razão tente modificar livremente o conteúdo do real “aquém” na linha da sua física nua realidade (seria absurdo!), mas na linha da sua física atualidade intelectiva.

   Por exemplo: a razão toma a intelecção campal de algo que é em realidade “corpo”; modifica livremente uns quantos caracteres do seu conteúdo (por exemplo, tira-lhe a cor, reduz o seu tamanho, altera a sua forma, etc.); assim, a razão criou livremente um “corpúsculo”.

*   Atenção que esta experiência livre não é nem experiência de livre ficção nem experiência de livre ideação.

   Experiência livre não é experiência de livre ficção, quer dizer, um salto do “empírico” ao “fictício”.

¬    Diz Stuart Mill que, junto ao que vulgarmente se chama de experiência sensível ou perceptiva (=percepção), há uma experiência imaginária (=imagem) que não é realidade; diz Husserl que há uma experiência “fantástica” que recai sobre o conteúdo de toda percepção uma vez neutralizado nela o seu caráter de realidade.

¬    A nossa concepção da experiência livre não coincide nem remotamente com essas duas concepções.

°   Primeiro, porque a experiência livre recai formalmente sobre a realidade física do previamente inteligido; portanto, a liberdade da experiência livre não é liberdade de realidade, mas realidade em liberdade.

°   Segundo, porque a experiência livre não recai só sobre os fictos, mas também sobre os perceitos, sobre os conceitos e sobre todas as afirmações.

   Experiência livre não é experiência de livre ideação, quer dizer, um salto do “empírico” ao “ideal”.

¬    Alguém poderia pensar que a experiência livre da qual falamos consiste em criar “objetos ideais”.

¬    Isso não é assim.

°   A liberdade da experiência livre recai sobre a “realidade” e não sobre “objetos”.

°   O princípio e o resultado da presumível ideação é sempre realidade física em liberdade.

°   A mal chamada de criação ideal não é livre criação de realidade ideal, mas livre criação de realidade em idéia, coisa muito diferente.

-   Modelização

*   Mediante a experiência livre, a razão dota livremente o real “além” dum conteúdo.

*   Depois a razão tenta que esse conteúdo, considerado por ela como “modelo” (=imagem formal) do real “além”, dê razão daquilo que é o real “além”, quer dizer, daquilo que é o real em profundidade, ou seja, daquilo que é o real na realidade.

*   A história é testemunha dos contínuos fracassos deste modo de livre criação da razão que consiste em criar livremente modelos do real “além”, quer dizer, de “modelizar” o real “além” (por exemplo, o modelo das linhas de força de Faraday, o modelo mecânico do éter, o modelo astronômico do átomo, o modelo do hexágono de Kekulé, o modelo do esperma-homúnculo, o modelo pessoal das realidades animais, o modelo vital das realidades inanimadas, etc., etc.).

+   Homologação ou estrutura básica ou hipótese

-   Hipótese

*   Para dar razão do real “além”, a razão se pode basear também na estrutura formal do conteúdo do real “aquém”, quer dizer, na sistematização estrutural do real “aquém”.

*   Criar livremente hipótese é justamente dotar livremente o real “além” de estrutura formal, ou seja, é supor o suposto, quer dizer, a estrutura formal radical e básica do real “além”.

*   As hipóteses não são hipóteses de realidade, mas realidade em hipótese.

-   Homologação

*   Uma vez que criou livremente a estrutura formal do real “além”, a razão tenta dar razão do real “além” “supondo” que as estruturas do real “aquém” e do real “além” são “homólogas”.

*   Alguns exemplos.

   O organicismo sociológico tenta dar razão da realidade social homologando a estrutura dos seres vivos e a estrutura da sociedade.

   O solidarismo sociológico tenta dar razão da realidade social homologando a estrutura dos corpos sólidos e a estrutura da sociedade (visível retrocesso...!).

   O rotacionismo sem rotação dos quarks, quer dizer, o “spin”, tenta dar razão dos quarks homologando a estrutura rotatória dos corpos e a estrutura rotacional sem rotação dos quarks.

   O eletromagnetismo da luz tenta dar razão da luz homologando a estrutura básica dos campos eletromagnéticos, expressada nas equações de Maxwell, e a estrutura da luz.

+   Postulação e construção livre

-   Construção livre

*   A razão pode tentar dar razão do real “além” construindo livremente por completo o conteúdo do real “além” e a sua estrutura formal básica; é o grau máximo da liberdade criadora da razão.

*   O real “além” é aqui simplesmente realidade em “coisa livre” (com conteúdo e estrutura livres).

*   Isto pode levá-lo a termo a razão de diversos modos; assim, por exemplo, uma novela é uma livre construção cheia de fictos, perceitos, conceitos e afirmações livremente criadas; o mesmo cabe dizer duma livre construção teorética do tipo que for.

-   Postulação

*   Uma vez que criou livremente a realidade do real “além” como “coisa livre”, a razão tenta dar razão do real “além” “postulando” que essa “coisa livre” realiza a realidade do real “além”.

*   A postulação não é postulação de realidade, mas realidade em postulação.

*   Exemplos: todas as construções geométricas do espaço e todas as construções matemáticas do universo.

=   O princípio mensurante da intelecção do real em profundidade, tem três caracteres:  concreção, variedade e abertura.

#   É sempre algo concreto precisamente porque está tomado do campo de realidade (como se vê nos exemplos).

#   É variado, porque o real em profundidade pode ser mensurado conceitualmente, emocionalmente, metaforicamente, etc.

#   Não é algo fixo e concluso, mas algo intrinsecamente aberto ao tipo de realidade que se trata de mensurar; ao inteligir as coisas com maior profundidade ou ao inteligir coisas novas, o princípio mensurante do real se abre a novos modos e formas de realidade.

=   De tudo que foi dito se desprende que o princípio mensurante da razão na sua marcha intelectiva não são os chamados “primeiros princípios ou primeiros juízos da razão” (princípio de não contradição, princípio de razão suficiente, princípio de terceiro excluído, etc.), mas a realidade mesma já apreendida como remitentemente aberta ao mundo da realidade, porém agora tomada como princípio mensurante da intelecção da razão.

=   A razão, efetivamente, não é “faculdade de primeiros princípios ou de primeiros juízos”, mas intelecção “principial mensurante” do real em profundidade.

b.   A razão é a intelecção “inquirinte” (em busca) que mensura o real em profundidade.

=   Já dissemos repetidas vezes: a razão é formalmente e estruturalmente “busca” intelectiva (intellectus quaerens); não busca duma intelecção que ainda não se possui, mas intelecção em busca, busca intelectiva, inteligir buscando.

=   A busca intelectiva em que a intelecção da razão consiste tem sempre caráter de provisoriedade: o inteligido pela razão é sempre provisório (superável e superando); ainda que seja verdadeiro, segue sempre submetido a revisão tanto no que diz respeito ao seu conteúdo quanto no que diz respeito ao seu enfoque.

=   O modo de atualidade intelectiva do real na intelecção inquirinte é formalmente “problema”; o real está presente como problema na razão.

#   Efetivamente, o campo de realidade lança a inteligência perante uma realidade real, mas extracampal: isto é aquilo que significa etimologicamente o termo “pro-blema” (do verbo grego pro-ballo: lançar algo perante).

#   Daí que a intelecção do real em profundidade, enquanto realidade problemática, é inquirinte “por necessidade intrínseca”: perante um problema temos “forçosamente” que inquirir negativamente ou positivamente.

+   O modo negativo de inquirir um problema é o positivo passar adiante.

+   O modo positivo de inquirir um problema é adentrar-se no problemático para “resolvê-lo” ou para “tratá-lo”.

-   Há problemas radicais que a estrita intelecção da razão não pode resolver, mas só tratar.

-   Mas o “tratamento” dum problema é já uma solução incoada: orienta-nos, dirige-nos convergentemente para a solução; ainda que a maioria das vezes essa convergência é só de caráter “assintótico”...

 

 

2.     Três concepções inaceitáveis da razão

 

a.   A razão é o órgão das evidências absolutas do ser (Parmênides, Platão, Aristóteles, Leibniz, etc.).

=   Exposição

#   A razão é “rigor lógico”, e a forma suprema de rigor lógico é o “raciocínio”.

#   O rigor do raciocínio se funda nas rigorosas evidências conceituais primeiras (que para Leibniz se reduzem a identidades).

#   Portanto, a razão é o órgão da evidência conceitual absoluta que “bóia” de modo absoluto por cima da sensibilidade: vai além do apreendido sencientemente por necessidade de rigor lógico.

#   A razão é o princípio mensurante ou cânon do real, dado que o princípio mensurante ou cânon do real são os juízos de evidência conceitual absoluta.

=   Tudo isso é inaceitável.

#   Inteligir não é conceber e julgar o real, mas apreendê-lo formalmente como real, e isto se realiza no modo primário de intelecção, que é a apreensão primordial de realidade, a qual, “ulteriormente”, se desdobra em logos (simples apreensão e juízo) e razão.

#   Aquilo que lança a razão além da apreensão primordial de realidade e além do logos não é uma necessidade de rigor lógico, mas o real mesmo apreendido em apreensão primordial de realidade como realidade em “para” remitentemente aberta ao mundo da realidade; este, e não os conceitos e juízos primeiros, é o princípio mensurante ou cânon da razão.

#   A razão não é o órgão das evidências absolutas, mas o órgão da marcha intelectiva que busca inteligir a profundidade do real já apreendido como real e em realidade.

b.   A razão é o órgão da dialética especulativa (Hegel).

=   Exposição

#   O rigor lógico consiste em ver o real no espelho de “a” razão; a realidade não é mais do que a imagem “especular” da razão; por isso, a razão é “razão especulativa”.

#   O princípio da razão é a necessidade dialética, quer dizer, a necessidade do desenvolvimento do conceito que é intrinsecamente inconsistente.

+   A razão não pode se deter num conceito porque vê como imediatamente esse conceito se desfaz no seu conceito oposto.

+   Aquilo que faz então a razão é recuperar o primeiro conceito incorporando-lhe o seu oposto, fundindo assim ambos num novo conceito, e assim sucessivamente.

#   O único consistente, portanto, é a razão mesma no seu próprio movimento dialético; a razão é estruturalmente movimento dialético que consiste, em definitiva, na saída da razão de si mesma para poder entrar em si mesma.

#   Com outras palavras: a razão é dialética especulativa conceitual, é Idéia, ou seja, o conceito do conceito.

=   Tudo isto é impossível.

#   A razão não é movimento dialético “no mesmo”, quer dizer, dentro do conceito mesmo, mas é marcha intelectiva “para o outro”, quer dizer, para o real além do campo de realidade.

#   A razão não é movimento interno de conceitos, mas busca de mais realidade.

#   Aquilo que move essa marcha intelectiva da razão não é a inconsistência dos conceitos, mas a problematicidade mesmo da realidade mundanal atualizada na intelecção primordial e campal.

c.    A razão é o órgão da organização totalizante da experiência (Kant).

=   Exposição

#   Os juízos primeiros da razão não são os juízos sobre a realidade, mas os juízos sobre a minha própria intelecção da experiência.

#   A razão é a organização das intelecções acerca da experiência; e essa organização consiste em “totalização”.

+   O conteúdo da razão não é a totalidade do real, mas a totalidade lógica das minhas intelecções; a razão é puramente e simplesmente totalização lógica.

+   As três idéias lógicas totalizantes são mundo, alma e Deus.

=   Tudo isto é inaceitável, ao menos por dois motivos.

#   A razão não se apóia nas suas intelecções enquanto intelecções, mas na realidade inteligida nas suas intelecções; a razão não é razão das intelecções, mas razão da realidade sencientemente inteligida.

#   Ademais, a razão nem sequer organiza a totalidade da realidade sentida, porque a razão não consiste na construção duma espécie de totalidade lógica fechada; aquilo que organiza a razão, em todo caso, são as suas intelecções principialmente mensurantes daquilo que é em profundidade a realidade já sentida como real e já inteligida sencientemente em realidade.

 

 

3.     Em conclusão, há que dizer energicamente três coisas.

 

a.   A razão, enquanto intelecção, não repousa absolutamente sobre si mesma, mas sobre o logos e sobre a apreensão primordial de realidade; efetivamente, a razão não é “a” intelecção, mas só o modo de intelecção que consiste em intelecção em marcha e que é o segundo modo ulterior de intelecção.

b.   A razão, enquanto intelecção “do real”, também não repousa absolutamente sobre si mesma, porque repousa sobre “o real” que busca inteligir em profundidade, e que já está apreendido como real e em realidade.

c.    Raciocínio, especulação, organização não são “a” razão, mas só três modos (entre outros muitos possíveis!) de razão, quer dizer, da intelecção inquirinte que mensura o real em profundidade.

 

 

 

B.   A unidade da razão e da realidade vista desde a realidade

 

 

1.     A realidade dá que pensar e dá (e tira) razão.

 

a.   Já vimos no capítulo anterior que as coisas reais dão que pensar.

b.   Agora acrescentamos: não só isso, mas é que as coisas reais são também as que “dão (e tiram) razão”.

=   Com isso não estamos dizendo só que a razão recai “sobre as coisas reais”, quer dizer, que a razão é um modo de intelecção “das coisas reais”; isso é certo, mas não é algo exclusivo da razão, mas algo próprio de todo e qualquer modo de intelecção, “também”, portanto, da intelecção racional.

=   Aquilo que estamos dizendo é muito mais: é que o momento prioritário da razão “pertence às coisas reais”, quer dizer, é que são as coisas reais mesmas as que nos dão razão e nos tiram razão, ou seja, é que a razão não é algo que “nós temos” mas algo que “nos é dado e tirado pelas coisas reais”, porque são elas mesmas as que nos dão a mensura da sua realidade.

c.    Considerando a unidade destes dois momentos: as coisas reais dão que pensar “e” as coisas reais dão (e tiram) razão, temos que dizer duas coisas.

=   A razão está determinada pelas coisas reais tanto no ponto de partida da sua marcha intelectiva (são as coisas reais as que dão que pensar), quanto no ponto de chegada da sua marcha intelectiva (são as coisas reais as que dão [e tiram] razão).

=   Este unitário duplo “dar” das coisas reais (dar que pensar e dar razão) é uma das dimensões do caráter constitutivamente aberto do real enquanto real: só aquilo que é constitutivamente aberto, como o é o real enquanto real, pode dar; e só aquilo constitutivamente aberto, como o é o real enquanto real, pode ser buscado e encontrado pela razão.

 

 

2.     O real “se dá” à razão em atualidade intelectiva, quer dizer, estando presente na intelecção em marcha, mas dum modo peculiar: estando presente na intelecção em marcha (=razão) como “realidade em “por-quê” que é “encontrada””. por-quê

 

a.   Dizer que as coisas reais dão que pensar à razão equivale a dizer que o real se dá à razão como “realidade em “por-quê””.

=   Já vimos que, ao ratificar-se a dimensão de coerência do real na apreensão primordial de realidade, a verdade real tem a dimensão do “quê” do real apreendido, quer dizer, daquilo em que consiste o real apreendido.

=   Pois bem, esse “quê”, atualizado agora na razão, torna-se um “por-quê”.

#   O “quê” do real atualizado intelectivamente na apreensão primordial de realidade, reatualizado agora intelectivamente na razão, é um “quê” que retém problematicamente a sua plena atualidade e que remete “para” ela.

#   Isso quer dizer que este “para” do quê do real está aberto em forma de “por”, ou seja, como direção “para o “quê pleno” do real”: é um “para o “por-quê” do real”!

=   Daí que “por-quê” não é uma pergunta acerca do real, que eu coloco mais ou menos arbitrariamente (como usualmente se pensa), mas é precisamente o modo da atualidade intelectiva do real na razão, quer dizer, o modo de atualidade intelectiva do real que consiste em “atualidade problemática”; é essa atualidade intelectiva do real “em por-quê” a que determina a minha ulterior possível pergunta “por quê?”.

b.   Dizer que as coisas reais dão (e tiram) razão à razão equivale a dizer que o real se dá à razão como “realidade cujo “por-quê” é encontrado”.

=   Efetivamente, a abertura do real, em virtude da qual o real “se dá” à razão como por-quê, não se esgota aí, mas o real “se dá” também à razão como realidade cujo por-quê é encontrado nela mesma.

=   Daí que o encontrar a razão o por-quê do real não é um encontrar casual, quer dizer, como uma espécie de “tropeção”, mas um encontrar em busca, quer dizer, um encontrar algo que é formalmente buscado pela razão (ainda que na sua busca o possa encontrar por acaso ou tropeçando).

 

 

 

C.   A unidade enquanto tal da razão e da realidade

 

 

1.     Crítica das concepções leibniziana e kantiana da unidade enquanto tal da razão e da realidade

 

a.   Leibniz

=   Exposição

#   A razão é sempre e só “razão de ser”.

#   Esta razão de ser é indiscernidamente (por identidade) razão de que as coisas “sejam” e razão de que as coisas “sejam inteligidas”.

#   Esta unidade de identidade de ambos os momentos da razão de ser se expressa no “princípio de razão suficiente”: tudo aquilo que é duma determinada maneira tem uma razão de ser dessa determinada maneira e não de outra.

#   Por conseguinte, toda razão lógica tem sempre alcance metafísico perfeito.

=   Tudo isso é impossível.

#   O princípio leibniziano de razão suficiente é insuficiente por dois motivos.

+   Primeiro, o princípio leibniziano de razão suficiente concerne à razão de ser; a razão, no entanto, não é razão de ser, mas razão “do” ser, quer dizer, da realidade, porque a realidade é a razão do ser.

+   Segundo, a identidade entre razão de ser e razão das coisas é rejeitada contundentemente pela mera análise dos fatos da intelecção.

#   A razão lógica não é sem mais razão real e metafísica, porque uma coisa é a razão da intelecção e outra coisa é a razão das coisas reais.

b.   Kant

=   Exposição

#   Kant se dá conta da necessidade de discernir com claridade entre razão intelectiva e razão de realidade; por isso escreve a sua Crítica (=discernimento) da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft).

#   Nela critica a unidade de identidade lógico-real da razão de Leibniz, quer dizer, o fundamento meramente lógico da metafísica; há -afirma- duas razões escindidas, separáveis e incomunicadas enquanto razões: a razão pela qual as coisas são, que é problema da razão divina, e a razão das coisas enquanto inteligidas, que é problema da razão humana.

=   Crítica

#   Está perfeitamente justificada a crítica de Kant à pura razão de Leibniz (a sua Crítica da Razão pura, Kant podia perfeitamente tê-la titulado “Crítica da pura Razão de Leibniz”...)

#   Mas é igualmente impossível a dualidade kantiana de razões.

+   Essa dualidade de razoes está na linha da nua realidade.

+   Nessa linha, tem razão Kant, contra Leibniz, em dizer que a razão intelectiva das coisas é inidentificável com a razão da nua realidade das coisas (só faltaria isso!).

+   Mas é que a razão intelectiva não é razão da nua realidade, mas razão da realidade “atualizada” intelectivamente, da realidade enquanto presente na intelecção (da razão, é claro).

+   Pois bem, a realidade atualizada na razão continua sendo realidade, apesar de que o âmbito da realidade atualizada na razão seja menor do que o âmbito da nua realidade [=mundo]).

 

 

2.     A unidade enquanto tal da razão e da realidade é unidade de “atualidade”.

 

a.   A unidade enquanto tal da razão e da realidade está em que “a realidade se “atualiza” na razão”.

b.   Por isso, o princípio de razão suficiente concerne formalmente e exclusivamente a esta atualidade intelectiva do real, à realidade enquanto intelectivamente atualizada; então sim: “toda realidade inteligida na razão é realidade cuja atualidade é fundamentada em e por a realidade mesma”.

c.    A razão é a atualidade do real em busca pensante; só neste sentido deve dizer-se que o real é racional, quer dizer, o real atualizado na razão é racional.

=   Mas, atenção: não todo o real “tem” razão, porque o real poderia perfeitamente repousar sobre si mesmo sem ter porque atualizar-se na razão.

=   Ademais, que o real (atualizado na razão) seja racional não significa em absoluto que a sua estrutura interna seja de caráter conceitual.

#   Esse foi precisamente um dos erros gravíssimos de Hegel: identificar simplesmente o racional e o conceitual.

#   Isso é quimérico.

+   A intelecção racional não se reduz em modo algum à intelecção lógica do conceito, porque a razão pode atualizar intelectivamente o real em formas não conceptivas.

+   Ainda mais, a razão pode, inclusive, atualizar o real como sendo superior a todo tipo de intelecção racional!

d.   Que o real (atualizado na razão) seja racional significa que o real atualizado na razão entra “desde si mesmo e em si mesmo” no âmbito da razão.

=   Quer dizer, é o real mesmo, desde si mesmo e em si mesmo, aquele que se atualiza na razão e não por uma operação arbitrária da intelecção humana.

=   Isso não significa que o conteúdo do real atualizado na razão (atualizado como “por-quê) tenha que ser “transparente”; pode que seja tanto transparente quanto “opaco”.

=   Usualmente, se chama de “irracional” ao real atualizado na razão com conteúdo “opaco”; de acordo; mas atenção que irracional não é a-racional (não-racional), mas um modo do racional (o racional irracional), quer dizer, um modo de atualizar-se o real na razão, no qual o real só nos dá razão irracional.

=   Urge evitar toda concepção arbitrariamente angusta e raquítica da atualidade intelectiva-racional do real!


XIX

 

O OBJETO FORMAL DA RAZÃO

 

 

 

 

A.   O objeto formal da razão é aquilo que “poderia ser” o real além.

 

 

1.     O objeto formal da razão é algo formalmente “possível”.

 

a.   A razão, na sua marcha intelectiva, busca aquilo que é o real na realidade; busca, portanto, algo que pertence sim à realidade, mas sem um conteúdo determinado (ou inclusive com um vazio de conteúdo [a razão sabe que, mais duma vez, o real além que busca resulta ao final ser nada!]).

b.   Pois bem, pertencer à realidade mas sem conteúdo formal determinado é justamente ser realidade “possível”; a razão, portanto, marcha intelectivamente no real sempre e só como possível.

 

 

2.     Este real possível, que é o objeto formal da razão, é justamente um modo de “irrealidade”: aquilo que o real “poderia ser” na realidade.

 

a.   No logos vimos já um modo de irrealidade do real: aquilo que “seria” o real em realidade, quer dizer, o apreendido em simples apreensão, ou seja, perceitos, fictos e conceitos.

b.   Agora vemos o modo de irrealidade do real na razão: aquilo que “poderia ser” o real “além”, aquilo que “poderia ser” o real em profundidade.

c.    O pensar da razão pensa sempre no real “além”, mas pensando necessariamente nas “possibilidades” do real “além”, naquilo que “poderia ser” o real além.

d.   Alguns exemplos.

=   Se penso no passeio que vou dar, naquilo que penso formalmente é no passeio que poderia dar.

=   Se penso em que é na realidade a luz, naquilo que penso formalmente é nas possibilidades reais necessárias para que se dê isso que chamamos de luz.

 

 

 

B.   As possibilidades daquilo que “poderia ser” o real “além”, forjadas pela razão, determinam a sua intelecção daquilo que é o real na realidade em três modos: incoadamente, coligintemente e explicativamente.

 

 

1.     Incoadamente

 

a.   A razão forja as possibilidades do que poderia ser o real “além” em base ao real “aquém”; portanto, a razão não marcha intelectivamente para o real “além” no infinito dos possíveis, mas num elenco limitado de possibilidades, e, dentro deste, descarta de entrada muitas.

b.   Isso quer dizer que as possibilidades escolhidas pela razão determinam “incoadamente” a sua intelecção daquilo que é o real na realidade.

 

 

2      Coligintemente

 

a.   Como o conteúdo do real “aquém” é múltiplo, também são múltiplas as possibilidades que tem a razão de forjar aquilo que poderia ser o real “além”.

b.   Isso quer dizer que a razão, quando toma uma dessas possibilidades daquilo que poderia ser o real “além”, tem que tomá-la “com” todas as demais, quer dizer, como uma co-possibilidade daquilo que poderia ser o real “além”; justamente nisso consiste o “co-ligir” (=co-inteligir); a razão intelige uma ou várias possibilidades daquilo que poderia ser o real “além”, co-inteligindo todas as demais.

c.    Portanto, as possibilidades escolhidas pela razão determinam “coligintemente” a sua intelecção daquilo que é o real na realidade.

 

 

3.     Explicativamente

 

a.   Como cada uma das possibilidades daquilo que poderia ser o real “além” é aberta, pode incorporar, quer dizer, “implicar”, as demais.

b.   Pois bem, em virtude desta sua implicação mútua, quer dizer, da sua complicação, as diversas possibilidades daquilo que poderia ser o real “além” constituem um sistema de possibilidades.

c.    Isso quer dizer que a intelecção racional daquilo que poderia ser o real “além” é formalmente “explicação” daquilo que poderia ser o real “além”, quer dizer, dum sistema de possibilidades implicadas (=complicadas) daquilo que poderia ser o real “além”.

 

 

 

C.   Algumas considerações sobre esta função determinante que tem o real “aquém” na intelecção da razão daquilo que poderia ser o real “além”.

 

 

1.     A marcha intelectiva da razão em busca do real “além” parte das “sugestões” que lhe dá o real “aquém”.

 

a.   As possibilidades daquilo que poderia ser o real “além” estão presentes na intelecção senciente campal (logos), quer dizer, na intelecção senciente daquilo que é o real em realidade (o real “aquém”).

b.   Isso quer dizer, exatamente, que o real “aquém”, enquanto que está presente no logos senciente, “sugere” à razão senciente as possibilidades daquilo que poderia ser o real “além”.

c.    A razão, portanto, tem que optar entre as diversas possibilidades daquilo que poderia ser o real “além”, que lhe são sugeridas (possibilidades sugeridas = “sugestões”) pelo real “aquém” daquilo que poderia ser o real “além”, empreendendo assim a sua marcha intelectiva.

d.   Entre as sugestões cabe perfeitamente também a sugestão de não ater-se a nenhuma das sugestões e de inventar possibilidades novas; mas atenção que isso não escapa às sugestões, porque inclusive o romper com as sugestões só é possível desde as sugestões.

 

 

2.     A marcha intelectiva da razão em busca do real “além” é estruturalmente “concreta”.

 

a.   Efetivamente, o princípio mensurante daquilo que é o real “além” não é “o” real “aquém”, assim em abstrato, mas tudo aquilo que o logos em toda a sua concreção decanta no seu lançar a razão a marchar intelectivamente.

b.   Ademais, as sugestões lançam a razão na sua marcha intelectiva daquilo que é o real “além” sempre numa direção muito concreta.

 

 

3.     Esta concreção estrutural da marcha intelectiva da razão é exatamente a forma mentis ou mentalidade.

 

a.   Mente

=   Etimologicamente, o termo “mente” procede da raiz indo-européia men-, que expressa moção anímica (ímpeto, paixão, ardor, etc.).

=   Daí que “mente” não é formalmente idêntico a inteligência; mente expressa o caráter “mocional” da inteligência racional (=razão) no seu lançamento intelectivo para o real “além”.

b.   Forma mentis ou mentalidade é exatamente a habitude, quer dizer, o modo de haver-se a razão com o real “além” no seu lançamento mocional intelectivo para o real “além”.

=   Há fundamentalmente dois modos de mentalidade.

#   A mentalidade extrínseca, quer dizer, a mentalidade caracterizada extrinsecamente pelos modos sociais, psicológicos, antropológicos, étnicos, etc.; por exemplo, a mentalidade grega, a mentalidade semita, a mentalidade feudal, etc.

#   A mentalidade intrínseca, quer dizer, a mentalidade caracterizada intrinsecamente pelos diversos modos de ir “para” o real “além”; por exemplo, a mentalidade poética, a mentalidade científica, a mentalidade teológica, a mentalidade religiosa, a mentalidade prática, a mentalidade teorética, etc.

=   As diversas mentalidades intrínsecas se subdividem em diversas mentalidades intrínseco-extrínsecas; por exemplo, o modo dos sumérios fazerem poesia é distinto do modo dos helenistas fazerem poesia; o modo dos acádios fazerem ciência é distinto do modo dos gregos fazerem ciência, etc.

=   Desse modo, a razão é sempre concreta, quer dizer, não há razão sem mentalidade.

=   Atenção que a mentalidade é algo exclusivo e próprio da razão; as intelecções primordial e campal não têm mentalidade alguma.


XX

 

A ESTRUTURA DA RAZÃO SENCIENTE:

O CONHECIMENTO

 

 

 

 

A.   O que é conhecimento

 

 

1.     Conhecimento é intelecção do real em razão senciente.

 

a.   Conhecer algo real é simplesmente inteligi-lo na sua realidade profunda, quer dizer, funda-mentado no real “além” ao qual remete.

b.   É obvio que só se pode conhecer o já inteligido primordialmente (em apreensão primordial de realidade) e campalmente (em logos).

=   Vi (=intelecção primordial) algo real.

=   Afirmei (intelecção campal=logos) que esse algo real que vi é em realidade cor verde e não batata cozida.

=   Agora conheço (intelecção mundanal=razão) que esse algo real que vi e que afirmei que é em realidade cor verde, na sua realidade profunda, fundamentado no real “além”, na realidade, é uma ondulação eletro-magnética de determinada freqüência ou um jato de fótons, etc.

c.    O conhecimento, portanto, é só um modo de intelecção do real e não “a” intelecção do real.

=   A apreensão primordial de realidade não é um conhecimento rudimentar; pelo contrário: o conhecimento (como o logos) recebe a sua riqueza e o seu valor, por ser uma intelecção ulterior à apreensão primordial de realidade.

=   O conhecimento, como o logos, é um modo de intelecção ulterior e sucedâneo; efetivamente, se algo real estivesse exaustivamente atualizado na apreensão primordial, não caberiam nem logos nem conhecimento; e não pode haver conhecimento sem as intelecções prévias do real (apreensão primordial de realidade e logos).

=   O conhecimento (como o logos) é “expansão” da intelecção primordial da realidade do real; o conteúdo de realidade do real conhecido poderá ser mais rico que o conteúdo de realidade do real inteligido campalmente e primordialmente; mas a realidade do conteúdo do real conhecido está já dada ao conhecimento pela apreensão primordial de realidade.

 

 

2.     Crítica de quatro concepções falsas do conhecimento

 

a.   Conhecimento não é juízo objetivamente fundado, como pensa Kant, mas razão do real (“aquém”) em profundidade (“além”).

=   Kant identifica ilicitamente a razão com o juízo, quer dizer, logifica a razão ilicitamente; julgar (logos) não é conhecer (razão), mas intelecção afirmativa daquilo que é algo real “em” realidade (não “na” realidade).

=   Todo conhecimento envolve necessariamente muitos juízos; esses juízos, porém, não são conhecimento por serem juízos objetivamente fundados, mas formam parte do conhecimento por serem juízos envolvidos na intelecção daquilo que é o real na realidade (=razão).

b.   Conhecimento não é a epistéme platônica (=conhecimento do ser inteligível), mas intelecção “senciente” do real em profundidade.

=   Platão pensa que o conhecimento estrito (epistéme) é o conhecimento do “ser inteligível”, quer dizer, da Idéia, o qual se contrapõe ao conhecimento do “ser sensível” (os elementos), que é só “opinião” verdadeira.

=   Isto é inaceitável.

#   Primeiro, não há dois seres (ser do sensível e ser do inteligível), mas um único “ser do real”.

#   Segundo, o termo formal do conhecimento (como o de toda intelecção) não é o ser, mas a realidade; e não a realidade inteligível, mas a realidade em profundidade.

#   Terceiro, não há dualismo sentir/inteligir, mas unidade formal sentir-inteligir (=intelecção senciente), que é conhecimento só quando é intelecção senciente do real em profundidade.

c.    Conhecimento não é a epistéme aristotélica (=conhecimento das causas do que é), mas intelecção do real em profundidade, intelecção do funda-mento do real aquém.

=   Conhecer profundamente um amigo, por exemplo, não é questão nem de causalidade nem de necessidade científica, mas inteligir a realidade profunda dele.

#   Efetivamente, conhecer a fundo um amigo não é formalmente conhecer o relato detalhado da vida dele, nem conhecer, ademais, os móveis das suas ações e reações.

#   Conhecer a fundo um amigo é inteligir tudo isso, mas como manifestação da sua realidade “além”, quer dizer, como manifestação da sua realidade profunda.

=   Há que ter em conta que toda causa ou princípio é fundamento, mas que não todo fundamento é forçosamente causa ou princípio.

=   Efetivamente, fundamento não é só aquilo do qual (hóthen) algo provém, mas aquilo que desde si mesmo e em si mesmo se realiza no fundamentado.

d.   Conhecimento não é saber absoluto de realidade absoluta, como pensa Hegel, mas saber sempre aberto da realidade profunda.

=   A profundidade de algo não equivale à sua “ultimidade”; todo o último é profundo, mas não todo o profundo é último; a profundidade do real admite graus que vão até o infinito; a profundidade do real é fundo insondável.

=   A intelecção do real em profundidade é um fato; mas o acesso à ultimidade do real é constitutivamente um problema sempre aberto ao infinito.

=   Por isso, intelecção em profundidade do real não é saber absoluto, mas saber sempre aberto, porque a profundidade das coisas reais é sempre uma dimensão aberta.

=   O que acontece é que Hegel parte de um suposto falso: pensar que o real é a clausura do absoluto, de modo que cada uma das realidades seria só um momento dessa clausura última do absoluto.

=   Pois bem, isso é inaceitável: a realidade é “constitutivamente” aberta e, por conseguinte, a intelecção do real é sempre “constitutivamente” aberta.

=   A marcha intelectiva da razão jamais foi nem pode ser uma “fenomenologia do espírito”.

=   Com isso não ficam excluídos os passos racionais para uma Realidade Absoluta...! Aquilo que fica excluído é que a realidade profunda das coisas seja “simplesmente” realidade absoluta.

 

 

 

B.   Estrutura do conhecimento

 

 

1.     Para chegar a inteligir o real “além”, a razão transforma intelectivamente o real “aquém” em “realidade objetual”.

 

a.   Para inteligir uma coisa real “aquém” em pro-fundidade (=para conhecer o real) a razão a coloca “sobre o fundo mundanal dela” que é precisamente aquilo que quer inteligir; assim, a coisa real “destaca” perante a razão como que fundamentada na sua realidade profunda; com isso, a razão transforma intelectivamente a coisa real em “objeto real”.

b.   Objetualidade não é objetividade (que é o caráter das coisas presentes no puro sentir do mero animal) nem é coisa real, mas só o modo de atualização intelectiva do real no conhecimento da razão.

c.    Objeto não é algo real enquanto termo duma intelecção (é justamente a idéia clássica do objeto material e formal), mas enquanto termo da intelecção racional exclusivamente.

d.   Objeto não é algo real enquanto “pro-posto” (=posto perante mim) para ser inteligido, mas algo real enquanto atualizado como “ob-posto” na intelecção racional.

=   Efetivamente, no logos, sim que o real está “proposto” para um juízo proposicional ou predicativo, como explicamos; mas o real proposto para ser afirmado não é formalmente objeto.

=   Só é formalmente objeto, na razão, o real posto, não em forma de “pro” (=proposto), mas em forma de “ob” (=obposto, objeto), quer dizer, o real “aquém” que está atualizado na razão como “ante”-posto “sobre” a sua realidade profunda ou mundanal.

e.    Para entender isto melhor, descrevamos esta atualização intelectiva do real em “ob” na razão.

=   Atualizada intelectivamente na razão, a coisa real “aquém” anteposta sobre o fundo da sua realidade profunda, ganha um “volume próprio” que a razão tem que traspor para inteligir essa realidade profunda do real “aquém”.

=   Desse modo, a coisa real “aquém” está presente na razão como um positum (=algo posto pelo real mesmo) cujo perfil tem que remontar para chegar ao seu fundo.

=   Com outras palavras: atualizada intelectivamente em “ob” na razão, a coisa real “aquém” é como o alto do porto duma montanha que há que traspor para ir pela outra vertente até o real “além”, até a realidade profunda do real “aquém”.

=   Por isso o “ob” é formalmente remetente “para”; a realidade profunda própria da coisa real “aquém” é algo que está presente em certo modo como que desafiando a razão e remetendo-a “para” ela.

f.     Em rigor estrito, as coisas reais campais, enquanto atualizadas em “ob” na razão, não são formalmente “objetos”, mas “ob-stantes”.

=   A filosofia concebeu sempre a realidade como jectum, como jacente, como algo que jaz aí [seja jectum (Parmênides) seja sub-jectum (Aristóteles) seja ob-jectum (Kant)].

=   Isso é impossível.

#   Certamente podem haver realidades jacentes; mas não todas as realidades têm porque serem jacentes.

#   Por exemplo, as pessoas, a vida, a sociedade, a história, não encaixam nessa concepção da realidade como jectum; não são realidades jacentes.

=   Por isso, seria mais correto usar o verbo estar (verbo de atualidade) e falar sempre de realidades “obstantes” em lugar de realidades “objetuais”; mas, feito este esclarecimento, podemos seguir usando o termo “objeto”.

g.   Dois caracteres essenciais do “ob”: o “ob” é categorial e positivo.

=   “Ob” é um caráter categorial (o “ob” é categoria de atualização do real).

#   Categoria - lembremos - não é classe de coisas, nem modo do ser, nem conceito puro a priori, etc., mas modo de estar presente o real na intelecção (modo de atualidade intelectiva) enquanto “acusado” nesta.

#   Pois bem, objetualidade é uma das categorias da atualização intelectiva do real: a categoria segundo a qual o real está atualizado na razão como “ob” seja o que for o seu conteúdo real.

=   “Ob” é um caráter positivo (o “ob” é um positum [=algo posto pelo real mesmo]).

#   O real atualizado intelectivamente é positum; isto quer dizer o seguinte:

+   O real está presente na intelecção (positum é algo real apreendido).

+   O real só está presente na intelecção (positum se opõe ao interpretado, ao elaborado intelectualmente, ao teórico, ao especulativo, etc.).

+   O real só está presente na intelecção em e pelo seu estar presente mesmo (positum é um simples observável).

#   Três concepções falsas da positividade.

+   É falso que estar presente o real na intelecção é um mero “estar aí”, quer dizer, é falso que positividade se identifique com estaticidade.

-   Isso supõe identificar mero estar presente com jectum; coisa impossível como dissemos.

-   Efetivamente, o decurso mais radical duma vida pessoal, por exemplo, ou uma realidade que consista só em acontecer (tempo?, liberdade?), não são um algo que esteja aí, e, no entanto, estão meramente presentes na intelecção.

+   É falso que positum  se identifique com “fato”.

-   O fato é um positum, mas não todo positum é fato (por isso tantas vezes, para qualificar com especial energia que algo é fato, dizemos enfaticamente: “é um “fato positivo””).

-   Não todo o intelectivamente observável é forçosamente um fato; para ser fato, o positum tem que ser algo “pela sua própria índole observável por qualquer um”.

*   Algo observado só por uma pessoa, mas observável pela sua própria índole por qualquer um que estivesse ali (isso tem que ser comprovado), é um positum e um fato.

*   Algo observado só por uma pessoa e observável pela sua própria índole só por essa pessoa (como alguns momentos da intimidade pessoal) é positum, mas não é fato; por exemplo, a aparição de Jesus Cristo nada menos que a quinhentas pessoas ao mesmo tempo, testemunhada por S. Paulo, é positum, mas não é fato; efetivamente, não qualquer pessoa presente ali teria visto a Jesus Cristo, mas só os agraciados por Ele com essa graça.

+   Mais falso ainda é que positum seja “fato científico”.

-   O fato é um tipo de positum; e o fato científico é um tipo (só um tipo) de fato.

-   O fato científico tem que ser fato (positum pela sua própria índole observável por qualquer um) e “fato fixado”, quer dizer, referido a um sistema de conceitos prévios.

-   Esses conceitos podem ser conceitos de ciência natural ou documentos históricos, etc.

-   Mas, sem essa “fixação”, o fato é mero fato, mas não é fato científico.

-   Por exemplo: se tomamos uma bobina, fios de cobre, uma pilha elétrica e uma barra de ferro, veremos que, em determinadas condições que não vamos explicar aqui, a barra oscila.

*   O mero fato é a observação das oscilações da barra de ferro.

*   O fato científico é a medida da resistência elétrica da bobina pela sua oscilação registrada numa determinada escala.

h.   A objetualidade do real não tem a sua raiz em mim, mas na realidade mesma que, quando é sencientemente apreendida, ela mesma é a que tem o momento dum “para” o profundo.

 

 

2.     O método do conhecimento

 

a.   O método (de metá e hodós, [=“caminho além”]) do conhecimento é marcha intelectiva na realidade e não marcha lógica na verdade.

=   O método do conhecimento é “o como” a razão busca intelectivamente o real “além”; quer dizer, é a “via” do conhecer; a via além através da qual a razão, abrindo-se passagem no “objeto real” chega ao real “além”.

=   Por conseguinte, método do conhecimento não é (como usualmente se pensa) a via do raciocínio que conduz dum juízo verdadeiro a outro juízo verdadeiro; isto é insustentável por três motivos.

#   Primeiro, porque o método do conhecimento não é a via do conhecimento na sua própria verdade, mas a via do conhecimento na realidade atualizada intelectivamente (em todo caso, portanto, via no verum do real e não na verdade da intelecção).

#   Segundo, porque a verdade do conhecimento, como veremos, não repousa sobre si mesma, mas sobre a verdade real da apreensão primordial de realidade.

#   Terceiro, porque o método não consiste em raciocínio; efetivamente, o método do conhecimento não é via dum juízo verdadeiro a outro, porque aquilo que busca a razão não é outro juízo, mas outra atualidade intelectiva do real.

+   O método é via que há de ser percorrida (discorrida); mas discorrer não equivale simplesmente ao “discorrer lógico”; o discurso lógico é só um tipo de discorrer.

+   As leis lógicas do juízo, a lógica inteira é “órganon” do conhecimento, mas não é método; vejamos duas identificações ilícitas do raciocínio lógico com o método.

-   O raciocínio dedutivo lógico não é método, como costuma se pensar (por exemplo, o raciocínio dedutivo lógico da matemática); aquilo que sim é método é “fazer deduções”.

*   A dedução lógica concerne à estrutura lógica do pensar matemático, por exemplo, mas não concerne à atualização intelectiva do real matemático.

*   Para a atualização intelectiva do real matemático não bastam deduções lógicas rigorosas; é necessário “fazer deduções” operando, transformando, construindo, etc., no real matemático.

*   Este “fazer deduções” na realidade matemática - e não a dedução lógica por si mesma - é o método matemático.

-   O raciocínio lógico indutivo também não é método, como costuma se pensar; é método “fazer induções”.

*   Jamais se conseguiu estruturar (por enquanto?) um “raciocínio lógico indutivo”, nem sequer recorrendo ao cálculo de probabilidades, para excluir erros casuais na experimentação.

*   “Fazer induções” sim que é método estrito e rigoroso; parte-se do real atualizado em fatos e vai-se, por repetição, desde os resultados experimentais a um enunciado geral.

b.   Ponto de partida e ponto de chegada do método do conhecimento

=   Ponto de partida: o esboço de possibilidades do real “além”.

#   Como já adiantamos ao falar da razão como intelecção mensurante do real “além”, a marcha intelectiva parte de modelizar, homologar, postular, o real “além” em base ao real “aquém”, quer dizer, estabelecendo um esboço de possibilidades daquilo que poderia ser o real na realidade; (a “ingenuidade” da razão estaria em pensar que o mundo é formalmente idêntico ao mundo sentido [campo]).

#   Aquilo que o esboço de possibilidades escolhido pela razão determina na sua marcha intelectiva é saber se a direção que empreendeu tem ou não suficiente ou conveniente precisão.

+   Em virtude disso, o conhecimento não é um sistema de conceitos, proposições e expressões, como pretende falsamente o logicismo formal do positivismo lógico, mas a função direcional intelectiva desse sistema; não ver isto constitui o vício radical do positivismo lógico.

-   Um sistema de proposições logicamente determinado é, ao máximo (não sempre), a estrutura da intelecção do logos, não da razão.

*   O positivismo lógico é uma concepção - incompleta - do logos, mas é completamente cego perante à intelecção mundanal (=razão) cuja estrutura essencial é formalmente de caráter direcional-intelectivo.

*   O conhecimento é uma intelecção dirigida ao mundo desde um sistema campal de possibilidades do real “além”.

-   A direção intelectiva da razão é a direção duma marcha inquirinte; a lógica formal estuda, portanto, os enunciados lógicos do conhecimento, mas jamais a estrutura formal do conhecimento, que é marcha inquirinte.

-   O positivismo lógico é cego perante à dimensão criadora do conhecimento.

*   Criar não é enunciar novas proposições, mas descobrir novas direções de marcha intelectiva.

*   O estatuto cognoscitivo da intelecção racional não é ser constatação lógica, mas direção “fecunda” para o real mundanal; e o mundo não tem estrutura lógica, mas estrutura de respectividade real, coisa muito diferente!

=   Ponto final: a intelecção “experiencial” (=experiência) daquilo que é o real “além”.

#   Concepção estrita de experiência

+   Em contra do sensualismo há que dizer que experiência não é sentir e menos ainda sentir tal como o conceitua o sensualismo.

-   O sensualismo entende por experiência o sentir (a aísthesis, a percepção), contraposto à apreensão intelectiva.

-   Isto é absolutamente inadmissível.

*   Primeiro, porque o sentir humano é unitariamente sentir-intelectivo, já que sente “realidade”.

*   Segundo, porque o sentido-inteligido primordialmente é algo que se tem, enquanto que o experienciado sencientemente-intelectivamente (mediante a razão senciente) é algo conseguido; com outras palavras: o sentido-inteligido como real é só experienciável, mas não formalmente experienciado.

+   Em contra de Aristóteles há que dizer que experiência não é retentividade empírica.

-   Aristóteles plasmou este conceito de experiência: empeiría é a percepção retentiva, quer dizer, sentir a mesmidade duma coisa através das suas inumeráveis variações.

-   Isto é insuficiente.

*   O percebido e retido no sentir-intelectivo não são as qualidades de “uma mesma” coisa, mas as qualidades duma coisa “real”.

*   Uma vez mais: não há oposição sentir/inteligir.

*   A experiência racional é intelecção duma coisa realmente “mundanal”.

+   Experiência é “provação física de realidade”.

-   Quando falamos de ter ou não ter experiência de algo, de ter pouca ou muita experiência de algo, nos referimos precisamente a esse modo de apreender esse algo que consiste exatamente em “inteligi-lo em profundidade”.

-   Efetivamente, a consecução da experiência é consecução de aprofundamento no real; nesse aprofundamento, a coisa se atualiza como realidade mundanal.

-   Esta atualização mundanal do real consiste em “inserir” na realidade o irreal esboço de possibilidades daquilo que “poderia ser” o real “além”, “provando se se insere”.

*   O logos “realiza afirmando” o irreal “seria” daquilo que é o real em realidade.

*   A razão “realiza provando” o irreal “poderia ser” naquilo que é o real na realidade.

-   Esta provação em que a experiência consiste é física, não intencional ou algo parecido, porque é provação exercitada-discerninte abrindo-se passagem no campo de realidade para o mundo da realidade.

-   A provação física de realidade (=experiência) atravessa o porto do “ob” e desemboca na realidade mundanal que fundamenta o objeto real.

*   Curiosamente, atravessar se diz em grego peiráo (em latim, perior); daí deriva precisamente “porto”.

*   Pois bem, ex-perior, ex-perienciar, é justamente atravessar o porto do “ob” (algo real campal, algo mundanal campalmente sentido) mediante a provação que é exercitação discerninte senciente.

+   Esta é a essência do “encontro” metódico com o real mundanal: inteligir o real campal sentido como momento do real no mundo através do “poderia ser” esboçado e provado.

+   A experiência é provação física da realidade do real “além” atualizado em “por-quê”.

-   Concepção aristotélica do “por-quê”

*   O “por-quê” é causalidade; o por-quê de algo é a sua causa; conhecer algo é conhecer as suas causas.

*   Causalidade é produção originante; causa é algo que exerce um influxo produtor (eficiente ou material ou formal ou final) sobre outro algo (efeito).

*   A ordem causal nos é dada nas apreensões sensíveis.

*   O conhecimento consiste em remontar-se desde as causas dadas até as causas superiores mediante o raciocínio.

-   Crítica de Hume à concepção aristotélica da causalidade

*   A causalidade jamais nos é dada na apreensão sensível; só nos é dada a mera sucessão.

*   Por conseguinte, toda tentativa de estrito conhecimento causal se move no vazio.

-   Crítica de Kant à crítica de Hume

*   A concepção de Hume é um ceticismo inaceitável porque a crítica dele (válida no sentido de que a causalidade não é percebida pelos sentidos) se opõe ao faktum inconcusso da ciência que vive toda ela de causas.

*   Portanto, se a causalidade não é dada na intuição, é algo produzido a priori pelo entendimento para poder julgar objetivamente o dado pelas coisas à inteligência (aqui está o orto do idealismo transcendental!).

-   Pois bem, toda essa discussão da causalidade se apóia sobre duas idéias fundamentais radicalmente falsas: o por-quê é causalidade; a causalidade não é dada em impressão.

*   E se resulta que o “por-quê” não é causalidade, mas funcionalidade? É isto que pensamos.

   A funcionalidade é a estrutura funcional do campo de realidade.

   Por exemplo, num gás, o produto do seu volume pela pressão é igual à temperatura multiplicada por uma constante (=lei de Gay-Lussac).

   Isso não significa em absoluto que volume, pressão e temperatura estejam vinculados como causas-efeitos; isso significa puramente e simplesmente a funcionalidade da estrutura campal do real.

   O que acontece è que a ciência não tem por objeto “causas”, mas “por-quês” funcionais expressados em leis de funcionalidade.

   Ademais, a noção aristotélica de causa responde, no melhor dos casos, só às realidades meramente materiais, mas não necessariamente às realidades físico-morais.

¬    A qual das quatro causas pertence o conselho que uma pessoa dá a outra ou a minha complacência num amigo?

¬    É que a distinção do homem como agente, ator e autor das suas ações não encaixa na teoria aristotélica da causalidade.

¬    Haveria que introduzir com todo rigor uma teoria da causalidade pessoal na qual a causalidade natural e pessoal fossem no máximo causalidades análogas.

¬    Mas aquilo que há que fazer antes é introduzir ambas modalidades de causalidade dentro da noção mais ampla da funcionalidade do real como real.

*   E se resulta que a causalidade não está dada na apreensão primordial de realidade, mas sim a funcionalidade do real como real, que ulteriormente se atualiza intelectivamente na razão como “por-quê? É isto que pensamos.

#   Os quatro modos de experiência daquilo que é o real “além”.

+   Experimento.

-   É o modo de experiência que consiste em forçar, em provocar o real “aquém” para que mostre perante o experienciador se a sua real índole profunda  confirma ou não o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser essa sua real índole profunda.

-   Este modo recai, em princípio, sobre “todo” o real “aquém”.

-   Atenção que experimentar não é um mero manipular a realidade, mas “inteligir” o real “além” manipulando o real “aquém”.

+   Compenetração.

-   É o modo de experiência que consiste na tentativa de assistir à mostra de se a real índole profunda do real “aquém” confirma ou não o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser essa sua real índole profunda, mas esta vez instalando-se o experienciador na interioridade mesma do real “aquém”, quer dizer, “compenetrando-se” com o real “aquém”.

-   Obviamente não se trata duma compenetração material (seria grotesco), mas dum físico “estar” intelectivamente compenetrado com o real “aquém”; é aquilo que se expressa dizendo, por exemplo, que uma pessoa vê com os olhos de outra.

-   Mais do que difícil operação...! O experienciador sempre corre o risco de projetar sobre o experienciado a sua própria índole...

-   Este modo recai sobre realidades vivas e especialmente sobre realidades humanas; um exemplo de compenetração: a experiência histórica de Israel.

*   Para um judeu do século I aC, todo o acontecido ao seu povo é só uma série de episódios “duma experiência histórica da aliança de Iahweh com Israel”.

*   A compenetração adota aqui a forma duma ingente experiência histórica; nela, certamente, não se experimenta a Iahweh “em si mesmo”, mas sim se conhece aquilo que é “Iahweh no seu povo” compenetrando-se com Ele.

*   Israel não é só o povo em cuja história aconteceram ações prodigiosas de Iahweh, mas o povo cuja história “inteira” consiste em ser experiência histórica de Iahweh.

+   Comprovação

-   É o modo de experiência que consiste na tentativa de assistir à mostra de se a real índole profunda do real “aquém” confirma ou não o esboço de possibilidades “postuladas” daquilo que poderia ser essa sua real índole profunda.

-   A comprovação é a provação física de realidade das realidades matemáticas, de ficção, etc.

+   Conformação

-   É o modo de experiência que consiste na tentativa de assistir à mostra de se a “minha” real índole profunda confirma ou não o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser essa “minha” real índole profunda.

-   A conformação concerne, portanto, à experienciação da minha própria realidade: é a experiência de mim mesmo.

-   Não se trata da apreensão da minha realidade, porque já me está dada, sobretudo, na minha impressão cenestésica da minha realidade; também não se trata da minha afirmação daquilo que sou ou não sou em realidade, porque isto pertence à intelecção campal de mim mesmo; trata-se da experiência do mundo, do profundo, da minha personalidade pessoal; para isso, a minha razão tem que ir “além” das minhas ações, das minhas tendências sentidas, etc., etc.

-   Com outras palavras: tratasse daquilo que expressava S. Agostinho: quaestio mihi factus sum (tornei-me questão para mim mesmo).

-   Para conhecer a resposta a essa questão preciso dum método que na realidade em que estou me leve à minha realidade profunda numa provação física da minha própria realidade; é um método pelo qual consigo o discernimento em mim mesmo dumas modalidades de realidade profunda à diferença de outras.

-   Como toda provação que é, a conformação consiste na tentativa de inserção na minha própria realidade dum esboço de possibilidades daquilo que poderia ser a minha realidade profunda: é a experiência de mim mesmo, ou seja, o conhecimento de mim mesmo.

-   Essa experiência de si mesmo não consiste só numa espécie de exame de si mesmo, porque todo exame de si mesmo está intrinsecamente orientado e inscrito num sistema de referência determinado.

*   Segundo S. Agostinho, por exemplo, confessar-me a mim mesmo é ter experiência daquilo que sou na minha realidade profunda “a respeito daquilo que Deus realizou em mim e eu em Deus”.

*   Segundo Rousseau, no entanto, confissão de mim mesmo é ter experiência daquilo que sou na minha realidade profunda “a respeito da natureza”.

-   Um exemplo de conformação: quero experienciar se a minha realidade profunda tem ou não uma determinada vocação; tento, então, conformar-me ao esboço de possibilidades dessa determinada vocação, quer dizer, trato de conduzir-me intimamente “conforme” a esse esboço, para ver se a minha realidade profunda confirma ou não que tem essa determinada vocação; o resultado pode ser positivo ou negativo.

-   Por conseguinte, conhecer-se a si mesmo não é o abstrato “conhece-te a ti mesmo”, mas é necessariamente provar fisicamente a minha própria realidade profunda em contínuas conformações; só conformar-me a esboços daquilo que a minha realidade profunda “poderia ser” é aquilo que constitui a forma rigorosa de conhecer-se a si mesmo.

-   Difícil operação este conhecimento de si mesmo...; é nada menos que o discernimento de si mesmo em contínua provação conformante!


XXI

 

A VERDADE DA RAZÃO SENCIENTE

 

 

 

 

A.   Essência da verdade da razão senciente

 

 

 

1.     Vista desde a razão, a verdade da razão é “encontro” intelectivo do real “além”.

 

a.   No ponto de chegada da sua marcha intelectiva para inteligir aquilo que é o real “além”, a razão, experienciando no real “além” o seu esboço de possibilidades daquilo que poderia ser o real “além”, “encontra” que o real “além” coincide ou não com dito esboço; portanto, a verdade da razão é formalmente “encontro” intelectivo do real “além”.

b.   Pois bem, esse “encontro” intelectivo do real, no qual consiste a verdade da razão, é um encontro “dinâmico”, quer dizer, o encontrado pela razão é princípio de nova busca intelectiva.

=   O diz em frase genial S. Agostinho: Busquemos como buscam aqueles que ainda não encontraram, e encontremos como encontram aqueles que ainda têm que buscar; porque quando o homem terminou algo, não fez mais do que começar.

=   S. Agostinho não afirma só uma espécie de limitação conjuntural do conhecimento humano; está afirmando, com perfeito rigor, nada menos que a essência formal do conhecimento humano!

=   Com efeito, precisamente porque o conhecimento humano é formalmente inquirinte, quando “encontra”, tem sempre que seguir buscando, porque o encontrado é formalmente “princípio” de nova busca.

 

 

2.     Vista desde o real “além”, a verdade da razão é “verificação” nela do real “além”.

 

a.   Dado que aquilo que a razão busca intelectivamente na sua marcha é se o seu esboço de possibilidades daquilo que poderia ser o real além coincide ou não com aquilo que é o real “além”, aquilo que a razão formalmente encontra é que o seu esboço se “cumpre” ou não; quer dizer, a verdade da razão como encontro é formalmente “cumprimento” ou não daquilo que segundo ela (esboço) “poderia ser” na realidade o real “além” naquilo que “é” na realidade o real “além”.

b.   Quem determina esse cumprimento ou não é o real “além”; isso quer dizer que, na razão, o real “além” dá a sua verdade, verdadea a intelecção racional, “confirmando” ou não o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser o real “além” forjado pela razão; essa confirmação é precisamente aquela que dá à verdade da razão o seu caráter de “firmeza”, de verdade “firme”, em virtude do qual a verdade da razão não é um encontro casual, uma espécie de tropeção com a verdade.

c.    Portanto, assim comoo real verdadea a apreensão primordial de realidade meramente “ratificando” a sua realidade nela; assim como o real verdadea o logos “autenticando” a unidade da simples apreensão do logos e da atualidade intelectiva campal do real em nele, e “veriditando” a afirmação do logos daquilo que é em realidade o real, o real verdadea a razão “verificando” (=verum facendo [de verum facere], fazendo verdadeira) a intelecção da razão.

d.   Assim pois, o real dá (e tira) razão à razão, “verificando” positivamente ou negativamente, fazendo verdadeira, positiva ou negativamente, a intelecção da razão daquilo que é na realidade o real.

 

 

3.     Enquanto “verificação” por parte do real, a verdade da razão tem três caracteres essenciais: necessidade, possibilidade e dinamicidade.

 

a.   A verdade da razão é necessária.

=   Que aquilo que o real é na realidade cumpra e confirme algum esboço de possibilidades daquilo que “poderia ser” na realidade, é algo perfeitamente “necessário”; quer dizer, que cumpra e confirme este ou aquele esboço não é necessário (só faltaria!); mas que tem que cumprir e confirmar algum esboço, é necessário.

=   E por que isso é necessário?; porque é algo fundamentado imediatamente na mera atualidade do real como “um “quê” “para” o seu “por”” sentido intelectivamente na apreensão primordial de realidade.

=   Pois bem, essa necessidade da verdade da razão consiste naquilo que acabamos de explicar, e não em que “tenham necessariamente que aplicar-se” ao real “aquém” umas proposições lógicas evidentes (por exemplo, o princípio de causalidade, o princípio de razão suficiente, etc.), para chegar ao real “além”.

#   Primeiro, porque jamais se conseguiu enunciar esses presumíveis princípios evidentes em fórmulas unívocas.

#   Segundo, e sobretudo, porque a necessidade de que aquilo que o real é na realidade cumpra e confirme algum esboço de possibilidades daquilo que “poderia ser” na realidade, não se fundamenta numa evidência lógica dum juízo necessário, mas, como acabamos de dizer, na vidência do real como “um “quê” “para” o seu “por”” sentido intelectivamente na apreensão primordial de realidade, quer dizer, na vidência primordial da funcionalidade mesma do real enquanto real.

b.   A verdade da razão é possível; com efeito, a possibilidade da verdade da razão é, por assim dizer, a possibilidade de trazer o mundo da realidade ao campo de realidade; pois bem, isto é possível graças a que o momento de realidade do real campal e do real mundanal é numericamente e fisicamente idêntico.

c.    A verdade da razão é dinâmica, porque a verificação da intelecção racional por parte do real é sempre e só um “ir verificando”; este “ir verificando” tem três caracteres essenciais.

=   O ir verificando a intelecção racional por parte do real é um ir verificando “suficiente” em três modalidades distintas de suficiência.

#   A verdade da razão é suficiente “conseqüencialmente” quando o real “além” cumpre ou confirma o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser na realidade, mas não o esboço em e por si mesmo, mas só as suas conseqüências.

#   A verdade da razão é suficiente “concordatoriamente” quando o real “além” cumpre ou confirma o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser na realidade só concordando com ele em certo modo.

#   A verdade da razão é suficiente “convergentemente” quando o real “além” cumpre ou confirma o esboço de possibilidades daquilo que poderia ser na realidade convergindo com muitos dos seus pontos.

+   Não tenhamos falsas ilusões; quase todas as nossas intelecções racionais, inclusive as que consideramos mais solidamente estabelecidas, são só verdadeiras suficientemente por mera convergência!

+   Que o real verifique imediatamente as nossas intelecções racionais, se é que isso existe, é algo excepcional.

=   O ir verificando a intelecção racional por parte do real é um ir verificando, mas “excedendo” daquilo que verifica.

#   O campo de realidade é só o mundo da realidade sentido; em virtude disso, é obvio que a realidade mundanal “exceda”, quer dizer, que seja algo muito mais rico do que a realidade campal.

#   Isso explica que só uma intelecção racional que conduza ao descobrimento de novas propriedades verificáveis do real “além” tem estrito valor científico.

+   Assim, por exemplo, a teoria eletromagnética da luz conduziu a descobrir novas propriedades da luz.

+   Assim, também, a teoria relativista e ondulatória do elétron conduziu ao descobrimento da primeira forma de anti-matéria: o pósiton.

=   O ir verificando a intelecção racional por parte do real é um ir verificando porque a intelecção racional verdadeira é verdade “às apalpadelas”.

#   É obvio que a verdade da razão enquanto que é só suficiente e enquanto que deixa margem à excedência do real “além”, de modo algum é verdade “absoluta”; a verdade da razão marcha sempre para uma verificação absoluta que fica sempre longe.

#   Cada momento dessa marcha é só uma verificação provisória com vistas à verdade “plenamente adequada”; em virtude disso, a verdade da razão é sempre uma verdade “às apalpadelas”, quer dizer, um mero apalpar em tenteio a verdade plenamente adequada daquilo que é o real na realidade.

 

 

 

B.   Três considerações finais acerca da verdade da razão

 

 

1.     Exceto em dois casos, quando o real verifica uma intelecção racional, verifica sim essa intelecção racional, mas não como a única verdadeira.

 

a.   Vejamos dois exemplos.

=   O real verifica a intelecção racional “ondulatória” da luz confirmando a realidade das suas conseqüências que são umas determinadas “interferências”; o real verifica também a intelecção racional “gravitatória das massas” confirmando a realidade das suas conseqüências que são umas certas “qualidades do movimento dos astros”.

=   Muito bem; mas essas conseqüências, quer dizer, esses mesmos fenômenos verificados experiencialmente poderiam perfeitamente ser conseqüências de outras possíveis intelecções racionais da luz e do movimento dos astros respectivamente.

#   Com efeito, também a intelecção racional “fotônica” da luz dá razão completa das famosas interferências.

#   A mesma coisa: também a intelecção racional “relativista” da gravitação das massas dá razão completa dos movimentos celestes.

=   Mas é que a coisa não tem porque acabar aí; poderiam haver novas razões que dêem razão desses mesmos fenômenos; a intelecção racional está sempre aberta a novas razões; e se não o está, simplesmente se jugulou irremissivelmente.

b.   Dois casos possíveis nos quais o real verifica a intelecção racional como a única verdadeira.

=   Obviamente, um seria o caso em que o real verifica uma intelecção racional que forja um tal esboço de possibilidades daquilo que poderia ser o real na realidade que pela sua própria índole é o único possível, quer dizer, que é excluinte de qualquer outro esboço; se dá esse caso?

=   O segundo é o caso em que o real verifica uma intelecção racional que simplesmente postula a existência duma coisa real nova, por exemplo, um determinado vírus.

 

 

2.     Segundo o grau de adequação verificada da intelecção racional por parte do real, a intelecção racional pode ser verdade racional-racional e verdade racional-razoável.

 

a.   Quando a verificação da intelecção racional por parte do real é “totalmente” adequada, quer dizer, quando o real cumpre e confirma “plenamente” o esboçado pela intelecção racional, a intelecção racional é uma verdade racional-racional; nesse caso, o real verifica que essa intelecção racional é a “via” do real.

b.   Quando a verificação da intelecção racional por parte do real é “parcialmente” adequada, quer dizer, quando o real cumpre e confirma parcialmente o esboçado pela intelecção racional, a intelecção racional é uma verdade racional-razoável; nesse caso, o real não verifica que essa intelecção racional seja a “via” do real, mas sim que é em certo modo “viável”.

c.    De tudo que foi dito anteriormente, se desprende que, em geral, a marcha intelectiva faz só experiência do razoável.

 

 

3.     O real pode verificar negativamente a intelecção racional daquilo que poderia ser o real “além”; isto pode acontecer de dois modos.

 

a.   Pode ser que o real verifique negativamente o esboço racional daquilo que poderia ser o real “além” mostrando na experiência racional que o “exclui” sem mais (=experiência excluinte); nesse caso, a intelecção racional verificada negativamente pelo real é perfeitamente “rejeitável”.

b.   Pode ser que o real verifique negativamente o esboço racional daquilo que poderia ser o real “além” mostrando na experiência racional que o “suspende” pela sua própria índole (=experiência suspensiva); nesse caso, a intelecção racional verificada negativamente pelo real é perfeitamente “suspendível”.